Um Prefácio a Eça de Queiroz
Este prefácio foi escrito para a reedição do romance A Ilustre Casa de Ramires, livro a ser publicado pela Biblioteca Alta Cultura, editora e clube do livro idealizada por Eduardo Charão e Renato Emydio, e que se encontra nos últimos estágios de preparação.
Por Diogo Fontana
Note o leitor duas coisas. Um, nas livrarias de hoje é comum encontrar os livros portugueses, contemporâneos ou clássicos, na prateleira de Literatura Estrangeira. Dois, quando Jorge Jesus, o técnico português do Flamengo, concede entrevista à televisão é costume justapor legendas à imagem, sinalizando ao telespectador que o homem fala um idioma diferente do nosso. A mim, ambos os fenômenos revelam algo importante sobre a mentalidade brasileira presente; revelam um Portugal distante, visto e compreendido como cultura estrangeira. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que os dois povos, mesmo após a nossa independência, caminhavam no mesmo compasso, num percurso tão próximo que chegava a existir rivalidade. Naquele tempo o ambiente cultural de lá espelhava o de cá, e vice-versa; e a produção literária portuguesa tinha amplo consumo entre nós.
Tomemos Eça de Queiroz para ilustrar, tomemos a própria biografia dele. Logo ao nascer, em 1845, no vilarejo de Póvoa de Varzim, foi nutrido pelo leite de uma pernambucana, sua ama, que também o levou à pia batismal como madrinha. O pai do escritor já nascera no Brasil, era carioca; e seu avô exerceu a magistratura por aqui: Joaquim José de Queiroz foi empossado em 1818, e tudo indica ter vivido na rua do Ouvidor, a célebre, a mais famosa (e literária) via daquele Rio antigo, a cidade do Manuel Antônio de Almeida e do Machado de Assis.
Os escritos jornalísticos de Eça de Queiroz foram difundidos no Brasil durante o Segundo Reinado em reproduções não autorizadas que geraram protesto. Também os seus livros apareceram rapidamente por aqui causando repercussão. O crime do padre Amaro, cuja primeira versão foi publicada em Portugal na Revista Ocidente, durante o ano de 1875, chegou logo ao Brasil já sendo discutido no ano seguinte. Araripe Júnior teve acesso ao romance já em 1876, morando no Ceará; e, em São Paulo, no final de abril desse mesmo ano, a revista literária A República das Letras começou a reproduzir – pirateando – os primeiros capítulos do romance.
Mas o grande impacto veio somente dois anos depois. O primo Basílio começou a ser vendido na Europa em janeiro de 1878, e já em abril era bastante lido e debatido no Rio de Janeiro. Na edição da revista O Besouro do dia 6 lia-se:
[…] dizia anteontem no ponto dos bondes um cavalheiro a uma dama:
— V. Ex.ª não faz uma idéia! Que verdade, que estudo e que observação tem O primo Basílio! Tudo aquilo são cenas que podem um dia acontecer entre mim e V. Exª.
Sucesso, escândalo! Ao menos nos círculos letrados. A Revista Ilustrada do dia 27 de abril destacava os três assuntos em voga naquele momento: a dissolução da Câmara, a emissão de papel-moeda e o romance de Eça de Queiroz; admitia que, dos três, o último vinha sendo o mais importante. Nem todo mundo gostou, é claro. Machado de Assis, por exemplo, sob o pseudônimo Eleazar, publicou uma crítica negativa em O Cruzeiro. Houve réplica; e a discussão ganhou força, prologando-se nas páginas do jornal durante algumas semanas. E assim foi: Eça se tornara célebre entre nós, e sua obra objeto de discussões apaixonadas.
Nos anos seguintes a fama apenas cresceu. Seus livros foram parar no palco dos teatros cariocas e os editores buscavam manter o nosso público em dia com a obra do autor português.
A ilustre casa de Ramires, considerado por muitos o romance mais equilibrado, harmonioso e completo que escreveu, integra a terceira fase da obra de Eça de Queiroz. Há em sua trajetória literária um movimento nítido. No primeiro período é visível a influência de Victor Hugo e Michelet, de Baudelaire, Gérard de Nerval e Heinrich Heine. Este último, aliás, segundo Antônio José Saraiva e Óscar Lopes, foi assimilado pelo grande escritor português de modo acentuado, o que o diferencia dos seus companheiros de geração, a chamada Geração de 70, a saber: Antero de Quental, Teófilo Braga, Oliveira Martins e outros. A obra mais característica desse primeiro momento é Prosas Bárbaras, a compilação póstuma de textos de jornal da década de 1860, na qual transparece algum naturalismo irreligioso e outras influências materialistas.
Em conferência proferida no Casino em 1871, no entanto, Eça se revela transformado, comprometido por inteiro com um programa de reforma literária encarnado pelo Realismo, o qual ele define assim:
É a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. […]. O Realismo é uma reação contra o Romantismo: o Romantismo era a apoteose do sentimento; – o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mal na nossa sociedade.
Dali em diante o escritor se entregou a um projeto pessoal que lhe tomaria pelo menos dez anos. Entre 1871 e 1880 publica O crime do padre Amaro, O primo Basílio, A capital, O conde de Abranhos, Alves e C.ª e, por fim, Os Maias. Cada um desses romances pretendia pintar um aspecto típico da sociedade portuguesa, a ingerência do clero nas famílias provincianas, a vida da classe média lisboeta, a corrupção nos meios literários… Eça embarcava em um plano balzaquiano, desejava passar em revista o mundo em que vivia. Não existira em Portugal, até então, o romance de estudo social. Foi uma inovação. E um escândalo! Poucos entenderam de princípio os trabalhos do autor. O crime do padre Amaro, o retrato de um padre burocrata e mundano, mais político que sacerdote, pareceu um ataque à Igreja; O primo Basílio, uma descrição dolorosa do adultério, foi interpretado como um ataque à família. Eça de Queiroz havia se tornado o “inimigo da moral”.
Em retrospectiva, tudo isso é curioso, pois um acento moralizante transparece não só nos livros, que expõem de modo às vezes violentamente gráfico (para as suscetibilidades da época) a miséria humana daquilo está sendo narrado, mas, como vimos, nas declarações prévias do próprio Eça, cujo intuito explícito era condenar o que houver de mal na nossa sociedade.
Pois tudo inverteu-se ironicamente. O juiz fez-se réu. E o condenado foi ele, Eça, espicaçado pela mesma coletividade cujas mazelas pretendia apontar. Ninguém gosta de se ver no espelho, isto é fato, ficou claro mais uma vez.
No último livro dessa fase, Os Maias, um estudo da burguesia nacional, surge o retrato de alguns tipos virtuosos, um círculo de intelectuais e artistas superior ao meio imediato e que debate os destinos do país. Confrontados com um ambiente mesquinho, essas personalidades se vêem privadas da realização do seu potencial, e sentem-se impedidos de atuar. “Se eu fizesse uma boa ópera, quem é que ma representava?” – lamenta-se um personagem. “E se o Ega fizesse um bom livro, quem é que lho lia?”, queixa-se outro. Picados por um pessimismo sem cura, não lhes resta outra coisa senão emigrar, o que faz Carlos, o protagonista, indo embora para Paris. Não há solução em Portugal.
A conclusão das personagens é a conclusão do autor. O plano balzaquiano é abandonado, o romance-inquérito lhe parece vão, é inútil um projeto saneador. Seguindo os jovens descrentes de Os Maias, o escritor não mais confia no futuro da nação, está convencido da plena inviabilidade do país. Nesse antipatriotismo, contudo, existia uma “secreta saudade”, como diz Otto Maria Carpeaux, crítico que descreve o autor português como “um céptico blasé, abusando de leituras de Renan e usando bigode, bengala e monóculo”, alguém que “tinha visto e experimentado tudo o que Paris ofereceu, e voltou-se para Portugal como um turista, ávido de novas sensações exóticas”.
E assim começa a terceira fase da obra de Eça, na qual se destacam Correspondência de Fradique Mendes, A Cidade e as Serras, Últimas Páginas e este A ilustre casa de Ramires. Nessas obras o protagonista vira as costas para Portugal. Ora já vive no exterior, ora busca a sorte no além-mar. A terra natal não passa agora de um local somente de descanso em ambiente recolhido, alheio aos fatos políticos e culturais. Um novo ideal de vida emerge desse cenário, um ideal do desengano. Se não há mais sentido em intervir na sociedade, pode-se, ao menos, desfrutar ao máximo as sensações e as idéias. Fradique Mendes, por exemplo, é um diletante e um egoísta. Usa o seu dinheiro unicamente para a consecução das mais estritas finalidades pessoais. Não quer saber de mais nada, pouco lhe dá a humanidade. Nisso se assemelha ao narrador do romance Às avessas, de J.K. Huismann, publicado em 1884. Jean des Esseintes, esse é o nome do personagem, é um dândi misantropo obcecado por livros e objetos de decoração, que se afasta do mundo para recolher-se em uma luxuosa casa de campo no interior da França. Sua vida é dedicada às experimentações estéticas no mobiliário da sua propriedade e ao gozo solitário de leituras idiossincráticas. Ele perdeu a esperança mundana. Não espanta, portanto, a trajetória sequente do escritor francês que, após descer às profundezas (ele foi até satanista), renova-se, converso, e alça vôo para nova vida. J.K. Huismann terminou os seus dias em um mosteiro; abraçou a Igreja no seu último ato, como parece ter feito também Oscar Wilde, mais um contemporâneo.
Tanto nesse Huismann decadentista, quanto no Eça derradeiro, sentimos o espírito do tempo, e lemos a desilusão do fin de siécle em duas manifestações distintas. Eça julgava a sociedade portuguesa pela régua do progresso. Incomodava-o a caipirice nacional, o provincianismo, o atraso intelectual. Sua indignação, entretanto, era estética e o seu radicalismo, por isso, superficial. Detestava “aquela burguesia que usa as frases-feitas e os trajes da Monarquia e da Igreja, do tradicionalismo, para cobrir as suas misérias permanentes”, explica Carpeaux. Na maturidade, porém, arrepende-se do pendor destrutivo das primeiras obras; e sabe ter investido inutilmente contra o burguês. Recupera o otimismo, agora despido da ilusão científica. O novo Eça é um idealista que cultua os valores da Alma e do Espírito. Ele supera a ironia, deixa o sarcasmo corrosivo para trás. A saída encontrada por ele, no entanto, não foi transcendente, como o foi para Huismann. Para não amargurar-se, Eça vê o futuro ao longe, no além-mar, num novo mundo; novo todavia terreno; novo todavia imanente. O futuro está na emigração. O solo português exauriu-se, está infértil. A solução se lhe apresenta neste A Ilustre casa de Ramires, escrito em 1900, fim do século, último romance, ano da morte do escritor. Gonçalo Mendes Ramires é um cavalheiro de alta estirpe, um homem bondoso e ao mesmo tempo simples, contraditório e humano, com fraquezas e virtudes. Quando a vida lhe cobra, porém, sabe ser heróico. Ramires sonha com a África, quer abandonar oito séculos de História e tradição, quer transplantar as sementes de sua fidalguia para um novo lugar. Era essa, paradoxalmente, a grande esperança de Eça de Queiroz – o outrora radical, o outrora jacobino – que lamentava a degeneração do país, exaltava a glória de Camões, desejava a restauração de Portugal e, no fundo, do valor de sua nobreza. Carpeaux tem razão: Eça de Queiroz tinha natureza aristocrática.
Referências:
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Vol 3. São Paulo: Leya, 2011.
FARO, Arnaldo, Eça e o Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1977.
LOPES, Óscar e SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa. Porto Editora, s/a.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1987.
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Detalhes do autor
Diogo Fontana
Nasceu em Curitiba em 1980. É autor do livro “A Exemplar Família de Itamar Halbmann”. Mora em Balneário Camboriú, Santa Catarina, com a esposa Gabriela.
Caríssimo Fontana,
parabéns pelo excelente artigo, com o qual aprendi muito. É interessante perceber mesmo esse distanciamento cultural entre Brasil e Portugal, país esse em que se ouve música brasileira mas, por outro lado, se irritam as pessoas com o chamado “brasileiro”, nosso desprezado idioma. Eles entendem, mas têm resistência. Ao contrário dos brasileiros que, pelo menos a princípio, verdadeiramente não entendem. Como seria bom se os países de Eça de Queirós e Machado de Assis tivessem uma mais forte amizade!