Tia Creuza, piedosa (conto)

2, fev, 2022 | Artigos | 2 Comentários

Por André Paião

Tia Creuza era uma católica-espírita muito curiosa. Sentada em sua cadeira de jardim, que fazia as vezes de poltrona na sala, devido à sua condição financeira, observava a estante cheia: santos, terços, um Buda, um Ganesha, Nossa Senhora das Graças… Além da Bíblia, aberta na metade de um capítulo que ela nunca pensaria em ler.

Razoavelmente feliz em dias comuns e parados, fez da vida da sobrinha Kelly o inferno, até que a jovem mãe desfizesse o convite à uma amiga, e a nomeasse madrinha de batismo. Conseguiu, assim, ser madrinha, aos gritos, pela quarta vez.

Na Igreja, no dia da celebração, o sacerdote falou:
– Rezará, Creuza, todos os dias pela pequena. Se você esquecer é pecado grave! Fará este voto?
– Sim, padre. Pode deixar.
E assim ela fez. Rezava e rezava, com palavras simples:
“Senhor, lembre-se da minha afilhada”. E não só isso. Para maior auxílio a nova cristã, colocada sob sua guarda espiritual, recorria a ajudas especiais em datas importantes. No aniversário de oito anos da menina, chamada Jeniffer, foi à cartomante, velha conhecida, conferir se havia algo mais a seu alcance.
– Mas eu só falo sobre a vida de quem está me consultando, Creuza – disse a adivinha.

Insatisfeita, não só não pisou mais naquela casa como também bloqueou o telefone da mulherzinha, pois esta, para falar a verdade, já dava sinais de não saber é coisa nenhuma. Qual não foi a sua felicidade, então, quando a indicaram  uma cartomante de verdade:

– Eu falo sobre quem você quiser – garantiu a nova profetiza, uma mulher agradável e, quer saber, muito mais confiável do que a outra; além disso, tinha casa boa e carrão. “Se ela não acerta o cliente não volta”, matutou Creuza. “Por isso a outra não sai daquele casebre!”.

Agora Jeniffer já chegava aos dez anos. Era uma menina gorda, muito gorda, de pouca destreza. Correndo pelo segundo andar da casa da madrinha, tropeçou e acabou rolando escada abaixo. Depois de toda a confusão e de levarem a menina ao pronto-socorro, a sós em casa, Creuza ajoelhou-se em frente à estante e pôs-se a rezar:
– Mãezinha do céu, olha essa menina. Por mim, porque eu sou uma infeliz distraída! Ave, Maria…

Enquanto enfileirava ave-marias com um terço na mão, sem meditar, apostava em todos os cavalos. Acariciou a tromba do ídolo elefante com suavidade e devoção. Em seguida, tomou algumas pedras e cristais energizados e os esfregou no peito, tentando absorver boas vibrações que, de alguma forma, fariam a oração mais forte ou qualquer coisa do tipo.

Mais tarde se lamentava com a irmã no celular.
– Joyce, não sei o que faço para essa menina voltar inteira para casa…
– Faz um chá de raiz de jabuticabeira.
– Aí eu levo para ela? Não sei se no hospital vão deixar…
– Não, sua doida! Você toma.
– Ah, bom… Que benção! Não sabia dessa, acredita?

Demorou uma semana para conseguir um pouco de raiz de jabuticabeira, que ninguém vendia. Precisou encontrar uma árvore, cavar próximo ao tronco e arrancar um pouco do que, naquele momento, ficou em dúvida se seria já considerado tronco ou raiz. “Se faço chá de tronco… a menina morre e a culpa é minha! O que vou falar para a mãe? Misericórdia!”

Três semanas depois, não havia mais sinal de ferimentos e a afilhada brincava, agora, como se não tivesse caído – nem nunca fosse cair: parecia ter obtido agilidade por algum meio misterioso. Creuza não deixou de notar a relação entre causa e
consequência: por isso, sozinha, enquanto lavava uma xícara na casa da sobrinha, e visualizava a lembrança de cavar o solo rente à jabuticabeira, em voz alta soltou, após uma risadinha:
– Então ali já é raiz, já.
– O que é raiz, tia?
– Ih, tô pensando alto – esquivou-se, pois tentava seguir com retidão uma lição aprendida ainda quando criança: “se for fazer o bem com a mão direita, que a esquerda não fique sabendo”.

Jeniffer cresceu e se tornou uma moça magra e bonita. Esta nova alegria, resultado de uma mudança que não levou um ano para acontecer, foi sucedida pela notícia da prematura morte da mãe.
– Madrinha, o que eu faço agora?
A madrinha não respondeu, mas deixou anotado na cabeça:
“ao chegar em casa, procurar na internet algum chá que resolva o problema”.

 
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Detalhes do autor

André Paião

Nasceu no interior de São Paulo em 1994. Em paralelo à profissão, foi conquistado pela prosa – desde 2018 escreve contos, certo de que os assuntos de todos os tempos e o retrato dos tipos humanos importam mais do que as notícias, já vencidas, da última semana.