Uma Hora de Silêncio (conto)
Por André Paião
As casas de condomínio, por vezes, são todas iguais, enquanto as casas de subúrbio têm cada qual sua feiura. Na periferia, os cães não diferenciam o lado de dentro do lado de fora do portão. Tampouco os moradores fazem essa distinção. Às vezes nem há portão. Os cães não andam nas calçadas, como ocorre nas praças, pois o cheiro dos homens está espalhado pelas ruas em todas as direções, como se fosse um gramado. Nessas margens da cidade aprendi a viver. Há quem proclame esse habitat como uma escolha, uma decorrência da própria natureza — quase genética! Olhe, se dependesse de mim… Parto já daqui, tão logo apareça um cantinho melhor.
Veja se isso é começo de dia. Saio para trabalhar, oito e pouco da manhã. Perco o ônibus. Se tomo o seguinte, tenho que esperar o último na rua por meia hora, não casam as frequências, então é melhor aguardar em casa. Os vagabundos não aparecem tanto às seis, às sete. Das oito às nove são besouros em tempo de chuva. É impossível explicar de onde saíram. No inverno? O frio é mais eficaz que a polícia. Falava do atraso – sim, cerca de oito horas abro a porta e dou de cara com um vendedor do outro lado da rua. Ao ganhar a calçada percebo que há mais deles também na calçada de cá, à espera de compradores. Trabalho fácil: esperar, receber, vender, enriquecer. Se sua expectativa de vida não fosse de trinta ou quarenta anos, tenho minhas dúvidas se me manteria tão resistente quanto sou. Olhando de fora pode parecer estranho, mas para quem está todos os dias por essas bandas não soa como algo de outro mundo optar pela carreira de vagabundo. Meu primo, Elieser, é vagabundo, veio para o aniversário de minha mãe cantar os parabéns. Ele comprou um kit do Boticário, encheu-a de abraços e beijos, não há dúvidas de que ame a tia. Mas vende droga. Minha mãe não sai da igreja, fico aqui pensando: será que ela já desejou bom trabalho a ele? Será que ele agradeceu? Agradeceu e pensou no que aquilo queria dizer?
Estavam então os vagabundos, esperando a clientela. Nenhum deles era o Elieser e não reconheci nenhum de vista, o que não é comum. Torci para que não mexessem comigo. Apareceu uma menina branquela, com jeito de alemã ou francesa, o cabelo trançado. Veio buscar o produto e por isso tomou toda a atenção para si, dando-me o privilégio de ser um espectador, o que não seria autorizado sem aquela sua presença, circulando, circulando.
Quem não sai dali pede para ser desafiado. Um vizinho de cima, de luto, foi coagido a apresentar a própria mãe para uma chefia local, Kevin, Maicon, algo assim. Silva era o sobrenome, estou certo. Imagine-se de repente sem pai, sua mãe sem o marido. Saiu de casa e não voltou, o homem, história comum. Boatos de que envolvia as chefias locais, mas não se pode falar muito disso. Ninguém quer desaparecer. O jeito é fingir que nada sabe: todos fingem que não sabem o que todos sabem perfeitamente bem. E o tal de Silva se encantou com a mãe do rapaz, a mãe de trinta e oito anos, jeitosa. O filho já com vinte, tentando trabalhar honestamente, fugir dos corres errados. Deu azar na rua, não tinha jeito de sair desse poço…
Está agora o Silva dormindo na cama da mãe dele. Até toma café antes de ir trabalhar.
Eu é que não vou ficar parado na rua vacilando.
Mas tinha a menina com jeito de europeia, magrela. Foi comprar um som.
– Eu preciso de um bluetooth, cara. É pra tocar na rua.
– Tocar na rua sai caro, princesa.
– Tô sabendo, valeu? Quanto vai ser?
Os sujeitos arrumaram um som para ela. Jeitado, disseram.
Antes de conseguir sair da “comunidade”, pelo que ouvi ao fim do dia, dois moleques arrancaram o som das mãos dela. A menina não se machucou, mas ficou sem o produto e sem o dinheiro. Os moleques, caso os peguem, clamarão por misericórdia.
Os traficantes detêm o monopólio do comércio de aparelhos de som, é uma briga desgraçada. As famílias de bem escondem seus aparelhos em casa. Os vagabundos sabem, mandam alguém pular lá dentro e levar, trabalho fácil, não se pode chamar a polícia para registrar a ocorrência. São os nóias contra os cidadãos, mas todos viciados na mesma porcaria. Começa com radinho a pilha. Depois o vagabundo quer ostentar o sonho de vida, como chama? Acho que é… JLB? JBM? Algo assim. Você compra e vende, assume o risco de se foder se um traficante maior não gostar de você, ou imaginar que é um futuro concorrente na carreira… Se tudo der certo em poucos anos terá um sistema de áudio completo no próprio barraco, o que poucos têm. A polícia não consegue subir o morro e levar embora o contrabando: é armamento de guerra em cima do BOPE. Vale a vida de um policial para levar um só sistema de som? De onde saiu um, sai outro. Na fronteira com a Bolívia, com a Venezuela, com o Paraguai, sempre alguém consegue passar com um sistema de som escondido, ou com uma leva de aparelhos menores. De início o viciado se encanta pela música, começa a remexer naturalmente as ancas, sem que ninguém o ensine. Em poucas semanas de uso, isso não basta. Não por acaso os vagabundos ostentam seus rádios bluetooth nos ônibus de periferia. Nas redes sociais é possível ver cenas inacreditáveis, cenas de ficção: os vagabundos passeiam com carros caríssimos, algumas caminhonetes. Atrás, na caçamba, dez ou quinze rapazotes magrelos ostentam sobre o ombro, cada um, seu sistema de som, ensurdecedor, uma afronta clara aos limites do sistema. Quem manda ali são eles, rapaz. “Vem tirar meu rádio, vem”.
A coisa nunca termina bem. O dono do morro, o miserável, construiu uma parede de caixas de som que só aumenta, bem lá no pico. Quando resolve ligar dá para ouvir do outro morro, para lá da quebrada em que trabalho. As biscates aparecem querendo o som delas, sabem que não tem outra pessoa que possa oferecer. Até conseguem o que querem, mas não é raro que arrumem um menino para criar na troca. Tentam impor condições, falam que criam a prole, mas o dono do morro tem que honrar as bolas e pelo menos garantir que a criança vai ter um aparelho de som pra começar a vida quando crescer, seja para ouvir, seja para vender e ganhar uns trocados. Quem sabe para comprar o próprio barraco. A vida não para, não perdoa.
Estou há cinco anos procurando anúncios de casas humildes onde haja algum silêncio. Não sei mais o que é o silêncio. Ouvi falar que há quem pague caro, e ainda se arrependa, achando que vai ter silêncio por uma hora! Propaganda enganosa. Torra um dinheiro que poderia pagar uma moto velha, pagar uns aluguéis – bem, o pessoal que paga por uma hora de silêncio não tem o que fazer, ninguém devolve o dinheiro quando descobre: durante a hora de silêncio, mesmo que a sala tenha perfeito isolamento acústico, há ainda um zumbido. O zumbido não para de tocar.
Detalhes do autor
André Paião
Nasceu no interior de São Paulo em 1994. Em paralelo à profissão, foi conquistado pela prosa – desde 2018 escreve contos, certo de que os assuntos de todos os tempos e o retrato dos tipos humanos importam mais do que as notícias, já vencidas, da última semana.
Gostei muito do conto…é uma viagem vc começa pelo condomínio e vai até o morro… a sua imaginação vai junto e realmente é tudo que acontece.. é muito bom.
Li o conto me perguntando: será que o autor nasceu ou morou na periferia? Resolvi que sim. O titulo do conto foi o que me chamou a atenção, e aí foi um passeio para mim. Que talento! Sempre morei na periferia, com a maioria das casas habitada por famílias normais. Sem árvores, e sem lugares de lazer, porque é assim que decidem os prefeitos, e onde os ônibus também evaporam. O silêncio? Foi desparecendo aos poucos, roubado por caminhões, carros, motos e batidões,
Um conto que só poderia sair de uma mente privilegiada como essa, orgulho de ter te visto crescer!
Sou uma leitora suspeita, por ser mãe. Mas, amo ler e leio com entusiasmo os seus contos…curiosa, com expectativas para o próximo!