Silêncio triunfal
Por José Lucas Moreira
Ontem à tarde, eu lia O óbvio ululante, de Nelson Rodrigues. Admiro muito seu estilo de escrita, cria um diálogo com o leitor a partir dum diálogo interior. Não sei se expliquei bem. Enfim, não vim aqui falar sobre a estilística do Nelson, mas sobre o que percebi durante a leitura do livro. Ontem à tarde, durante a leitura, escutei um silêncio triunfal na rua, e o que vislumbrei me fez fechar o livro do Nelson. (“Ah, mas na minha rua tem muito barulho, funk tocando alto o dia todo!” Não me refiro a esse tipo de barulho, a esse estupro auditivo que todos nós sofremos diariamente. Refiro-me aos sons infantis que sempre fizeram parte da minha infância e que me faziam encher o saco da minha mãe para ser mais uma voz naquela cantoria). Como eu ia dizendo, fechei o livro do Nelson, apurei ainda mais minha atenção, e continuei com a mesma impressão, um silêncio absoluto, nada de bola batendo nos portões e nos muros, nada de mães gritando com seus filhos, nem uma gargalhada gostosa de criança correndo descalça no asfalto. Meu Deus!, exclamei para mim mesmo quando me deparei com este meu pensamento: nunca mais veremos um Paulo e Virgínia brincando, andando de mãos dadas, sendo crianças; esses pequenos e puros seres estão em extinção, são incompatíveis com essa terra devastada.
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Quando eu tinha uns dez anos, vivia na rua, saía de manhã e só voltava para casa quando o sol dourava o céu. Os pés encardidos, o corpo suado de tanto jogar futebol, brincar de bandeirinha, pique esconde e outras brincadeiras que não me recordo. Hoje isso já não existe mais, toda essa realidade foi pulverizada pela tecnologia. Quando os pais descobrem a gravidez correm para criar uma conta no Instagram para o filho, este já nasce com um celular plugado na palma da mão e cresce encantado com as brilhantes telas azuis dos tablets e notebooks. Eis a verdade, o Ser não importa mais, a realidade agora é virtual, tudo que é real causa náuseas à geração atual. “Jogar bola, pique esconde, bandeirinha, que tipo de aplicativo é esse?”
Se toda realidade é desinteressante, todas suas circunstâncias, suas relações humanas também o são. Juro que sou otimista, leitor, mas às vezes o futuro que imagino é atingido por um relâmpago pessimista: o que esperar de um mundo fechado numa tela e que deixa de lado tudo que é humano?
Detalhes do autor
José Lucas Moreira
José Lucas Moreira é bacharel em psicologia e escritor. Tem 26 anos, é natural de São Gonçalo, região metropolitana do estado do Rio de Janeiro. Começou sua caminhada na arte da escrita em 2018, publicando diariamente, desde então, seus escritos nas redes sociais.
É muito absurdo pensar no quanto todo esse mundo digital nos afasta das pessoas que nos cercam e até de nós mesmos. Não temos mais tempo, para ninguém e para nada. Nem para sermos nós mesmos, aliás, como é que eu sei quem eu sou, quando tudo é um vitrine do que eu deveria ser/ter? Enquanto isso o mundo real acontece, pessoas reais fazendo coisas extraordinárias, se dedicando, se descobrindo e vivendo além do like. Pessoas reais tem sofrido, adoecido, sentindo medo, fome e frio. Enquanto vivemos em outra realidade. E a sensibilidade em observar? Se perdido. A sensibilidade em escutar uns aos outros? Se foi também.
“o que esperar de um mundo fechado numa tela e que deixa de lado tudo que é humano?”
Texto perfeito!