Um Romance Estacionário
Salvar o Fogo. Por Itamar Vieira. Todavia, 320pp., R$ 54,92 (brochura)
Por Douglas Lobo
Um dos maiores equívocos em círculos literários brasileiros é o de que a literatura “séria” prescinde de trama, isto é, de ações desencadeadas por personagens e que levam a um desenlace. Essa ideia, de que uma obra de ficção se sustenta só pelo estilo do autor, sem uma engrenagem a movimentá-la, permeia — e compromete — o último romance de Itamar Vieira, Salvar o Fogo (São Paulo: Todavia, 2023.)
Ambientado no povoado fictício de Tapera do Paraguaçu, na Bahia, Salvar o Fogo traça o retrato de uma família pobre (cujo sobrenome, salvo engano, nunca é mencionado) que vive em terras pertencentes à Igreja, detentora de um mosteiro na região. O patriarca da família, Mundinho, trabalha na lavoura e uma de suas filhas, Luzia, lava roupa para os monges.
Digo que o livro “traça o retrato” porque é isso: Salvar o Fogo é um romance estacionário, em que pouquíssima ação ocorre. Não me refiro a incidentes rocambolescos, mas a atos de personagens que desejam algo e, com isso, põem em andamento a história. A obra é composta de cenas esparsas, quase esquetes ou “fatias de vida”, cujo único elo em comum é um grupo de pessoas. E nenhuma delas parece querer algo de definido e tangível. Sobrevivem dia a dia, em uma rotina cujo fastio contamina o próprio romance.
É um exagero, claro, dizer que nada acontece com esses personagens; não há agrupamento humano em que ações não ocorram. Porém, pouco sucede que seja digno de um romance. Afinal, pouco da vida merece a ficção — e cabe ao escritor selecionar os momentos únicos que dão à história progressão e sentido.
O romance até poderia funcionar como “estudos de personagens”, tivessem estes a singularidade e a motivação marcantes nas grandes figuras de ficção. Não é o caso. Os seres humanos retratados aqui vivem ao rés-do-chão: nada ambicionam; são comuns, sem a forte individualidade requerida de uma criatura ficcional; os incidentes por que passam são banais, com exceção de alguns momentos transformadores que o autor por algum motivo não desdobra, negando-lhes assim significação. Depois de certo número de páginas, queremos que algo aconteça, que os personagens se movimentem em busca de algo. Cada capítulo é uma promessa — jamais realizada — de que a história avançará.
O senso de estagnação é ampliado pela estética do romance. Tido (por causa de sua estreia, Torto Arado) como um regionalista na linha de Jorge Amado, em Salvar o Fogo Itamar Vieira escolhe outro caminho: o naturalismo. O meio físico e social é o grande protagonista do romance. De fato, Tapera Paraguaçu a tudo perpassa; o povoado é que oferece as possibilidades e os limites dos personagens; e é também o único, verdadeiro obstáculo externo aos membros da família — um obstáculo tão massacrante que estes sequer ousam a imaginar vida além.
Do mesmo modo como a Tapera sufoca os personagens, o naturalismo limita os voos que Salvar o Fogo poderia atingir. Nessa estética literária, os personagens estão sempre abaixo da situação e, mesmo, do nível humano médio. Itamar Vieira segue o postulado à risca, talvez por achar que personagens massacrados pelo meio despertarão simpatia no leitor. Mas o que vemos (com exceção talvez do filho caçula, Moisés) são seres humanos patéticos, dignos não de simpatia, mas daquela pena que é irmã do desprezo. A mesquinharia os domina, por dentro e por fora, sem faltar inclusive descrições escatológicas que os degradam ainda mais.
Ao consagrar o meio como a grande força intransponível, Itamar Vieira amarrou as próprias mãos. Os poucos momentos em que os personagens ameaçam sobrepujar os limites do povoado, como quando Moisés se fascina por livros, ou quando sua irmã, Luzia, decide viver a vida nos próprios termos, não têm desdobramentos. Sim, Moisés foge para a cidade grande, mas isso não tem nada a ver com o fascínio pela leitura; comprova-o o fato de que só segue o caminho dos irmãos mais velhos, que não liam. Seu movimento migratório é o de tantos nordestinos do passado, sem maior singularidade.
Ao não desdobrar esses momentos significativos, Itamar Vieira comete um dos pecados capitais de um escritor: não deixar que seus personagens adquiram vida própria. Como um pai controlador, escolhe conduzi-los com mão forte em vez de deixar que tracem o próprio caminho. A sensação é de frustração quando percebemos que Moisés e Luzia poderiam ter alcançado a grandeza se o romancista (ó ser opressor!) lhes tivesse permitido.
A mão-de-ferro de Itamar Vieira curiosamente não se manifestou na construção do tema. Durante a maior parte das páginas, não se sabe o que o escritor quis dizer com seu romance. Temas potenciais emergem, em especial nos poucos momentos de mudança significativa nos personagens. Assim, quando Moisés entra na escola e, por meio dos livros, percebe as limitações do ambiente provinciano — estava aí o mote para um tema poderoso. Do mesmo modo, quando Luzia, com a vivência da idade, decide viver a vida nos próprios termos, em uma libertação do meio — temos aí de novo a semente de um assunto. Mas o autor se recusou a entrar nessas e em outras portas temáticas.
É só no “desfecho” do livro, se podemos chamá-lo assim, que lhe conhecemos o tema: a descoberta da identidade étnica “profunda” (a dos antepassados) e de como isso pode dar força, talvez até sobrenatural, aos personagens para enfrentarem o ambiente hostil. Mas ao esconder o assunto até o final, em busca de uma reviravolta, o autor fragiliza-o; um twist pode ser de trama e personagens, mas nunca de tema — este deve ser trabalhado ao longo da obra e não aparecer de surpresa no fim. Há, é verdade, alguns momentos em que o tema é prenunciado (no incêndio na casa da família, no ninho de cascavéis e no de urubus), mas ele deveria ter perpassado, mesmo que sutilmente, todo o romance. Trabalhar um tema significa convencer o leitor de algo e não se consegue isso só nas páginas finais.
Todos esses problemas — de história, digamos assim — poderiam ser deixados de lado, tivesse Itamar Viera um estilo vigoroso o suficiente para conduzir por si só o leitor. Mas isso não se verifica.
Não que o estilo de Itamar Vieira não tenha méritos. O maior deles é sua habilidade nas descrições, que, detalhadas, dão um grande nível de realismo à trama. Ele também parece se preocupar em não repetir descrições já desgastadas dentro da literatura regionalista brasileira, o que injeta frescor na linguagem. Isso não o impede de aqui e ali recair em clichês, mas estes são ocasionais e poderiam ter sido eliminados com uma edição mais apurada.
No todo, o estilo de Itamar Vieira tem ritmo. Algumas descrições excessivas tornam a leitura lenta, mas o texto é em geral corredio e atesta um escritor familiarizado com a palavra escrita.
No entanto, há sérios problemas de forma em Salvar o Fogo.
Na voz narrativa, o autor comete o erro de colocar personagens diferentes narrando a história em primeira pessoa, sem diferenciar a linguagem de cada um. Tampouco eles falam como “gente da roça”.
Nos tempos verbais, a história se torna confusa ao retratar flashbacks no mesmo tempo (pretérito perfeito) da narrativa (“eu disse, eu falei etc.”), sem recorrer ao pretérito-mais-que-perfeito (“eu dissera, eu falara etc.”), nem mesmo de modo transicional. Em alguns trechos se demora a perceber que estamos no passado da narrativa.
Na estrutura, um artificialismo compromete um dos mecanismos mais utilizados por Itamar Vieira: os personagens rememoram os mesmos fatos, com detalhes mais relevantes a cada relembrança, em uma estrutura do tipo espiral. Só nas recordações finais o leitor tem o retrato completo dos fatos.
Seria uma solução rica, não fosse inverossímil na história em questão: os personagens passam por incidentes importantíssimos, que teriam de ocupar seus pensamentos no momento da lembrança. Para ficar em um exemplo: não se acredita que Luzia recordaria seu último dia de trabalho na Igreja sem se lembrar de que flagrara em crime o monge mais poderoso dali; ou da tragédia que se seguiu, em que ela talvez tenha tido parte. Isso é ainda mais duvidoso quando os fatos são narrados pela própria, em primeira pessoa. Para alcançar o efeito que queria, Itamar Vieira teria que ter recorrido a um personagem externo, que tomasse conhecimento dos fatos em etapas, junto com o leitor; ou ter usado os pontos de vistas de personagens secundários, sem conhecimento pleno da situação.
Na linguagem propriamente, Itamar Vieira, admirador confesso de Jorge Amado, parece ser vítima de um dos erros deste, diagnosticado já na década de 1940 por Álvaro Lins, a quem passo a palavra:
O jogo das palavras, o gosto puro e simples das palavras, é uma sedução deste romancista. Repete frases e vocábulos sem que disse resulte qualquer efeito. Há (…) preocupação excessiva de causar efeitos como há a preocupação abusiva do poético em prosa.[1]
De fato, a história de Salvar o Fogo pede uma linguagem seca, objetiva, não a prosa poética que o autor tenta construer, com sucesso questionável. Esse problema é agravado pelo vocabulário, em que o uso de termos formais dá ao livro um tom pretensioso que parece pairar acima do mundo retratado — algo ainda mais grave nas narrativas em primeira pessoa, onde, pela natureza dos personagens, deveria imperar o registro popular.
Apesar desses problemas de forma, Salvar o Fogo seria um romance mediano, se o autor tivesse mantido a obra dentro da estrutura inicial (blocos de capítulos narrados em primeira pessoa, por Moisés e depois Luzia). Infelizmente, por motivos com que não atino, Itamar Veira deixou que a partir do capítulo 39 a coesão construída até ali entrasse em colapso.
Até então narrada no pretérito simples, a história se vê invadida por cenas no presente. Os dois tempos verbais chegam a se alternar a intervalos curtos, não como flashback, mas como presente da narrativa. Talvez Itamar Vieira tenha tentado replicar a montagem de cortes rápidos de um filme. Interessante como ideia, a execução é confusa, ainda mais porque os fatos aparecem fora de ordem cronológica e com o ponto de vista se alternando entre Luzia e sua irmã, Maria Cabocla.
Não bastasse isso, a narrativa em primeira pessoa de Moisés e Luzia cede lugar à terceira (com o ponto de vista de Maria Cabocla), sem que se consiga perceber o ganho disso. Na verdade, o uso dos tempos verbais daqui em diante parece caprichoso, sem motivo aparente. Para arrematar, Itamar Vieira incluiu nas páginas finais uma subtrama de assassinato, que não se desdobra e nem chega a um desenlace.
O colapso da estrutura é acompanhado por um fraquejar da linguagem. Por exemplo, na epifania de Luiza, na igreja:
Entra num cômodo e abre a janela. (…) Um voal se ergue com o vento e envolve seu corpo. Luzia gira o corpo e levanta os braços para se desvencilhar da armadilha. Os trinados dos pássaros ecoam, convocando os pensamentos para uma aterrisagem. Mas os olhos de Luzia encontram os olhos do fogo e sua mão quase toca sua penugem negra. O pássaro inclina a cabeça para admirar a espécie rara que encontrou: Luzia, prestes a se tornar senhora da vida e do mundo por onde caminha. (…) a brisa avança e no segundo seguinte é vendaval. O lume da vela oscila; é o fogo que dança e finge desaparecer, para logo depois ressurgir, ondulante e feroz. O tecido imaculado da cortina se encanta e parece enfeitiçado pelo lume, invocando que se aproxime. É uma língua em movimento lambendo as franjas do tecido e sussurrando a palavra “desolação”.
(Gostaria que as línguas de fogo sussurrassem a palavra “subliteratura” a todo escritor que escrevesse algo como um trecho acima…)
Com Salvar o Fogo, Itamar Vieira, o nome mais forte do mercado editorial brasileiro atual, apresenta-se com uma obra inferior à sua estreia. A boa receptividade (pública, ao menos) do livro até agora parece refletir a vibe criada por marqueteiros em torno do escritor. Carreiras literárias podem ser feitas de equívocos e há vários exemplos, aqui e alhures. A literatura com “l” maiúsculo no entanto só aceita os melhores. O novo romance de Itamar Vieira, se avança sua carreira, distancia-lhe dessa deusa exigente que é a Literatura.
[1] Lins, Álvaro. Jornal de Crítica, pg. 90. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946.
Detalhes do autor
Douglas Lobo
Douglas Lobo é romancista, jornalista, dramaturgo e ator teatral.
Nasceu no interior do Piauí em 1977. É autor do romance “Areia Movediça” (Danúbio, 2021).
Reside e trabalha em Fortaleza (CE)
Gostei da crítica muito bem estruturada embora devo confessar que no início julguei-a ácida demais.
Mais, perdao-me não passou de momentânea impressão embora devo dizer não conheço ainda o romance. No entanto sua crítica, fez me prestar mais atenção a luz amarela.
Excelente, fico ansioso já pelas próximas publicações de crítica literária da Danúbio.
Crítica extraordinária e amplamente fundamentada. Foge ao juízo de valor ao mostrar, com clareza, seu ponto de vista. De fato, fortemente esclarecedora e contundente. Ganha a Literatura!
Eu gostaria que você me ensinasse a escrever, Douglas. Ao ler sua crítica, pensei em Machado dr Assis e Dostoievski como exemplos de boa literatura. Muito obrigado.
De certo, uma análise confiável, com instrumentais críticos e teor de honestidade. Com categoria. Conheço o primeiro romance do autor. Este segundo ainda não.
Bravíssimo! Excelente crítica, meu nobre. Excelente e necessária