Pesadelos na Vila Madalena
Por Alexandre Soares Silva
No auge da pandemia, todas as noites, tentando fugir do clima histérico causado pelos urros de impeachment que (eu moro na Vila Madalena) entravam pela janela, eu e a minha mulher sentávamos pra conversar sobre qualquer coisa que não a pandemia. Eu fazia dois rusty nails, ligávamos alguma música para abafar um pouco o barulho lá fora, e íamos para o sofá.
Como ela sabe que gosto que me contem sonhos, ela me contava os dela, que muitas vezes eram pesadelos. Eu contava os meus também. Sempre lembro de três ou quatro sonhos por noite, e pelo menos um deles é ruim o suficiente para ser considerado um pesadelo.
Digo, quando acordado meus pensamentos tendem a ir numa direção agradável, porque me treinei pra isso. Mas quando durmo acontece o oposto. Talvez porque a minha mente quer exercitar o seu pessimismo reprimido e atrofiado. Talvez por raiva de ter sido obrigada a só pensar em coisas boas o dia inteiro. Birra. Não sei. Mas a minha mente adormecida é frequentemente sórdida.
Eu contava os meus sonhos rapidamente, como quem conta uma sinopse de cinco linhas de um filme, e só me detinha um pouco mais se a minha mulher ficava curiosa com alguma coisa. Depois deixávamos a conversa tomar o rumo que naturalmente ela quisesse tomar.
E enquanto isso as pessoas ainda estavam urrando lá fora, assustando o meu cachorro, que é neurastênico, e fazendo estremecer as estrelas com a angústia politizada de uma população bêbada de hormônios de todos os tipos, nem todos eles naturais.
Depois de algumas semanas fazendo isso eu tinha na cabeça uma boa coleção de sonhos. E uma vontade começou a surgir, de escrever um livro que fosse realista em linhas gerais mas, nos detalhes, seguisse a lógica dos sonhos.
Na vida real, quando você perde a mão num pesadelo, no pesadelo seguinte a sua mão está de volta. No livro que eu ia escrever, se um personagem perdesse a mão em um capítulo, no seguinte ainda não teria mão. Qual seria a graça se nada tivesse consequência nenhuma? Mas, dois capítulos depois, nada é garantido: talvez voltasse a ter a mão, ou talvez nunca a tivesse perdido, tivesse perdido uma perna. Por que não?
Pois foi assim que escrevi “Totolino”. O romance que comecei no início do corona é não propriamente sobre sonhos mas feito de sonhos, de pesadelos na maioria, que tive. Digamos que refilmei os sonhos que tive, com licenças poéticas para que coubessem numa narrativa só, entrelaçados uns nos outros.
A trama central do livro envolve o personagem Totolino, um psicopata que me surgiu por inteiro num sonho alguns anos atrás. Esse sonho foi exatamente como está no primeiro capítulo do livro, que vou colocar aí embaixo. Só incluí uns detalhes que não lembrava ao acordar, o resto é igual.
O que havia de especialmente repugnante no sonho era a sensação de que o Totolino realmente tinha pena das suas vítimas; que não era uma pena fingida, era autêntica. Só, talvez, exagerada pelo seu jeito de cantor operístico canastrão. E também a pena que ele tinha de si mesmo, por se sentir obrigado “pelo destino” a fazer o que fazia: isso também me atingiu no sonho como algo muito repulsivo, e essa sensação de repulsa ficou comigo uns dias depois de acordar do pesadelo.
Enfim, é esse o livro. É o livro menos leve que escrevi, mas tem momentos engraçados, espero. É um livro estranho. Sou grato a ele porque, durante um ano, enquanto eu o escrevia ou pensava nele durante o dia, ele me ajudou a não ouvir os urros de desespero e faniquito que vinham da cidade lá fora.
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Detalhes do autor
Alexandre Soares Silva
Alexandre Soares Silva nasceu em 1968. Publicou três romances, A Coisa Não-Deus, Morte e Vida Celestina e A Alma da Festa, além de uma coletânea de ensaios, A Humanidade é uma Gorda Dançando em um Banquinho. Trabalha como roteirista e vive em São Paulo.