Viva a Morte da Literatura!

8, nov, 2024 | Artigos | 10 Comentários

 
Tempo de leitura: 11 minutos
 
Por Luiz Cezar de Araújo
 

No ano de 2015, após ter publicado pela Danúbio meu primeiro livro de contos, organizei em colaboração com os amigos Jefferson Bombachim e Ademir Amaral uma coletânea de textos de não-ficção de Machado de Assis, dessa vez para a editora Concreta.  Ali coligimos tudo — tudo mesmo — o que o nosso Mestre escrevera sobre literatura: artigos, longos ensaios, crítica literária, discursos, necrológios, prefácios, cartas abertas — tudo o que Machado de Assis dissera em vida sobre literatura. Chegada a hora de mandar para o prelo, veio a dúvida: que título daríamos a essa salada de relíquias? Lembro de ter proposto o título de um dos seus principais ensaios: O passado, o presente e o futuro da literatura. Era pomposo, mas não refletia o espírito do livro — tampouco o espírito do tempo. Veio em socorro dos organizadores, entretanto, a inteligência viva do editor: Renan Martins dos Santos bateu o martelo: o livro se chamará, como veio a se chamar, O remédio é a crítica.

Por que remédio? Remédio contra que mal?

O leitor entenderá bem facilmente se observar o texto de onde a frase-título foi tirada, um artigo chamado Propósito, de 1866, no qual Machado constata:

A temperatura literária está abaixo de zero. Este clima tropical, que tanto aquece as imaginações, e faz brotar poetas, quase como faz brotar as flores, por um fenômeno, aliás explicável, torna preguiçosos os espíritos, e nulo o movimento intelectual. Os livros que aparecem são raros, distanciados, nem sempre dignos de exame da crítica. Há decerto exceções tão esplêndidas quanto raras, e por isso mesmo mal compreendidas do presente, graças à ausência de uma opinião. Até onde irá uma situação semelhante, ninguém pode dizê-lo, mas os meios de iniciar a reforma, esses parecem-nos claros e símplices, e para achar o remédio basta indicar a natureza do mal.

Lembra alguma coisa, não? Lembra ou não lembra um certo país tropical, no ano da graça do lulopetismo de 2015? Sim. Machado falava da gente, falava da realidade em que vivíamos, mais de cem anos depois da publicação do artigo. E ele elencava duas causas para o mal:

A nosso ver, há duas razões principais desta situação: uma de ordem material, outra de ordem intelectual. A primeira, que se refere à impressão dos livros, impressão cara, e de nenhum lucro pecuniário, prende-se inteiramente à segunda que é a falta de gosto formado no espírito público. Com efeito, quando aparece entre nós essa planta exótica chamada editor, se os escritores conseguem encarregá-lo, por meio de um contrato, da impressão das suas obras, é claro que o editor não pode oferecer vantagem aos poetas, pela simples razão de que a venda do livro é problemática e difícil. A opinião que devia sustentar o livro, dar-lhe voga, coroá-lo enfim no Capitólio moderno, essa, como os heróis de Tácito, brilha pela ausência. Há um círculo limitado de leitores; a concorrência é quase nula, e os livros aparecem e morrem nas livrarias. Não dizemos que isso aconteça com todos os livros, nem com todos os autores, mas a regra geral é essa.

Volto ao meu livro, de 2014, e à Editora Danúbio, essa planta exótica que nasceu no pântano. Meu livrinho de contos foi também o primeiro livro da Danúbio. Desde então, Diogo Fontana, o editor, publicou já uma dezena de escritores contemporâneos, um deles, Milton Gustavo e o seu O Deus oculto no canto do córner, recentemente indicado entre os semifinalistas do Prêmio Jabuti. Diogo já publicou, entre outros, dois livros do Fabio Gonçalves, que também publica pela editora João & Maria, da Lorena Miranda Cutlak, publicou Alexandre Soares Silva, que dispensa apresentações, e mais uma porção de jovens escritores iniciantes.

O leitor, conhecendo o nosso país, por certo já adivinhou que o Diogo e os seus autores não escrevem e publicam para ganhar dinheiro. Se escrevemos, se organizamos coletâneas, se publicamos, se labutamos, na quietude da noite, como disse o poeta,

Não é por pão, nem por ambição,

Nem para em palcos de marfim

 Pavonear-me, trocando encantos,

 Mas pelo simples salário pago

 pelo secreto coração deles.

 

Como não escrevemos por dinheiro, se os livros venderão pouco ou muito, isso é absolutamente indiferente à nossa vocação e ao nosso orçamento doméstico. Não escrevemos para receber os elogios mútuos da patota, pela grana farta de cursos ruins de escrita criativa, pelas matérias nos cadernos de cultura da grande imprensa, pelos prêmios concedidos por jurados idiotas — em verdade eu vos digo: esses já receberem sua recompensa.

Quem escreve por vocação, recebe da literatura a sua recompensa, escreve

Não pelo homem altivo, alheio, mas pelos que se amando estreitam
Nos braços toda a dor das eras, que não louvam, não pagam, nem escutam…

O mal que a ausência de uma crítica literária causa, portanto, não é apenas aos jovens escritores, que podem e devem continuar trabalhando, apesar da sua ausência, mas ao ambiente cultural, ao país, aos leitores, ao povo. Aos escritores, a ausência de crítica literária é um inconveniente, um obstáculo a mais que terá de ser superado.

A ausência de crítica literária, se pode ser superada pela força da personalidade do escritor verdadeiramente vocacionado, causará no entanto danos irreparáveis ao ambiente cultural, à cultura do povo, que ficará a mercê do guiamento dos Felipes Netos e das Marthas Medeiros, dos suplementos culturais dos jornais e dos departamentos de letras das universidades, infestados de bestas-quadradas e de militância woke.

Como disse Machado, no seu artigo O Ideal do crítico:

São óbvias as conseqüências de uma tal situação. As musas, privadas de um farol seguro, correm o risco de naufragar nos mares sempre desconhecidos da publicidade. O erro produzirá o erro; amortecidos os nobres estímulos, abatidas as legítimas ambições, só um tribunal será acatado, e esse, se é o mais numeroso, é também o menos decisivo. O poeta oscilará entre as sentenças mal concebidas do crítico, e os arestos caprichosos da opinião; nenhuma luz, nenhum conselho, nada lhe mostrará o caminho que deve seguir, — e a morte próxima será o prêmio definitivo das suas fadigas e das suas lutas.

E qual o remédio para este mal que nos assoberba — pergunta Machado — este mal de que só podem triunfar as vocações enérgicas, e ao qual tantos talentos sucumbem?

O remédio já tivemos ocasião de indicá-lo em um artigo que apareceu nesta mesma folha: o remédio é a crítica. Desde que, entre o poeta e o leitor, aparecer a reflexão madura da crítica, encarregada de aprofundar as concepções do poeta para as comunicar ao espírito do leitor; desde que uma crítica conscienciosa e artista, guiar a um tempo, a musa no seu trabalho, e o leitor na sua escolha, a opinião começará a formar-se, e o amor das letras virá naturalmente com a opinião. Nesse dia os cometimentos ilegítimos não serão tão fáceis; as obras medíocres não poderão resistir por muito tempo; o poeta, em vez de acompanhar o gosto mal formado, olhará mais seriamente para sua arte; a arte não será uma distração, mas uma profissão, alta, séria, nobre, guiada por vivos estímulos; finalmente, o que é hoje exceção, será amanhã uma regra geral.

Veja o leitor a importância da crítica literária. O remédio é a crítica. E se falamos em crítica literária, qual o primeiro nome que nos vêm à cabeça hoje? Sim, Rodrigo Gurgel.

Ungido pelo professor Olavo de Carvalho como o principal nome da crítica literária dos nossos dias, Rodrigo Gurgel infelizmente não apenas não exerce o ofício de crítico como vem desestimulando abertamente a leitura de autores contemporâneos, como o sabem todos os que acompanham as suas publicações no Instagram.

Desfrutando do prestígio de primus inter pares da crítica literária, a cujo posto fora alçado subitamente pelo professor Olavo de Carvalho, o professor Gurgel desde então desprezou por completo a fundamental atividade de crítico literário para se dedicar apenas à venda de cursos na internet. Lamentavelmente, é preciso que se diga, o professor Gurgel abandonou o povo ao guiamento dos Felipes Netos e das Marthas Medeiros em troca da confortável — e rentável — função de gravar vídeos prometendo formar escritores, que — é preciso que se diga — nunca foram formados.

O professor Olavo confiou em Gurgel para, nas palavras de Machado, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos. Gurgel traiu a confiança do professor Olavo, abandonou de todo a crítica literária, não foi capaz de perceber a existência de vocações verdadeiras e talentos genuínos ao seu redor precisando de estímulo, guiamento, correção — muitos desses, os próprios alunos do professor Olavo.

Ao mesmo tempo em que estimula os seus alunos a escrever, argumentando (e com razão nesse ponto) que nem tudo já foi dito e escrito, uma vez que há coisas que somente o homem atual e sua circunstância atual podem dizer, ao mesmo tempo Gurgel aconselha a não ler os autores contemporâneos, a só ler os clássicos. É compreensível: para ler com proveito os contemporâneos, seria necessário, precisamente, que um crítico literário selecionasse e indicasse ao público leitor o que, dentre os contemporâneos, merece ser lido — papel que caberia, precisamente, a Rodrigo Gurgel e que ele optou por não exercer.

“Leiam os clássicos!” Ora, em primeiro lugar que ler os clássicos é a primeira obrigação de qualquer um que tenha a mais mínima ambição intelectual, de modo que um tal conselho faria inveja ao conselheiro Acácio.

Em segundo lugar, é preciso reconhecer que há uma evidente contradição em, de um lado, recomendar aos seus alunos que escrevam, e, de outro, recomendar que os alunos não leiam o que os autores contemporâneos estão escrevendo. É como se Gurgel dissesse: “você deve se tornar meu aluno, mas ninguém deve ler, agora, o que você está escrevendo”. Só no futuro, talvez, se, em façanha inédita, o jovem escritor vier a se tornar um clássico, mesmo depois de completamente desprezado pelos contemporâneos, é que merecerá ser lido…

Como aquele fariseu, Gurgel não entra e não deixa que entrem os que querem entrar; aquele que foi ungido pelo professor Olavo como o modelo de crítico literário dos nossos dias, vive do prestígio de ter sido alçado ao posto de maître à penser de uma geração, mas não faz crítica literária e, mais ainda, desestimula o leitor que queira conhecer o que se passa na alma triste dos seus irmãos na terra. É duro mas é preciso dizê-lo: é um crime de lesa-inteligência. É uma vergonha. É uma situação que nem Machado poderia imaginar. No passado o escritor tinha de batalhar contra a indiferença. Hoje, o escritor e seu editor têm de batalhar contra uma campanha aberta do próprio crítico literário. Abajo la inteligencia, viva la muerte.

Viva a morte da nossa literatura.

Leia apenas os clássicos, pare à porta da literatura contemporânea, não entre, mas não perca o prazo e matricule-se na minha turma de escrita criativa que está com inscrições abertas e você poderá quem sabe tornar-se um escritor, que, no entanto, não deve ser lido agora, talvez no futuro, quem sabe, se você vier um dia a ser um clássico, sem nunca ter sido lido…

Abajo la inteligencia, viva la muerte dos meus alunos.

 

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Detalhes do autor

Joseph Conrad

Luiz Cezar de Araújo

Nasceu em Palmas (PR) em 1981. Formou-se em Direito.

É autor de dois livros de prosa ficcional: A Vida é Traição (2014) e À Sombra do Pai (2017). Editou o volume O Remédio é a Crítica, coletânea de textos não-ficcionais de Machado de Assis, publicado em 2015 pela Editora Concreta.