Pavão-Pavãozinho (conto)
Por Matheus Bensabat
Deixou a base da UPP e foi para a entrada do baile funk, na parte baixa.
— Iaí, molhou a mão dos hômi?
Sem responder, contou as notas de cinquenta. Uma, duas, três, quatro.
— É o que tem, – disse – estendendo-as para o gerente.
— Tá certo… Chama a vagabunda. É a branquinha que mora na 13, Mariana. Tá avisada.
Cigarrão sentiu-se ofendido. “Não sou tua puta!”, quis dizer. Não era homem de recados.
— É o último sobrado. Tem um lençol vermelho na janela – disse ainda.
Permaneceu imóvel por alguns segundos, imaginando como seria se descarregasse a Glock… Mas não poderia matá-lo por matar.
— Vaza!
Anteviu o corpo enrijecido, o sangue abrindo caminho na pele chamuscada. Controlou-se, entretanto. Como aquele sujeito subira em tão pouco tempo? Ele, Cigarrão, cria do Pavão-Pavãozinho, jamais fora beneficiado. Mas o que poderia fazer? Obedecia às ordens dos superiores e as executava, tão-somente.
Foi atrás da mulher, conjecturando possibilidades. Do pátio passou a uma viela sombria; apenas uma lâmpada, ao longe, orientava-o. Procurou distinguir o sobrado. A luz estava apagada.
— Mariana!
Fixou os olhos na vidraça. Em poucos segundos uma mão branca como neve arriava parte do pano. Mariana pediu para que ele esperasse. Estava pintando as unhas.
Cigarrão reconheceu-a… Então era a mesma Mariana. Ali estava a pérola sagrada e impoluta do chefe.
E que mulher: o vestido colado ao corpo, salientando o formato dos seios…
— Tá te esperando na entrada do baile – disse, vendo-a no portão. Continuou viela adentro, exultante. Saiu no beco do Tatão. A um canto, recostado no muro com o fuzil entre as pernas, Formiga cochilava. Deu-lhe um chute na perna:
— Acorda, malandro!
Contorceu-se como se tivesse levado um choque.
— Ô desgraçado!
— Levanta! Marreta tá arrebentando a mulher do patrão! — disse, pensando nos seios da jovem.
Ajeitou a bandoleira; pôs-se de pé cuspindo o baseado.
— Vai perder a cabeça!
— É. Só presta pra fazer conta e mais porra nenhuma!
Formiga não entendeu. Quem cuidava das contas era o chefe. Chegou a vê-lo, certo dia, com uma máquina branca, agrupando as notas metodicamente na boca do aparelho.
— Iiih, que conta! Quem mexe com isso é ele não.
Como poderia ser tão idiota? Estava no tráfico desde a infância. Começara como olheiro e em pouco tempo, conquistando a confiança de todos, passou a radinho, monitorando da laje o movimento na rua principal, todos os dias. Não demorou para chegar a soldado. Nas primeiras semanas mal conseguira portar o fuzil. Sem forças, carcomido pelas lombrigas, dispensava a bandoleira: seria mais fácil carregá-lo com as duas mãos, sem pesar o ombro.
A verdade é que ele não sabia distinguir cada função. Todos, para ele, ocupavam o mesmo cargo: se alguém falasse mais alto, acatava, simples assim — era o que julgava por hierarquia.
Sentou-se novamente. “Ele parece mermo um cigarro”. “Nada. É menor que eu…”.
— Iaí, vai caguetar?
Cigarrão não respondeu; deu as costas, deixando o vagabundo conciliar o sono. Era um fraco — assim que o blindado passava pela barricada tremia nas pernas, atirava contra a polícia correndo, como um pavão, em direção à parte alta.
Ganhou a principal. Passou para a rua do Afro Reggae. Um grupo descia para Copacabana. Pediu caninha da roça no boteco do Paraíba; o luar se dissolvia nos muros sem emboço — a noite ainda mais densa. Bebeu a cachaça e pegou uma garrafa de cerveja, deixando-se levar por pensamentos cruzados: uma troca de tiros com a BOPE em julho — o sereno da madrugada, o grito seco de um policial baleado, o tinir do revólver travando, companheiros feridos… Formiga, agachado atrás do poste, tentando se proteger dos disparos; a praça inaugurada pelo governo Cabral com os bancos de concreto fora do lugar; o baile funk que naquela noite enriqueceria o morro com o dinheiro da Zona Sul. Prostitutas…
Avistou-a. Pôde acompanha-los até certo ponto; minutos depois traspunham o limite do paredão de som, favela adentro.
Pela primeira vez na vida sentiu-se útil, quase poderoso. Levantou-se da cadeira num assomo de coragem e, equilibrando-se na pilastra, para o comerciante encolhido por detrás do balcão:
— Tá na conta da bandidagem!
Largou a garrafa na mesa de alumínio. Foi para a parte alta.
Mesmo nos dias de festa o dono se mantinha encafuado no cimo do morro. Pequeno cômodo sem revestimento. Uma lâmpada débil mal iluminava as feições. À porta, dois soldados, um de fuzil e o outro com uma Magnum .357, crianças ainda, preparavam um cigarro de haxixe, prontos para dividir o plantão da noite.
— É uma merda, chefe… — disse Cigarrão com ar de choro —, o gerente tá machucando a tua Mariana…
Era um pedaço de rosto atrevido, musculatura magra; olhá-lo dava uma espécie de vertigem, de suores gelados. Trincou os dentes com os olhos quase fora das órbitas, denunciando ódio. Preparando uma carreta de cocaína, ordenou:
— Oh, menor —, manda chamar o gerente!
Saiu o pequeno com a pistola na cintura, à cata do traficante. Cinco minutos e já estava na parte baixa. Passou pelo paredão de som. O DJ estava tocando um proibidão; homens e mulheres se esfregavam esboçando lascividade.
Encontrou-o na caluda, distante da algazarra, numa das vielas com Mariana nos braços. Ao perceber o brilho da arma se destacar na cintura esquelética, Marreta aprumou-se. Ouviu com desatenção a voz fina a exigir que comparecesse na parte alta, ordem do chefe.
Pressentindo o que estava por vir, lembrou-se da sua última noite em Niterói — noite de São João. Fora arrastado por homens do Juca-Branco, uns cinco deles, até Piratininga. Amarraram-no num tronco de pau ferro, no matagal da Praia do Sossego — aplicariam, no dia seguinte, um batismo de sangue. “Daqui tu não sai”. Passou a madrugada com a boca endurecida, a perna cutilada. À aurora, percebera, num caminho de trilha, um velhote com uma caixa de pesca. Tentou assobiar; acabou cuspindo coágulo. O caduco, apreensivo, voltou-se a ele. “Arranca o nó, coroa!”. Liberto, tomou-lhe a faca e, da forma como estava, quase nu, saiu em direção à orla. Rendeu um motociclista. Atravessou a Ponte Rio-Niterói.
Entrou no cômodo com o moleque do lado.
— O safado! — rugiu o chefe.
Não fora intencional. Errara por desconhecimento. O que poderia fazer se, estabelecido há pouco na favela, ninguém o avisara que a desgraçada se envolvia com o dono?
E, engolindo seco:
— Eu não sabia, chefe, não esculacha não!
Tragando um cigarro de haxixe, o nariz sujo de pó, deu-lhe dois tapas no rosto.
— Que se foda, vai para o micro-ondas!
Subiu de seu peito um furor de choro e angústia. Encurvado e trêmulo, decidiu rebater, implorar. Voltaria para Niterói, deixaria a boca de fumo no Pavão-Pavãozinho para servir ao comando no Morro do Estado, mesmo jurado de morte. Na origem da sentença também estava uma mulher.
Mas ele, serpente da calúnia, soube dissuadir os comparsas do Cantagalo: saíra de lá expulso, não fora aprovado pelo caudilho.
Recompôs-se ao notar a figura de espinha atravessada, exsudando de alegria através de um risinho mal contido na aresta da boca. Ofuscado pela luz rarefeita, Cigarrão não se mexia. Esqueceu-se da exigência patética, do formato dos seios de Mariana. Agora, letificado pelo medo do rival, experimentava uma agradável sensação de vitória.
— E Cigarrão assume a gerência — sentenciou.
Detalhes do autor
Matheus Bensabat
Matheus Bensabat nasceu em Niterói, é técnico em energias renováveis.