
Quando a Bondade Leva à Ruína
The Auctioneer. Por Joan Samson. Valancourt Books, 238pp., R$ 112,24 (brochura)
Por Douglas Lobo
A visão bucólica da vida no interior é posta em xeque pela escritora Joan Samson (1937 – 1976) em seu romance The Auctioneer (O Leiloeiro). Publicada em 1976, a obra foi relançada em 2018 (Richmond: Valancourt Books), dentro do projeto Paperbacks from Hell. Essa iniciativa promove um resgate da ficção de terror publicada nos Estados Unidos nas décadas de 1970 e 80, a última era de ouro do gênero.
Temos aí já a primeira questão: trata-se The Auctioneer de um livro de terror? A meu ver, não: falta-lhe a atmosfera de medo do desconhecido e o elemento sobrenatural (real ou sugerido). Eu classifico a obra como um thriller.
The Auctioneer conta a história de uma família de proprietários rurais, os Moore, cuja rotina é alterada quando um leiloeiro chamado Perly Dunsmore chega à cidade deles, Harlowe (New Hampshire). O forasteiro vai em cada casa da área urbana e rural e, com endosso do chefe de polícia local, pede doações de itens a serem leiloados. O dinheiro irá financiar a nomeação de policiais adjuntos (embora o índice de criminalidade no município seja baixíssimo).
O primeiro leilão é um sucesso, e logo ocorrem outros — até que se tornam atração local, sempre uma vez por semana. Pouco a pouco, no entanto, a situação muda: dotado de incomum capacidade de manipulação, Perly passar a pedir em suas visitas objetos cada vez mais valiosos, pessoais e importantes (penteadeiras, cômodas, sofás…) — e logo passa a exigi-los, resguardado pelo corpo de policiais que montou e que atua na prática como milícia. Aqueles que se recusam a doar sofrem misteriosos “acidentes”.
Acompanhamos toda a história pelo ponto de vista da família Moore, constituída pelo patriarca, John, sua esposa, Mim, sua mãe idosa, Ma, e a filha única do casal, a pequena Hildie. A dinâmica familiar, com alternância de afeto e conflito, é verossímil. À medida que a trama avança, e com ela a ambição de Perly, cresce a tensão entre os Moore, divididos entre resistir ao leiloeiro ou abandonar sua propriedade e fugir.
A voz narrativa é objetiva: os pensamentos dos personagens são transmitidos a nós não na linguagem pessoal deles, mas na do narrador. A penetração psicológica é mínima (algo comum em thrillers), sem longos mergulhos na cabeça dos personagens. Esse distanciamento atrapalha um pouco a clareza, especialmente nas primeiras investidas do leiloeiro (temos de tirar conclusões sem sabermos como os envolvidos enxergam a situação).
Por outro lado, essa pouco penetração psicológica cria uma tensão: há duas camadas narrativas sobrepostas, a dos personagens e a do narrador, esta última sendo a única de que temos muita informação. A técnica também deixa ambiguidades que, propositais ou não, enriquecem a leitura. Por exemplo, a recusa de John Moore em tomar uma atitude — deve-se à necessidade de proteger esposa, filha e mãe, as quais dependem que ele não corra riscos? — ou se trata de mera covardia, só um pretexto? Somos obrigados a tirar nossas próprias conclusões.
À proporção que a história progride, e Perly se firma como um ditador local, fica claro o tema de livro: o conflito entre velhos e novos valores — aqueles representados pelos Moore, estes pelo leiloeiro. A evolução da trama demonstra como o ambiente conservador de uma comunidade rural isolada pode dar lugar ao totalitarismo pela ação de um único indivíduo (no que parece uma crítica ao populismo político.) Bem-comportados, acolhedores e generosos (autênticos “sais da terra”, para usar uma expressão americana), os moradores de Harlowe são vítimas inertes do golpista. Amarrados por regras de bom convívio, demoram para tomar as medidas drásticas que poderiam salvá-los. Como resume o motorista que a serviço de um policial de Perly invade a propriedade de John Moore com um trator e é ameaçado por este:
“Vou me preocupar quando eu vir uma arma. O policial diz que você é um daqueles tipos pacíficos que não têm armas.”
É significativo, aliás, que Perly destrua a comunidade ao mesmo tempo em que defende os mesmos valores que solapa:
“Nós temos aqui no campo uma qualidade de vida, algo que o dinheiro não pode comprar, algo mais importante que um novo automóvel ou uma nova TV ou alguma coisa que você está tentando obter para sua casa. Algo que chamamos de liberdade.”
Fascinados com as palavras, os moradores aceitam esse discurso — até serem incapazes (quando já é tarde demais) de negar a realidade. The Auctioneer nos ensina que a bondade pode levar à ruína, quando se transforma em apatia e ingenuidade. Em um mundo de regras, o fora-da-lei leva vantagem porque as descumpre — enquanto os outros permanecem amarrados a elas. O único remédio é a punição do infrator, a leniência sendo ao contrário o salvo-conduto do crime e, portanto, um ato de crueldade ao coletivo disfarçado de compaixão ao indivíduo.
A autora consegue construir bons personagens. O mais marcante deles é a avó, Ma. Ela é a velhinha assertiva presente em toda família. No livro, ela funciona como repositório dos velhos valores, transmitidos de geração em geração — ela personifica o que o leiloeiro só simula.
Outro personagem forte é o próprio Perly. Ele é como um coach picareta, décadas antes dessa figura se disseminar. Hábil com as palavras, diz o que o interlocutor quer ouvir e usa palavras-gatilhos que lhe desarmam o senso crítico. Quando começa a pedir doações de itens, usa uma estratégia que poderíamos aproximar à de múltiplas entradas que tantos marqueteiros adotam hoje em dia: principia com objetos supérfluos e de pequeno valor (linha de entrada, para atrair o usuário a seu ecossistema); depois escala aos poucos (linhas 2, 3…), rumo a artefatos cada vez mais valiosos e importantes (linhas premium e vip.)
Exposta a premissa e as linhas gerais de interesse, temos no entanto que chamar atenção para alguns pontos em que The Auctioneer derrapa.
O livro tem uma falha de trama séria: por que Moore e os demais só decidem procurar as autoridades estaduais após Perly ter se protegido por todos os lados, anulando qualquer apelo a um poder maior? Durante todo o meio do livro, os moradores da cidade nada fazem, enquanto são espoliados pelo leiloeiro, antes mesmo de a face maléfica deste aparecer em plenitude. A inércia dessas personagens é inverossímil: tente entrar na casa dos outros e lhes tirar os bens, na frente delas, e veja o que ocorrerá (não esqueça de redigir um testamento…) Parece-me que autora tinha o início e o fim de sua história, mas não o meio, preenchido assim por um Jonh Moore que só zanza e reclama, sem rumo ou ação.
Outro fato difícil de acreditar é que a população inteira, junta, não poderia enfrentar a milícia de Perly. Afinal não se trata de militares, mas de moradores de Harlowe a quem o leiloeiro deu título e armas. Por que os demais da cidade não adquirem armamentos (alguns já os têm, presume-se pela narrativa) e os intimidam durante as visitas semanais de arrecadação? Mesmo que não quisessem sujar as mãos, os moradores não conseguiriam, em conjunto, contratar seguranças privados para lhes proteger?
Como protagonista, John Moore deixa a desejar. Passivo, demora a tomar uma atitude contra Perly — e por isso boa parte do livro é desprovida de ação real. São páginas e páginas com um John hesitante, que se recusa a ouvir sua esposa e abandonar a propriedade, mas tampouco parte para a luta. Escolhe a pior das opções: nada fazer, enquanto a cada semana seus bens lhes são tirados.
Competente em descrições, a autora às vezes exagera e o excesso de detalhes compromete o ritmo do livro em várias passagens (em especial quando John Moore decide enfim retaliar.) A narrativa também se torna lenta no clímax, quando Samson introduz novos personagens, que precisam ser apresentados.
O fim é frustrante. O desenlace em uma narrativa como The Auctioneer deveria envolver o confronto entre o Bem (John Moore) e o Mal (Perly). Não se trata de impor regras ou clichês de gênero, mas exigir um conflito que é a culminância lógica preparada por toda a obra.
The Auctioneer é um romance interessante e agradável de ler, mas com falhas que comprometem o nível a que poderia ter chegado. Por meritória que seja a iniciativa de resgaste de antigas obras de terror promovida pelo escritor Grady Hendrix (idealizador do projeto Paperbacks from Hell), este livro — o único de sua autora, precocemente falecida — é daqueles que merece ficar no esquecimento.
Detalhes do autor

Douglas Lobo
Douglas Lobo é romancista, jornalista, dramaturgo e ator teatral.
Nasceu no interior do Piauí em 1977. É autor do romance “Areia Movediça” (Danúbio, 2021).
Reside e trabalha em Fortaleza (CE)