Uma idolatria infantil
Por Fábio Gonçalves
Peitozuda. Foi esse o apelido que pusemos.
Sim, cabe toda sorte de censuras a moleques de nove anos que andam com semelhantes malícias na ponta da língua. Mas éramos alunos de programas de auditório; audiência passiva da novela das oito; nos fizemos gente já com essa boca frouxa e com esse olhar oblíquo dos marmanjos dos andaimes e oficinas.
O fato é que a chamamos peitozuda, e com todo motivo.
Ela irrompeu no pátio do Raul Saddi empinando aquele busto de Vênus. Palavra, empinando. A diaba, aluna adiantada dos mesmos mestres, já sabia fazer dengos de mulher, embora não somasse muito mais que a nossa idade. Aliás, na compleição acusava ser mais velha, tanto que suspeitamos tratar-se de nova professora, a que decerto seria a mais amada e respeitada. Mas, não. Tratava-se apenas de uma aluna vacilante da 4ª série, vinda repetente sabe-se lá de qual colégio. Chegou ali com ano e meio de atraso. Tinha corpo e idade para estar na 5ª, ou na 6ª, na escola dos grandes, lá onde tinha aula de Química e Inglês, e onde a Matemática era resolvida na base da letra.
Quantas primeiras brasas do amor não se acenderam naquele dia. No pátio do Raul Saddi houve fogo para torrar mais uma Tróia. Os meninos abobalhados; as meninas conferenciando suas invejas sob a aparência do desdém. Toda aquela minicomunidade foi posta em movimento pelos peitos arrebitados e pelos olhos verdes da peitozuda, porque além do mais ela tinha os olhos muito verdes, e um olhar muito do atrevido.
— Se Deus fez coisa mais bonita, ainda não mandou pra Terra — soprou-nos o Wander, papagueando xaveco que ouvira de um tio.
Todos assentimos, contemplando-a feito patetas.
E eu mais que todos.
Caí enamorado. Na verdade, na primeira infância fui o maior apaixonado de todos os tempos e regiões. Tinha amores de um Álvares de Azevedo. Me apaixonava de chorar pelos cantos, na calada da noite; amava minhas ninfas da favela até o cúmulo de a elas rabiscar poemas, mesclando versos dos pagodes e sertanejos que à época formavam a minha preferência musical.
Pensei futuros com a peitozuda. Dei-lhe filhos e casacos de vison. Passeamos de limosine e de barco, sobrevoamos inteiro o mundo que, naquela época, para mim, era bastante simples e miúdo. Passei dias e mais dias nesse arrebatamento fanático.
E saiba que não era desonesta a minha paixão. O fogo inicial, de causa animalesca, forjou em mim um sentimento maciço e purificado. Claro, não tão maciço e purificado que o tempo, em sua diligência atroz, não conseguisse enferrujar, esboroar e, ao cabo, tornar em fina poeira.
Tão repentino quanto o aparecimento foi o seu sumiço. Frequentou o Raul Saddi, no turno matinal, no máximo por um mês. Nem isso.
Sofri a sua ausência. Carregava no peito aquela pesada estátua de bronze, alheia ao seu molde, e andava me arrastando, prostrado, sem ânimo e força nem para o futebol depois do colégio, nem para o videogame na casa do Alex. Custou aliviar-me dessa opressão.
O tempo é que foi erodindo o monumento — não que desbastasse, na minha memória, as suas feições, que me eram metafísicas, e por muito tempo me restaram completamente intactas, como as coisas do Céu. Mas o fardo foi relaxando, fui reerguendo-me da fossa, dessa sarjeta infantil. Depois de um tempo já não sentia o pesa da carga. A vida foi voltando ao seu normal. Vieram outros amores de menino, todos igualmente impossíveis. Os anos correram desabalados.
Cheguei ao colegial, no período noturno. Todo mundo ensaiando vida de adulto. Já eram trabalhadores, jovens mães de família, de filhos sem pai, gente experimentada em drogas e no sexo. Pelo menos fingidamente experimentada.
Logo no primeiro dia reencontrei a peitozuda. Estava no pátio, em roda de amigas. Tive um susto. Engordara, o rosto se havia transfigurado numa aglomeração de cravos e espinhas, os peitos tornaram-se desoladamente banais, não geravam as antigas comoções e maravilhamentos. No pátio, num lance de olhos, se achava uma centena de pares melhores.
Nesse dia finalmente humanizei aquela deidade da infância. E não só ela como todas as mulheres, que até então julgava não serem criaturas deste mundo. Fosse intelectual, gritaria como o Nietzsche, fazendo risinho sarcástico de super-homem: a deusa está morta!
Naquele noite, passei do mito à filosofia
Dez anos mais tarde a surpreendi cansada no metrô. Os cabeceios no vidro, a boca lamentavelmente aberta, o corpo lasso, tudo indicava um dia estafante, em serviço braçal. Imaginei que fosse loja de roupas. Entrara às 8h, e já eram 20h. Reparei que estava ainda mais gorda, os peitos muxibas. As espinhas da adolescência sulcaram sua pele. Nem os olhos verdes compensariam o quadro. Não a diria feia. Mas, em face da imagem que firmara em minha cabeça, tinha decaído muito, do Olimpo à Terra, à Zona Sul de São Paulo. Tive dó. Eu, que fora seu cativo, tive enorme pena do seu destino.
Detalhes do autor
Fábio Gonçalves
Fábio Gonçalves nasceu em 1990. Professor de História e Redação. Jornalista e articulista. Escreveu para a Agência Estudos Nacionais; atualmente colabora no jornal Brasil Sem Medo. Casado com a Ana Beatriz, pai do Pedro Augusto. Mora em Diadema.