Dueto da Memória: a obra de José Geraldo Vieira
Por Leandro Mello Ferreira
Reconheço ser bastante suspeito registrar admiração ao prefaciador-biógrafo, vivo e atuante, quando o resgate do autor do livro, há muito falecido e indevidamente esquecido, foi justamente o objetivo do trabalho daquele, parecendo que incorro no pecado intelectual do momento: a banalização do elogio, não por amabilidade fraternal, sempre relevável, mas fundada na desavergonhada aceitação da primazia da “guerra cultural” sobre a sinceridade crítica – perpétuo oscilar do mesmo pêndulo que há tanto nos adormece para os verdadeiros deveres.
Mas não poderia fazer diferente ao falar do novo livro de José Geraldo Vieira, lançado pela Editora Arcádia. “Impressões & Expressões” traz crônicas, ensaios literários, contos e muito mais, produzidos ao longo de toda a vida do grande escritor brasileiro. Mas José Geraldo não é para qualquer um – de hoje! Basta ler essa coletânea de seus textos para ver o imenso desnível de sensibilidade artística que separa sua geração da nossa. Logo se vê, claro, que não se trata da famigerada erudição acadêmica, apaixonada por citações irrelevantes, de maneira alguma. Mas a estranheza, com essa constatação, só aumenta, e me vejo sempre a um passo de abandonar a leitura…
Aí é que o estudo de Francisco Escorsim vem me salvar da mediocridade ressentida, ou pior, assumida. Ao mostrar o reflexo do drama do autor em sua obra, por trás das lições que me pareciam cifradas, uma incontida simpatia abre passagem, uma atenção mais aguda se apresenta naturalmente. Com isso, voltei aos romances e preciosos ensaios do biografado, com muito mais proveito.
Pude compreender, então, que a importância do José Geraldo Vieira para mim, para nosso povo, enquanto romancista, não está no original ou surpreendente “causo” contado, nem simplesmente na prosa maravilhosa e dramática (sem falsas soluções, sem caricaturas das aflições profundas que um homem, ainda que sábio, pode enfrentar) – a importância está no resgate do nosso “senso histórico”. O confessado caráter memorialístico das narrativas se integra no retrato de uma época, dentro da qual o universal do drama humano se insinua, aproximando-se, com altos e baixos, daquele equilíbrio estético, quase religioso, entre o pessoal e o simbólico. Nesse ponto o talento e sensibilidade do Escorsim foram determinantes, pois conseguiu colocar ante nossos olhos a grandeza do romancista sem afetar indiferença por suas fraquezas, mas também sem perder o foco em repreensões moralistas que certamente lhe seriam fáceis e, provavelmente, bem ao gosto de certo público.
Dueto da Memória: a obra de José Geraldo Vieira
Senso histórico… Ah, como de repente dizer tudo?! Como fazer transbordar de sentido vivo esse lindo e puro semiclichê? Mas a verdade é que o senso histórico precisa impregnar nossa sensibilidade para que seja bem compreendido. Claro, pode ser explicado filosoficamente: de um lado, é um caráter fundamental da história ser “possibilitante”, pois tanto no plano humano como no cósmico muito do que hoje se mostra como possível está fundado nos acontecimentos passados, próximos e remotos, que herdamos. E o atualmente possível, principalmente quando trabalhado criativamente, possibilitará novas possibilidades, hoje inexistentes; por outro lado, história é também o símbolo do diálogo das gerações acerca da posição do homem perante a totalidade do ser, isto é, no meio do turbilhão dos acontecimentos do mundo alguns indivíduos experimentam a inquietação das profundezas da consciência humana e, olhando para trás, reconhecem a mesma experiência registrada pelos antepassados, olhando para frente, preocupam-se em atualizar essa expressão aos contemporâneos e vindouros. Possibilitação cultural e diálogo existencial, pois, formam o senso histórico – que os intelectuais e a religião deveriam sempre guardar -, elemento determinante dos desenvolvimentos de uma sociedade.
Como disse, essa é só a explicitação da sua ideia. Na nossa vida, o senso histórico está na percepção permanentemente alerta do longo esforço humano por trás de cada benesse, cada esquina, cada ideia ou talento que possuímos. Quando começamos a sentir a densidade dessas realidades, o batido dia-a-dia muda, todos os pequenos detalhes – um piano herdado, uma surrada estátua na praça – podem revelar encanto. Aos poucos, despertam nossos interesses pela história familiar, da cidade, do país, da religião, da humanidade. Os grandes, sábios, santos e heróis, mas também os desgraçados, surgem, falam a nós. Também a biografia pessoal passa a ser reconsiderada, rememorada, consideradas as influências e circunstâncias, os desejos logrados e os esquecidos, as possibilidades desperdiçadas… Ante tudo isso, são inevitáveis as grandes emoções de gratidão, arrependimento e perdão. E se as experiências se enriquecem com a consciência do passado no presente, as palavras que as referem deixam de ser instrumentos de mera influência pragmática para servir à autocompreensão e ao diálogo humanamente significativo. Só então, a esperança! (O que toscamente tentei evocar neste parágrafo está expresso magnificamente, por exemplo, nas últimas páginas do livro “O resto é silêncio” de Érico Veríssimo).
José Geraldo Vieira, junto com uma plêiade de intelectuais e escritores brasileiros das décadas de 30-60, se lhes faltava por vezes uma orientação cognitiva e moral mais sólida, todavia podem nos ajudar como ninguém a recuperar essa sensibilidade para a intensidade das sutilezas na vida, e fazer ver nossas verdadeiras possibilidades culturais. Aquela geração, condoída pelas desgraças do mundo, desnorteada pelo niilismo, jogada à cova das ideologias florescentes, apesar de tudo encontrava beleza, compaixão e bondade em tudo verdadeiramente humano, mesmo que titubeassem ante o Belo, o Bem e a Verdade – aqueles intelectuais eram herdeiros do Ocidente, cada um deles sentia o mundo pelos olhos, e ouvidos, de seus grandes antecessores e contemporâneos, e por isso bastavam pinceladas nos assuntos para que se compreendessem com toda a profundidade. Essa é a verdadeira erudição: José Geraldo Vieira reconhecendo em cada um dos filhos uma materialização musical distinta e Francisco Escorsim ousando impavidamente descobrir o temperamento do biografado por meio de Händel.
Diz-se, aparentemente com razão, que as obras daqueles intelectuais não seriam uma realização artística ou filosófica universalmente representativa. Mas a terra arrasada em que nos encontramos, abaixo dos escombros do maremoto revolucionário que, intermitente ao longo de toda a República, despontou na década de 60 sem freios, não nos dá meios de desenvolvimento humano, pois foram solapadas as bases culturais fundamentais – língua e história -, as possibilidades reais, de avanço civilizatório, sendo excluída dos olhos das gerações que se seguiram toda comunicação verdadeira, toda percepção inteligente que não pudesse ser convertida em propaganda. Essa situação exige, além de uma sã filosofia que nos explicite esse problema, fundamente e oriente às soluções – tarefa já realizada pelo brilhantismo, coragem e dedicação do professor Olavo de Carvalho -, exige, dizia, a reconquista daqueles patamares da sensibilidade antes alcançados pela cultura nacional, daquela capacidade de absorção imediata das complexidades do fato concreto por excelência que é a vida humana.
Mas a literal incorporação dos patamares da sensibilidade é difícil, brasileiramente muito difícil. São muitas as dimensões que nos escapam por conta de uma formação educacional pífia. Os textos que compõem “Impressões e Expressões” nos mostram isso sem dó, a cada página. Para um singelo exemplo, basta pensar nas constantes evocações de músicas clássicas, também presentes num Marques Rebelo, Carpeaux, Érico Veríssimo, etc. Igualmente são valiosas as dicas de autores hoje completamente esquecidos – como o surpreendente contista Breno Accioly. Em outros estudos, mesmo quando dominamos o assunto, quiçá alicerçados numa melhor perspectiva clássica ou cristã, ainda assim com frequência as intenções mais profundas do autor nos escapam num primeiro contato, tendemos a ver uma opinião do tipo preto no branco, certo ou errado, embora provavelmente José Geraldo pretendesse pintar as variantes envolvidas, diretamente ou indicando as expressões artísticas consagradas, o que deveria ser suficiente para aflorá-las na consciência do leitor de sua época – e nós, sempre, reagindo como se de discussões políticas tratassem… Mas desesperar não é interessante, nem produtivo. Essa possível frustação e incompreensão iniciais são, por um lado, indicações de nossa consciência das dimensões artísticas que precisamos aprimorar em nós e, por outro, um belíssimo guia para a realização desse esforço: diagnóstico e terapêutica numa mesma deliciosa leitura.
Ao renascer nosso senso histórico, o diálogo das gerações se restabelece, começamos a aprender com as anteriores – mas as grandes distâncias exigem pontes. Francisco Escorsim reconhece sua posição estratégica, qualificou-se para esse trabalho e o assumiu como vocação. Tanto no ensaio biográfico que abre o livro, quanto nas suas diversificadas atividades de formação cultural que tem promovido, Escorsim se destaca por falar – e o faz numa admirável voz autêntica, contundente e límpida – a nossa língua, a dos esforçados que vislumbram a importância, mas não sentem ressoar todo o impacto das lições dos mestres de todos os tempos: pedagogia de emergência que presta bom auxílio em nossa inescapável lida pessoal com a tradição. E se José Geraldo Vieira SERVIU ao Francisco Escorsim na sua reconstrução interior, está claro que também deve nos interessar, merecendo o encontro deles em “Impressões & Expressões” ser desde logo conferido e celebrado, enquanto que os frutos desse dueto dependerão agora de nós.
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Detalhes do autor
Leandro Mello Ferreira
Capixaba, bacharel em direito, exerce o cargo de Procurador do Estado do Espírito Santo desde 2007. Aluno do Curso Online de Filosofia do professor Olavo de Carvalho. Organizou, com amigos, o Seminário Capixaba de Filosofia (SECAFI) em 2017 (“A filosofia de Olavo de Carvalho – o resgate da inteligência”) e 2018 (“Mário Ferreira dos Santos e a estrutura da realidade”).
Excelente texto, lembrando a grandeza literária de José Geraldo Vieira.
Parabéns Dr Leandro Mello Ferreira pelo perfeito Dueto q muito nos orgulhou a mim e a sua família e amigos Linharenses.