Saudade (crônica)

28, jun, 2022 | Artigos | 2 Comentários

Por Simón Aliendres León 

Cada língua possui palavras que lhe são próprias e cuja tradução a outros idiomas, sem mudar sua essência, é impossível. São palavras que refletem a alma de um país, marcam uma idiossincrasia, e uma forma de sentir e  enxergar a vida. Assim é o exemplo da palavra russa “toska”, que define uma dor intensa e profunda bem no meio da alma, ou a japonesa “tsundoku” que nomeia a compra compulsiva e a posterior acumulação de livros não lidos. Do alemão, podemos mencionar “Waldeinsamkeit”, que faz referência à alegria de estar só com as árvores e a natureza no bosque.
 
A primeira palavra nasceu de um povo que tem sofrido muito; a segunda, de um povo que cultiva apaixonadamente a disciplina e o trabalho e não perdoa um hábito superficial; a terceira, ao contrário da anterior, congela em um único termo um hábito, ou um anseio, bem valorizado no país teutão e na sua esfera de influência linguística.
 
Não obstante, há uma palavra cuja relação com seu povo de origem é muito mais profunda, e está vinculada com um conjunto de histórias que os fez não somente navegadores e descobridores, mas porta de entrada e de saída do velho continente. Saudade é a palavra da qual falo…
 
Saudade tem sido traduzida literalmente de uma forma rápida e reducionista, como sinônimo da palavra espanhola “nostalgia”, quando na realidade, o termo, para muitos portugueses, vai muito além de uma melancólica recordação. Para eles, saudade significa uma forma de amar na ausência, a despeito da distância no tempo o na geografia. Longe de ser uma nostalgia que vive de lembranças, é uma resposta do coração ao vazio e à falta do que se ama ou se conheceu, seja uma pessoa, um lugar ou um fato. Não se trata de evocar memórias. Trata-se ter a certeza de que jamais se vai esquecer o que se perdeu, sabendo no fundo que talvez não se recupere aquilo de novo.
 
Saudade, mais do que um sentimento ou uma palavra, é um profundo estado emocional que nos pode levar a longas reflexões e introspecções sobre nossas vidas. Tem saudade quem deixa sua terra ou vê um ente querido partir, talvez para nunca mais vê-lo novamente.
 
Uma grande quantidade de portugueses têm vivido isso individualmente, por serem um dos povos europeus, junto com os italianos, que mais se espalhou pelo mundo. A saudade está intimamente atrelada a história de migrantes e marinheiros. Há quem diga que a origem da palavra esteja no vocábulo latino solitate (solidão), outros no árabe saúda (melancolia) e até na espanhola soledad. Muitas teorias procuram desvendar o mistério que esconde essa palavra, mistério acrescentado por ser uma palavra tão poética e sublime. Comumente, a melancolia leva à raiva, à solidão e à histeria, mas a saudade traz uma serenidade incrível. Ela tem intersecções com a nostalgia, mas também com a resignação. O passeio emocional ao que a saudade nos conduz, faz-nos sentir por vezes até uma calorosa e agridoce alegria, não porque a perda que sentimos tenha significado algo de mau para nós, senão porque estamos muito contentes com a sua memória. A saudade pode ser entendida como o ponto onde coincidem a alegria de uma lembrança e a tristeza da ausência.
 
No entanto, como muitas outras palavras de igual ou menor transcendência, ela tem sido mal utilizada. Para os falantes de espanhol, e até do próprio português, acaba sendo somente mais uma forma de dizer nostalgia. Além disso, há hispano-falantes que confundem a palavra com morriña, que certamente também define uma perda, mas difere nas suas implicações, sendo em geral compreendida como a histeria por abandonar a família ou a pátria, especialmente se você for um imigrante da Galícia. Os termos, portanto, podem ser análogos, mas jamais sinônimos.
 
Às vezes, para empregarmos bem uma palavra, é preciso tê-la vivenciado. Quem não passou por uma situação limite, não entende a “ansiedade” e nem o “desespero”. Quanto a mim, posso dizer que conheço por vivência, na pele e no coração, o sentimento que preenche a palavra saudade. Ele me atravessa, sinto-o pela terra que deixei para trás, o lugar onde passei a vida inteira. Deixá-la, foi como ter morrido e ressuscitado em outro local. Posso, portanto, chamar de saudade o amálgama que sinto no peito toda vez que me lembro do céu da minha casa, tão parecido com o da primavera em Curitiba. Posso chamar de saudade a tristeza de lembrar dos meus entes queridos e de saber que não está em aberto a questão de quando, ou se, voltarei. Porque ao contrário dos portugueses que observavam ao longe Lisboa ou Funchal do convés do navio em que partiam, mas acalentavam a esperança íntima de retornar um dia, eu, da minha parte, estou certo de que nunca mais poderei voltar à Venezuela, salvo se ocorrer um milagre.
 
A saudade implica a ansiedade produzida pela alegria das lembranças do passado e da impossibilidade de voltar no tempo. Como todo sentimento humano, está atrelado a nossa alma. Em Curitiba, posso dizer que sinto saudades de Maracay, do meu lar, das recordações levadas pelo vento e pela maré vermelha que tomou nosso país. Sinto saudades do céu brilhante como aço polido e das montanhas que enxergava a cada dia logo ao acordar. E assim entendo o que disse um dos principais autores da literatura lusa, o poeta português Manuel de Melo, quem definiu a saudade como um «bem que se sofre e mal de que se gosta».
 
Se um dia eu partir de Curitiba, hei de ter saudade dos parques, dos museus, das bibliotecas e até mesmo da loucura de viver as quatro estações do ano no mesmíssimo dia.
 
Seja um patrocinador da Editora Danúbio e ajude na publicação de muitos livros: https://donatio.com.br/editora-danubio/patrocinio
 
 

Inscreva-se em nosso canal do Telegram: https://t.me/editoradanubio 

Artigos recentes

“A literatura só não é terra devastada por causa dos meus amigos”, diz Tiago Amorim

Entrevistamos o escritor Tiago Amorim, que nos fala sobre seu mais novo livro de contos, “Verdades e Mentiras”. Tiago Amorim é mestre em Antropologia pelo ISCTE (Lisboa). Ele é autor de quatro livros, o primeiro deles uma coletânea de ensaios chamada “Abertura da Alma”, também publicada pela Editora Danúbio, em 2015. Casado, pai de dois filhos, Tiago vive em Curitiba, de onde nos concedeu a entrevista.

A Cartomante (conto)

Pedro Mendes passava agora os dias recluso em seu apartamento nos Jardins, desde que obtivera, por graça do ministro Ronaldo Azevedo, um habeas corpus. Não ia mais a restaurantes, nem ao clube; não podia manter contato com o sócio, nem ir à empreiteira; com o passaporte retido, não podia deixar o país. Tinha as contas bancárias bloqueadas e usava uma tornozeleira eletrônica. O empreiteiro engordara a ponto de nenhuma camisa abarcar mais a rubra papada.

Filhos do Tempo (conto)

Contrastava com essa nobreza, na aparência e nos trajes, os convidados da homenageada, que, oprimidos pela chiqueza do lugar e pela pompa da audiência, aprumaram-se nas cadeiras medalhão, na fileira de honra, e simularam com os olhos e a pose uma atenção reverencial.

Categorias

Detalhes do autor

Alexandre Soares Silva

Simón Aliendres León

Nasceu em Maracay, Venezuela, no ano de 1992. Trabalhou duro como blogueiro, redator publicitário, tradutor, professor de espanhol e empreendedor.

Formado em Ciências Contábeis em 2015, está radicado no Brasil desde 2017, por motivos políticos. Mora em Curitiba, cidade onde começou carreira no Direito, e desde onde vem escrevendo sobre a Venezuela.