Tia Creuza, piedosa (conto)
Por André Paião
Tia Creuza era uma católica-espírita muito curiosa. Sentada em sua cadeira de jardim, que fazia as vezes de poltrona na sala, devido à sua condição financeira, observava a estante cheia: santos, terços, um Buda, um Ganesha, Nossa Senhora das Graças… Além da Bíblia, aberta na metade de um capítulo que ela nunca pensaria em ler.
Razoavelmente feliz em dias comuns e parados, fez da vida da sobrinha Kelly o inferno, até que a jovem mãe desfizesse o convite à uma amiga, e a nomeasse madrinha de batismo. Conseguiu, assim, ser madrinha, aos gritos, pela quarta vez.
Na Igreja, no dia da celebração, o sacerdote falou:
– Rezará, Creuza, todos os dias pela pequena. Se você esquecer é pecado grave! Fará este voto?
– Sim, padre. Pode deixar.
E assim ela fez. Rezava e rezava, com palavras simples:
“Senhor, lembre-se da minha afilhada”. E não só isso. Para maior auxílio a nova cristã, colocada sob sua guarda espiritual, recorria a ajudas especiais em datas importantes. No aniversário de oito anos da menina, chamada Jeniffer, foi à cartomante, velha conhecida, conferir se havia algo mais a seu alcance.
– Mas eu só falo sobre a vida de quem está me consultando, Creuza – disse a adivinha.
Insatisfeita, não só não pisou mais naquela casa como também bloqueou o telefone da mulherzinha, pois esta, para falar a verdade, já dava sinais de não saber é coisa nenhuma. Qual não foi a sua felicidade, então, quando a indicaram uma cartomante de verdade:
– Eu falo sobre quem você quiser – garantiu a nova profetiza, uma mulher agradável e, quer saber, muito mais confiável do que a outra; além disso, tinha casa boa e carrão. “Se ela não acerta o cliente não volta”, matutou Creuza. “Por isso a outra não sai daquele casebre!”.
Agora Jeniffer já chegava aos dez anos. Era uma menina gorda, muito gorda, de pouca destreza. Correndo pelo segundo andar da casa da madrinha, tropeçou e acabou rolando escada abaixo. Depois de toda a confusão e de levarem a menina ao pronto-socorro, a sós em casa, Creuza ajoelhou-se em frente à estante e pôs-se a rezar:
– Mãezinha do céu, olha essa menina. Por mim, porque eu sou uma infeliz distraída! Ave, Maria…
Enquanto enfileirava ave-marias com um terço na mão, sem meditar, apostava em todos os cavalos. Acariciou a tromba do ídolo elefante com suavidade e devoção. Em seguida, tomou algumas pedras e cristais energizados e os esfregou no peito, tentando absorver boas vibrações que, de alguma forma, fariam a oração mais forte ou qualquer coisa do tipo.
Mais tarde se lamentava com a irmã no celular.
– Joyce, não sei o que faço para essa menina voltar inteira para casa…
– Faz um chá de raiz de jabuticabeira.
– Aí eu levo para ela? Não sei se no hospital vão deixar…
– Não, sua doida! Você toma.
– Ah, bom… Que benção! Não sabia dessa, acredita?
Demorou uma semana para conseguir um pouco de raiz de jabuticabeira, que ninguém vendia. Precisou encontrar uma árvore, cavar próximo ao tronco e arrancar um pouco do que, naquele momento, ficou em dúvida se seria já considerado tronco ou raiz. “Se faço chá de tronco… a menina morre e a culpa é minha! O que vou falar para a mãe? Misericórdia!”
Três semanas depois, não havia mais sinal de ferimentos e a afilhada brincava, agora, como se não tivesse caído – nem nunca fosse cair: parecia ter obtido agilidade por algum meio misterioso. Creuza não deixou de notar a relação entre causa e
consequência: por isso, sozinha, enquanto lavava uma xícara na casa da sobrinha, e visualizava a lembrança de cavar o solo rente à jabuticabeira, em voz alta soltou, após uma risadinha:
– Então ali já é raiz, já.
– O que é raiz, tia?
– Ih, tô pensando alto – esquivou-se, pois tentava seguir com retidão uma lição aprendida ainda quando criança: “se for fazer o bem com a mão direita, que a esquerda não fique sabendo”.
Jeniffer cresceu e se tornou uma moça magra e bonita. Esta nova alegria, resultado de uma mudança que não levou um ano para acontecer, foi sucedida pela notícia da prematura morte da mãe.
– Madrinha, o que eu faço agora?
A madrinha não respondeu, mas deixou anotado na cabeça:
“ao chegar em casa, procurar na internet algum chá que resolva o problema”.
Detalhes do autor
André Paião
Nasceu no interior de São Paulo em 1994. Em paralelo à profissão, foi conquistado pela prosa – desde 2018 escreve contos, certo de que os assuntos de todos os tempos e o retrato dos tipos humanos importam mais do que as notícias, já vencidas, da última semana.
Acho que tds temos um pouco de tia Creuza em algum momento, na vida. Alguns mais, outros menos; até encontrar o Caminho!
Essa dúvida sobre o chá de raiz e chá de tronco achei bem pertinente, também ia ficar perdidinho. Parabéns pelo conto! Tia Creuza lembra minha mãe que mistura espiritismo com numerologia e todos os tipos de tratamentos místicos da semana.