Um arrependimento no leito de morte (e outras crônicas)

22, jun, 2021 | Artigos | 0 Comentários

Por Alexandre Soares Silva

Às vezes estou lendo um livro que tenho certeza que ninguém leu desde o início do século XX, e a pena vem vindo, até que falo baixo para o autor: “Olha, 2021 e tem alguém lendo você. Está tudo bem. Tudo valeu a pena.” Imagino o autor num gramado no além, passeando e assobiando uma opereta, feliz por estar sendo lido de novo. Se aproxima de um grupo jogando carta: “Você viu? Alexandre Soares Silva está me lendo. Excelente sujeito.” “Ah é?” “Sim, um cara no Brasil. Muito inteligente, muito sensível.”  “Ah, fala pra ele me ler também.” Espero desse jeito estar formando no Céu um exército de bons escritores esquecidos que intercedam por mim.

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Um teste rápido para medir a inteligência de alguém é pedir que leia em voz alta um trecho qualquer de boa literatura: muitas vezes a inteligência do texto chega aos seus ouvidos besuntada de burrice.

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Um arrependimento de leito de morte: vou achar que devia ter xingado mais. Mas não, quis ser elegante. Quis fingir que era elegante, o que é ainda pior. Aqui trancado no meu escritório xingo e falo palavrões lendo uns negócios aí, mas por escrito sou praticamente a Audrey Hepburn. Um problema de ser elegante ou “elegante” é que obviamente você ofende mais, sendo elegante ou “elegante”. E por não poder sair machucando as pessoas por aí me contenho – meu trabalho de roteirista depende de não sair fazendo inimizades. Mas que vontade de passar uma vida pegando as colunas dessas pessoas e ridicularizar, por escrito, parágrafo por parágrafo. É preciso combater essas tolices e banalidades mal-expressas; certo, elas não correm o risco de perdurar, e são esquecidas antes mesmo de escritas, mas elas contaminam a mente coletiva, suas canhestrices se espalham e frutificam, sua faixa de transmissão reduz a mente coletiva a um nível mentecapto e oligofrênico. É preciso combatê-las nem que seja no plano astral, mentalmente. Acessem a minha mente e assinem a minha newsletter telepática, onde estou fazendo pouco da pascácia cronista de Higienópolis T—- B——- e do cronista sonso de Perdizes A——- C——! E por aí vai. Bom, sim, alguém tem que fazer isso. E que prazer daria à minha alma biliosa, sair xingando, ser o Camilo da Vila Madalena, eu que tenho Marte dançando pelado em algum lugar do mapa natal.

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Ajuda, às vezes, imaginar o seu dia como um esporte sendo comentado ao vivo por comentadores que o tratam como uma lenda. “Ele acordou… E já começou bem! O que acha, Lucas?” “Pois é, começou espetacularmente, Carlos. É a velha técnica do tocar o chão primeiro com o pé esquerdo. Ele é um pioneiro dessa técnica, como os espectadores que sempre nos acompanham aqui no programa sabem. Ele está tão confiante que quer mostrar ao adversário que não precisa de boa sorte”. “Fantástico. O que ele está fazendo agora, Lucas?” “Parece que está tirando mais um cochilo sentado na cama, Carlos. Demonstrando que está tranquilo.” “A calma dos campeões.” “Precisamente, Carlos. Ele sabe que vai ter tempo depois pra fazer o que quer fazer, não está impaciente. É um mestre do timing. Muitos grandes acordadores estão copiando ele nisso.” E assim por diante em cada etapa do dia: “Que jato de urina extraordinário, Lucas. Vamos passar o replay”, etc etc.

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Há sentimentos tão tênues que não merecem um nome. Assim que lhes pomos um nome, eles estão falsificados. Num consultório de psicanálise tenho certeza que pacientes muitas vezes confessam sentimentos horríveis que não têm, pelo único motivo de que as palavras se encaixaram nos sentimentos embrionários e esfumaçados e lhes deram uma forma, e é um alívio quando sentimentos confusos assumem uma forma, mesmo que falsa: mas era só um impulsinho ocasional, ou talvez até só a possibilidade de um impulsinho, vagamente depreendida, vagamente imaginada; um impulsinho tão fraco que era mais fraco que a palavra que o descreve. “Tenho raiva”, não tem; “sinto ódio”, não sente; “me sinto atraído por”, mas sente atração coisa nenhuma. Uma vez nomeadas e postas pra fora essas coisas estão lá pesadas e mostralhengas, se tornaram um fato. Agora essa pessoa tem raiva mesmo, odeia, sente atração pela cunhada; mas enfim, não é contra a psicanálise que falo mas contra a pressa de nomear sentimentos vagos – ou qualquer coisa vaga, talvez.

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Alexandre Soares Silva

Alexandre Soares Silva

Alexandre Soares Silva nasceu em 1968. Publicou três romances, A Coisa Não-DeusMorte e Vida Celestina e A Alma da Festa, além de uma coletânea de ensaios, A Humanidade é uma Gorda Dançando em um Banquinho. Trabalha como roteirista e vive em São Paulo.