Uma máquina de extinguir ternuras (e outras crônicas)
Por Alexandre Soares Silva
Tem um tipo muito característico que, sempre que vê uma manifestação de sentimento de ternura voltado a cachorros, fica aflito pensando em crianças para adoção. As duas coisas estão ligadas na mente dele: você fala “ca-“, ele berra “criança”. É como se houvesse uma guerra entre cachorros e crianças na mente dessa pessoa. Para aumentar os sentimentos de ternura dos outros em relação a crianças ele não se esforça nem metade do quanto se esforça para diminuir o sentimento de ternura dos outros em relação a cachorros. Não aparece em posts sobre surfe ou compra de tapetes persas, quando poderia muito bem sugerir que o dinheiro e o tempo das pessoas fossem gastos com crianças no lugar de serem gastos com surfe e tapetes persas. É invariavelmente quando falam de cachorros que ele aparece e manda parar tudo. E se você parar, está tudo bem; ele não vai continuar falando de criança. Não me arrisco a imaginar os motivos disso, se foi mordido na infância por um lhasa apso sapeca ou o quê; mas sob a aparência dos bons sentimentos esse tipo de sujeito é só uma máquina de extinguir ternura.
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Se um pensamento foi pensado de forma viva, vai ser exprimido por si só numa forma adequada, mesmo se o escritor é semiletrado: ele foi pensado com uma espécie de eletricidade que o molda numa forma perfeita. Mas se o desejo do escritor foi primeiro escrever algo bonito, e só depois tentou arranjar um pensamento que coubesse na forma, a forma mesma vai ser insípida, desagradável, murcha – e, o pior dos defeitos, poética no sentido de “poética”.
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O escritor que, por modéstia, fala mal de algo que escreveu, fala mal de nós por termos gostado do que escreveu. Nesse caso, nada mais rude que a modéstia. Mas o escritor que se gaba do que escreveu nos gaba por termos gostado do que escreveu: como a vaidade alheia às vezes é agradável! Ela é um convite para uma sociedade secreta: a muito seleta de nós que me amamos.
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Detalhes do autor
Alexandre Soares Silva
Alexandre Soares Silva nasceu em 1968. Publicou três romances, A Coisa Não-Deus, Morte e Vida Celestina e A Alma da Festa, além de uma coletânea de ensaios, A Humanidade é uma Gorda Dançando em um Banquinho. Trabalha como roteirista e vive em São Paulo.