Uma idéia medíocre (conto)

2, ago, 2021 | Artigos | 0 Comentários

 
Por Léon Bloy
 

Eram quatro e passei a conhecê-los muito bem. Se pouco te importas, nós os chamaremos de Teodoro, Teódulo, Teófilo e Teofrasto.

Não eram irmãos, mas viviam juntos e não se separavam por um minuto. Não se podia ver um deles sem que os outros três aparecessem imediatamente.

O líder do esquadrão era naturalmente Teofrasto, o último que referi, o homem dos Carácteres e julgo que ele era digno de comandar seus companheiros, pois sabia comandar a si mesmo.

Era uma espécie de puritano seco, atrelado a certezas, meticuloso e auscultatório. Exteriormente, ele tinha, ao mesmo tempo, algo de idiota e de avaliador de sucursal de casa de penhores em um bairro pobre.

Quando lhe davam bom dia, sempre parecia estar recebendo uma garantia e sua resposta era como uma avaliação de especialista.

Interiormente, sua alma era o estábulo de uma mula inexorável, do tipo que se cria com tanta solicitude na Inglaterra ou na cidade de Calvino para o transporte de ataúdes brancos.

No entanto, não queria que as pessoas o imaginassem protestante, afirmando-se católico até a ponta dos cabelos, ostensivamente colocando seu coração para secar nas estacas da Vinha dos Eleitos.

Seu fundo deveria ser casto e, acima de tudo, parecer assim. Casto como um cravo, como uma tesoura de poda, como um arenque defumado! Seus acólitos o proclamaram inviolável e inflexível, não menos alvo e lactescente do que o tênue manto dos anjos.

Atrevo-me a dizer isso? Ele olhava para as mulheres como cocô e o cúmulo da demência teria sido incitá-lo a dar risadas. De um modo geral, desaprovava a aproximação dos sexos e qualquer palavra que evocasse o amor parecia-lhe uma agressão pessoal.

Ele era tão casto que teria condenado a saia dos zuavos[1].

Tal, em linhas gerais, a fisionomia deste chefe.

Permitam-me esboçar os outros.

Teodoro era o leão do grupo. Era seu orgulho, a elegância, e era quem se apresentava em questões de diplomacia ou persuasão, pois Teofrasto carecia de eloqüência.

É verdade que nessas ocasiões Teodoro se embebedava para melhor rugir, mas se saía bem para satisfação geral.

Era um leãozinho da Gasconha, infelizmente privado de juba, que se gabava de pertencer à famosa família, hoje quase extinta, dos Teodoro de Saint-Antonin e Lexos, de quem as margens do Aveyron conheceram a glória.

Teria sido errado ignorar que suas armas, as orgulhosas e nobres armas de seus ancestrais, foram esculpidas no pórtico ou em qualquer outro lugar da catedral de Albi ou de Carcassonne. A viagem custaria muito caro para que pudéssemos fazer uma verificação, inútil aliás, já que ele dava sua palavra de cavalheiro.

Essas armas modeladas em papel vegetal, com atenção, na Biblioteca Nacional, não me foram mostradas, mas o lema: Pelo sangue azul! sempre me pareceu tão simples quanto magnífico.

Em suma, este Teodoro fascinava, deslumbrava seus amigos cuja ancestralidade era, ai de mim! tão camponesa. Porém, ele não poderia se passar por chefe, pois todo brilhantismo deve ceder à sabedoria. Era o monótono mas impecável Teofrasto quem os unia em um feixe para que as tempestades da vida não os quebrassem. Era ele quem os mantinha assim todos os dias, ensinando-lhes a virtude, instruindo-os a viver e a pensar, do mesmo modo que o fervoroso Aquiles aceitara nobremente obedecer ao oracular Nestor.

Teódulo e Teófilo podem ser traduzidos em poucas palavras. O primeiro não tinha nada de notável a não ser sua aparente robustez de boi dócil e pleno de inconsciência a quem poder-se-ia obrigar a lavrar um cemitério. Ele simplesmente se alegrava por marchar sob o aguilhão e quase não precisava de luz.

O segundo, ao contrário, marchava por medo. Não considerava o chicote como algo lá muito espiritual ou muito divertido; mas deixando-se atar por Teofrasto, sequer ousava conceber a idéia de uma deserção, e tremia por desagradar aquele homem formidável.

Era um rapaz muito jovem, quase uma criança, que merecia, creio eu, uma sorte melhor, pois me parecia dotado de inteligência e sensibilidade.

 

 

Eis então a idéia miserável, a imbecil idéia de jerico a qual esses quatro indivíduos se atrelaram. Se alguém puder encontrar idéia mais medíocre, serei pessoalmente obrigado a me informar a respeito.

Imaginaram realizar em quatro a misteriosa Associação dos Treze sonhada por Balzac. Sonho pagão, se é que houve em tempo algum. Eadem velle, eadem nolle[2], dizia Salústio, um dos mais atrozes canalhas da antiguidade.

Ter apenas uma alma e apenas um cérebro repartido em quatro epidermes, ou seja, no fim das contas, renunciar à própria personalidade, tornar-se número, quantidade, conjunto, fração de um ser coletivo. Que projeto genial!

Mas o vinho de Balzac, inebriante demais para essas pobres cabeças, tendo-os embriagado, num estado que lhes pareceu divino, comprometeu-os por juramento.

Leste corretamente? Por juramento. Sob que evangelho, sob que altar, sob que relíquias? Infelizmente, não me disseram, pois eu teria muita curiosidade em saber. Tudo o que pude descobrir ou conjecturar é que, por fórmulas execratórias e pelo testemunho de todos os abismos invocados, eles se devotaram a essa existência absurda de nunca ter um pensamento que não fosse do seu próprio grupo, não amar ou odiar qualquer coisa que não fosse amada ou odiada em comum, nunca guardar o menor segredo, ler todas as suas cartas e viver juntos para sempre, sem se separar um dia só.

Naturalmente, coube a Teofrasto instigar esse ato solene. Os outros não teriam ido tão longe.

Empregados os quatro na mesma repartição de um ministério, foi-lhes possível realizar a parte essencial do programa. Dividiam o mesmo alojamento, a mesma mesa, as mesmas roupas, os mesmos credores, os mesmos lazeres, as mesmas leituras, a mesma desconfiança ou o mesmo horror de tudo que não fosse sua quadrilha, e se enganavam da mesma forma a respeito das coisas e dos homens.

A fim de ficarem por completo uns com os outros, abandonaram abjetamente seus velhos amigos e seus benfeitores, entre os quais um mui grande artista que tiveram a incrível sorte de cativar por um momento e que tentou protegê-los contra a tendência a chafurdar de quatro, feito suínos…

Anos se passaram assim, os melhores anos da vida, pois Teofrasto, o mais velho, mal tinha trinta anos quando a associação começou. Tornaram-se quase famosos. O ridículo tanto lhes acompanhava que precisaram mudar de bairro várias vezes.

O bom povo se comovia à passagem desses quatro homens tristes, esses escravos acorrentados da Tolice, vestidos da mesma maneira e avançando no mesmo compasso, que semelhavam enterrar suas almas, e a quem vigiavam atentamente os gendarmes cheios de suspeição.

 

 

Aquilo estava naturalmente fadado a terminar em drama. Um dia, o combustível Teodoro se apaixonou.

Mantínhamos o mínimo de relações possível, mas, enfim, mantínhamos. Uma jovem abandonada por Deus acreditava fazer bem ao se casar com um cavalheiro cujo brasão certamente enfeitava a catedral de Albi ou a catedral de Carcassone.

É claro que não contarei a história infinitamente complicada desse casamento que mudou, da maneira mais completa e profunda, a existência mecânica de nossos heróis.

Desde o primeiro ataque da enfermidade, Teodoro, fiel ao programa, abriu o coração a seus três amigos, cujo estupor atingiu o ápice. Primeiro, Teofrasto exalou indignação sem limites e espalhou, em termos atrozes, o mais negro veneno sobre todas as mulheres, sem exceção.

Quase brigaram e o Sainte-Vehme estava prestes a se dissolver.

Teódulo se liquefez de dor, enquanto Teófilo, secretamente faminto por independência e fazendo votos que uma revolução estourasse, mas não ousando se declarar, guardava um silêncio sombrio.

No entanto, tudo se acalmou, o equilíbrio artificial foi restabelecido; cada bloco, elevado por um breve momento, caiu pesadamente em seu encaixe; e o terrível peão Teofrasto, considerando que seu rebanho ia, enfim, aumentar em uma unidade, acabou por florescer na esperança de uma dominação mais ampla.

Em bando, foram os inseparáveis pedir, por Teodoro, a mão da infeliz que não via o abismo onde a precipitava o seu desejo cego de esposar um valentão.

O inferno começou no primeiro dia. Ele estava convencido que a vida conjunta continuaria. Os recém-casados ​​conseguiam, é verdade, ficar sozinhos durante a noite, mas, como antes, todos deviam estar de pé em um determinado horário e ninguém vacilava na observância dos regulamentos mais monásticos.

Teodoro tinha de prestar contas todas as manhãs exatamente do que havia sido feito na escuridão do quarto conjugal, e a pobre mulher logo descobriu com horror que havia se casado com quatro homens.

O futuro mais terrível se desenrolou diante de seus olhos, um dia depois de suas tristes núpcias. Ela viu em cheio a estupidez ignóbil do rastaquera de quem se tornara esposa e o aviltante estado de escravidão que resultava dessa afiliação de imbecis.

As cartas endereçadas a ela foram abertas pelo odioso Teofrasto e lidas em voz alta na frente dos outros três, em sua presença. O búfalo espalhava seus excrementos e sua baba impura sobre as confidências de mulheres, mães, meninas.

Com o consentimento de seu marido, a tirania deste pulha abominável foi exercida sobre sua toalete, seu vestuário, seu apetite, suas palavras, sua aparência e seus menores gestos.

Sufocada, pisoteada, murcha, desesperada, ela caiu em profundo silêncio e se pôs a invejar, de todo o seu coração, os bem-aventurados que viajam em carro fúnebre sem nenhum cortejo a lhes acompanhar.

 

 

No início, a quadrilha a trancava a sete chaves, quando ele ia ao seu escritório, onde a administração não teria permitido que a levasse.

Inconvenientes muito sérios o forçaram a relaxar desse rigor. Então, ela se viu livre ou pôde acreditar que estava livre para ir e vir, cerca de oito horas por dia.

Ela ignorava que o porteiro, muitíssimo bem pago, registrava suas entradas e saídas e que os espiões postados nas ruas vizinhas a vigiavam atentamente a cada passo.

A prisioneira, portanto, aproveitou esse simulacro de alvará de soltura para se inebriar com um ar diferente daquele do infame claustro, onde ela nem mesmo ousava respirar.

Ia ver parentes, velhos amigos, passeava no boulevard e no cais. Foi punida com cenas de violência diabólica e ficou ainda mais infeliz: pois Teodoro, além de suas outras qualidades encantadoras, tinha ciúmes como um Barba-Azul[3] da Cabília[4].

Foi demais. Aconteceu o que, naturalmente, infalivelmente tinha que acontecer sob tal regime.

Madame Teodoro ouviu sem desagrado as palavras de um estranho que lhe parecia um homem de gênio em comparação com tais idiotas. Ela o via tão belo como um Deus, porque não se assemelhava a eles, e julgou-o infinitamente generoso porque falava com ela com suavidade; tornou-se de imediato sua amante, num transporte de indizível alegria.

O que veio a seguir foi relatado recentemente no noticiário local.

Fiquei sabendo, contudo, que na mesma noite da desgraça, estando os quatro homens reunidos, o Demônio lhes apareceu.

Tradução: Diogo Fontana

 

[1] Soldados argelinos. [N.T.]

[2] Amar as mesmas coisas, repudiar as mesmas coisas. [N.T.]

[3] Personagem de um conto infantil de Charles Perrault (1628-1703), Barba- Azul agia com violência contra a sua mulher. [N.T.]

[4] Região montanhosa da Argélia. [N.T.]

 
 
Inscreva-se em nosso canal no Telegram: https://t.me/editoradanubio

Artigos recentes

Viva a Morte da Literatura!

O professor Olavo confiou em Gurgel para, nas palavras de Machado, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos. Gurgel traiu a confiança do professor Olavo, abandonou de todo a crítica literária, não foi capaz de perceber a existência de vocações verdadeiras e talentos genuínos ao seu redor precisando de estímulo, guiamento, correção – muitos desses, os próprios alunos do professor Olavo.

Caixa de Bombons (conto)

Conto de Samuel Freitas — “Fica difícil chegar às Olimpíadas e ganhar a medalha de ouro se não tenho como manter meu treinamento aqui em casa. Falta-me bolinhas brancas, uma grande mesa verde, um penico prateado. Tentei por outra coisa no lugar, mas não me deixam ou não dá lá muito certo. As bolinhas de outras cores que tirei da betoneira do caminhãozinho não pulam como deveriam”.

Cineastas Assinam Manifesto Contra a Cultura Woke

Artistas lançam manifesto contra a cultura woke e pela liberdade das artes. Grupo afirma que o povo nunca esteve tão distante das artes e que a cultura brasileira vive seu ápice de censura.

Categorias

Exegese dos Lugares-Comuns

Detalhes do autor

Léon Bloy

León Bloy (1846-1917) foi um romancista e ensaísta francês, grande prosador, considerado um dos maiores polemistas do seu tempo. 

Entre suas principais obras estão os romances Le Désespére (1887) e La Femme Pauvre (1897); além de dezenas de ensaios sobre temas culturais e religiosos.