Uma Noite de Sexta

28, nov, 2019 | Artigos, Literatura | 1 Comentário

Este conto é parte do livro “Deixai Toda Esperança”, que será publicado em 2020. 

Por Diogo Fontana

Uma varanda, um café… Abre a porta, entram. Um ar festivo e cálido aguça os contornos e as fisionomias. A luz é viva, a música é colorida. Todas as mesas parecem ocupadas. Paira um bulício contínuo de conversas. Ouve-se francês, inglês, uma língua eslava indistinguível. Espicha a vista até a parede dos fundos e identifica dois lugares vagos, perfeitos para as duas. Enquanto atravessam o corredor entre as mesinhas, uma por uma, fita as faces inclinadas sobre o balcão. Sorriem, bebem, pedem mais bebida. São todas desconhecidas. Avança. Copos tilintam, gargalhadas estalam em todo lugar. O quadro-negro sobre o bar anuncia o menu du jour, sugere um par de ostras, champanhe. A televisão exibe uma partida de futebol.

Sentam-se. Passeiam os olhos, espelhos, poltronas, cardápios, tampos de mármore. A atmosfera é antiga, mas tudo é novo para elas: uma explosão de vida, futuro. O que mais as impressiona, contudo, são as pessoas. Quanta gente bem vestida, e quantas bolsas de grife! Na mesa ao lado um homem lindo, barbado, veste um terno azul elegantérrimo, sem gravata, e conversa com uma francesa miúda, tímida, mas que ostenta uma bolsinha da Prada que deve valer uma fortuna. Como é possível? Como uma menininha daquelas, comum, anda por aí com uma bolsa tão cara? É espantoso, coisa de primeiro mundo. Partem então para o exame completo. Reparam na roupa, na unha, no sapato, no cabelo, no relógio, no colar, no brinco, em tudo. Não é que ela realmente veste uma blusa listrada, azul e branca, confortável, bem larga? Não é que ela realmente usa o cabelo natural, solto, sem muita frescura? Não é que as francesas são realmente assim?

Então sintonizam o ouvido, fazem esforço para entender o que diz o casal: ouvem um c´est ci, c´est ça, tititi, tatatá, tudo muito bonito, mas o francês das duas ainda não lhes permite ir além do cicio impreciso, pontuado por algumas palavras conhecidas.

Camila parece feliz, tira uma selfie fazendo biquinho, o nome do lugar ao fundo. Exibe a foto para a amiga, não ficou muito boa, daria para enquadrar melhor o letreiro:

— Tire outra se for postar.

— Não precisa. Só vou mandar no grupo da família.

— Se quiser eu tiro uma pro Insta.

Gastam cinco minutos sacando duas dúzias de fotos. Posam, conferem, apagam, repetem tudo outra vez. Enfim, a foto perfeita, o ângulo exato que a mais valoriza, o cenário bem emoldurado, o sorriso ensaiado, o nariz levemente de perfil, na melhor posição.

— Gostei. Mas será?

— Poste, amiga, tá rica. Poste!

Camila então escolhe o filtro, duas, três, quatro tentativas, ajusta um pouco a luz, limpa a pele com um aplicativo; logo seleciona no Google uma frase em francês, copia, cola, marca o lugar, insere as hashtags de hábito, ajuntando mais duas, específicas de Paris; quando a obra está pronta, relê tudo, contempla-a, mostra outra vez para a amiga, que consente com o olhar; e então, finalmente, pressiona o botão de envio, liberando a imagem para o mundo.

De volta ao bar, reparam no menino do balcão, um sósia do Eros Ramazotti quando jovem. Ele tem um topete desfiado que aponta para o céu e laterais à máquina cortadas em dégradé. Um dia o cabelo dele irá cair e o rapaz verá falhas na cabeça. Por ora ainda desfruta a testosterona e o colágeno daquela juventude, e prepara drinques, espia a mesa delas. Num dado momento, olha Vanessa bem fundo nos olhos, mantém o olhar firme: fixo e confiante. Sorri canalhamente. As meninas riem, por sua vez, tão constrangidas quanto entusiasmadas. Consideram-no gato, muito gato, pensam que poderia ser modelo. Não evitam reparar nos ombros atléticos, na camiseta preta apertada, e no antebraço coberto por tatuagens, à moda dos boleiros atuais. Será que é francês? Não parece, tem tipão de cafajeste italiano, um ar de sedutor contumaz. Mesmo à distância, ouvem sua voz quando diz algo para a garçonete. O tom é anasalado, há um sotaque distintivo, com certeza da Itália. Camila não precisa dizer nada, pergunta com o olhar. Vanessa responde, lisonjeada e defensiva:

— Eu não! Não faz meu tipo.

— Sei…

— Tá é louca. Tá escrito pilantra na cara dele.

— Como se você não gostasse, né. Pra cima de mim, amiga? Pra cima de moi?

No que estende o braço com afetação e pede ao primeiro passante:

— Two cosmopolitans, s´il vous plaît.

— Oui, mademoiselle – responde o garçom com discrição e mesura, mas naquela postura desdenhosa que só garçons franceses sabem ter.

Quando o atendente se afasta, Camila comenta, como se fosse um segredo:

— Viste o preço, nega? Doze euros cada um!

— Pois é. Paris… Quer o quê? Quando eu fui pra Ibiza, acho que era até pior. Tudo muito caro, caro mesmo, você não tem ideia. Era mais barato tomar bala… Mas é aquela história, né: quem converte não se diverte!

Riem as duas, explodindo numa grande gargalhada. Trocam olhares cúmplices e travessos; e quase sem querer, as duas, ao mesmo tempo, espiam o italiano sem-vergonha trabalhando no bar. Ele continuava lá, batendo drinques na coqueteleira, falando alto, sorrindo, jogando charme pra lá e pra cá.

Volta o garçom, traz o drinque, um treco cor-de-rosa numa taça de Martini. Camila beberica, sorri, e acrescenta, filosoficamente:

— É…. Cada um tem a vida que merece…

Vanessa concorda, pergunta:

— Conseguiu descansar?

— Um pouco. Dormi a tarde inteira, mas ainda estou com um pouco de sono.  O vôo, o aeroporto, o fuso horário… Como cansa! Acho que vão ainda alguns dias pro meu corpo acostumar – conclui, bocejando.

Camila intervém:

— Pára logo com isso, trata de se animar!

— Tá bom, tá bom, você tem razão. Preciso tomar mais um pra me animar.

Então começou a relatar a chegada, algumas horas mais cedo:

— Tô assustada, não sabia que a coisa estava assim. Me sinto mais segura em Floripa, sem brincadeira, é sério, nega.

— É normal, amiga. Os bairros do norte são muito ruins mesmo. Quando você chega tem que passar por eles. Mas aqui no centro é tranquilo.

— Mas eu fiquei com medo, sério, parecia São Paulo, sujeira, tipo uns crackentos pedindo dinheiro na sinaleira, umas ciganas debaixo do viaduto. Horrível. Não achei que estivesse assim … Aqui é melhor mesmo. Mas sei lá…

— Você tem que ficar na bolha, não pode ir nos banlieu, é perigoso. Eu também demorei pra me acostumar. Nos pontos turísticos também é ruim. Quando eu fui na torre Eiffel eu passei um medinho. Na saída tinha uns negões vendendo bugiganga, umas bolsas falsificadas, umas miniaturas da torre Eiffel. Bem tosco. Eram uns negões grandes, enormes, africanos, são mais pretos do que os negões do Brasil. E eles olham feio, encaram, grudam, você fica com medo. E insistem, querem forçar a gente a comprar. Ainda bem que o meu irmão estava junto quando eu fui, senão eu já me pelava de medo.

O barman cafajeste continuava a encarar as brasileiras de um modo cada vez mais explícito. Agora ele chacoalhava a coqueteleira, atendia um cliente, mas espiava as meninas sempre que podia. Qual seria a dele, afinal? Há dois tipos de italianos neste mundo:  o herdeiro de Dante, erudito, guardião da beleza e da alta cultura; e o macho comum, ignorante, canastrão mulherengo, escravo da moda, fanático por automobilismo e futebol. Qual seria a dele, afinal? Pergunta retórica, muito fácil de se responder… Diante daquele olhar insistente, Camila sentia-se ao mesmo tempo incomodada e contente. Começou a afetar um pouco os trejeitos, mexer no cabelo, fazer um pouco de pose ao falar. Contou:

— Na vinda foi um perrengue. O motorista do Uber não entendia uma palavra de inglês. Sei lá de onde ele era, da Rússia, Polônia, daqueles lados lá.

— Eu gosto é dos habibs. Sabe que tem uns bem bonitos? Eu gosto do olhar deles, aquele olho preto, a sobrancelha bem marcante. E aquela barba fechada, bem feita. Acho uma delícia! E eles tratam super bem as mulheres, são conquistadores.

— E ricos!

— Sim! Vou arrumar um sheik do petróleo pra mim. Vai me cobrir de joias.

— Não quer um negão? – perguntou, cheia de malícia – Tem vários por aqui também. Dizem que quem prova chocolate preto nunca mais quer chocolate branco. Once you go black, you never go back!

— Pior que eu tenho curiosidade. Mas meu pai me mata! Já imaginou a cara do seu Moacir?

A amiga gargalhou, já estava bem alegre da bebida. E por isso demorou um pouco a entender quando tudo começou, quando subitamente, a vida delas mudou, e lhes ocorreu o inimaginável.

Primeiro ouviram três ou quatro estrondos, secos e rápidos, em coisa de um ou dois segundos. Sobressaltada, Camila teve aquela reação reflexa e corporal: empertigou, arregalou os olhos, virou o rosto, aguçou o ouvido, parou de falar. Lembra-se de ter claramente pensado, intrigada: “o que é isso?”. O mesmo espanto surgira simultaneamente em todas as pessoas do bar, uma surpresa homogênea, uma pulga atrás da orelha, que se acionara num repente, como as luzes que se acendem em sincronia ao cair da noite nos postes da cidade. Todos compreenderam que se passava algo de anormal, embora ainda não pudessem precisar o quê. As conversas foram interrompidas. Por um breve instante, talvez um único segundo, todo o mundo se calou, restando somente a música ambiente, baixinha num segundo plano, e o estranho silêncio que desceu sobre o lugar – um silêncio nervoso e alarmante, como o presságio de um terremoto. Algo pairava no ar, mudo, latente, não-dito, estampado com grande clareza em todas as expressões de temor. Eram duas palavras interditas, dois tabus, ideias que brotaram de imediato em todas as mentes, que se agitaram em todos os espíritos, e que urgiam rebentar, o quanto antes, de modo sonoro e material: atentado, terrorismo. Ninguém ousou proferir tais blasfêmias, porém.

Então os estampidos voltaram, e daqui por diante fica difícil narrar. Quem estava lá, viu rachaduras na porta de vidro, e se recorda dos gritos e da nuvem de fumaça. Em algum momento, alguém gritou com voz forte e premente, num desespero atroz:

— Par terre!

De uma hora para outra, pois, tudo pareceu terminar: durante dez segundos de entremeio não se ouviu barulho algum. Um silêncio de outro mundo se formara, uma paz, uma brisa, aquele tipo de tranquilidade que alguns percebem na missa após o ressoar da sineta, poucos momentos antes da consagração. O atirador agora andava calmamente com o fuzil de assalto nas mãos. Recarregava-o, um clique, dois. Gente gemia de dor pelos cantos, pedindo socorro, ganindo, choramingando com voz abafada. Ao longe, uma sirene, uma ambulância. As brasileiras tremiam-se, de cócoras, semiescondidas atrás de uma mesinha virada. Um cheiro de sangue e explosivo lhes saturava o nariz. Não pensavam em nada. Branco, pasmo total.

Entreviram em meio à bagunça dos móveis quando o magrebino apontou o cano em sua direção.

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Detalhes do autor

Diogo Fontana

Nasceu em Curitiba em 1980. É autor do livro “A Exemplar Família de Itamar Halbmann”. Mora em Balneário Camboriú, Santa Catarina, com a esposa Gabriela.