Padre Júlio Kowalski (conto)
— Já contei pra vocês a história do padre Júlio Kowalski? Ah, padre Kowaslki, que morte!
— Não!
— Conto, mas primeiro vocês têm que escovar os dentes. Vão, os três, já pro banheiro escovar os dentes! – ordenou Cristina.
— Ah, mãe! Deixa o pai contar…
— Pro banheiro, o pai não vai fugir. Padre Kowalski espera. E escovem direito. João, leve o teu banquinho, não quero molhadeira no banheiro.
Era janeiro, e as crianças estavam em férias escolares. Chovera o dia todo. Não saíram de casa. João, o mais novinho, dormira durante a tarde; Maria, a pré-adolescente, reclamava que não tinha feito nada de interessante; Alice, a do meio, só sabia dizer que estava entediada. Eu precisava entretê-los, o que sempre faço contando histórias.
— Conta pai, disse o João, conta uma história de zumbi!
— De zumbi eu não quero, disse a Alice.
— Conta a do padre, pai – disse a Maria – Adoro suas histórias de padre. Kowalski é o padre que casou com a secretária da paróquia?
— Não, esse foi o padre Bruno. Safadinho. Querem que conte de novo?
— Não!
— Padre Voxaxi – disse o João.
— Júlio Kowalski, era o nome dele, João, e sua curiosa história é a seguinte:
– Contando, ninguém acredita como foi que morreu o padre Kowalski. Conheci-o uns anos atrás, quando eu era ministro da eucaristia na paróquia São Cristóvão. Mas a Cristina conhece a história do padre Júlio Kowalski e poderá me ajudar onde a minha memória falhar. Ela viu tudo e pode testemunhar se o que falo é ou não verdade. Eu invoco desde já o testemunho dela, que é uma santa mulher, e porque sei que a história do padre Kowalski é daquelas que não se acredita sem o apoio de testemunhas….
Caía lá fora uma chuvinha miúda, João estava sem sono, e eu estava com uma certa verve anticlerical. Do apartamento ao lado podia-se ouvir um ruído incômodo de televisão. Do de cima, um farfalhar de patas de cachorro.
— Esta vizinha deve ser surda, pra assistir televisão num volume desses, comentei com Cristina…
— Pai, hoje rezaremos pela alma do padre Júlio Kowalski?
— Podemos rezar, Alice…
— Ele foi pro inferno ou pro céu?
— Você esqueceu do purgatório, filho. Pode estar no purgatório também…
— É que se ele foi pro inferno, – arrazoou com seriedade a filha — não adianta mais rezar, e se foi pro céu o correto seria pedirmos não pelo padre, mas ao padre para que ele interceda a Deus por nós, não?
— Bem, não sabemos se ele foi para o céu. Um dia saberemos.
— Mas pai, se ele já morreu, de que adianta rezar?
— Deus… Veja… como posso explicar, Deus é como… está vendo esta folha na qual você estava desenhando — E tracei uma linha reta. – Nós nascemos, vivemos e morremos na folha. Deus é a folha. Sem a folha não tem como existir a linha. A folha contém a linha toda, e todas as suas possibilidades. Para onde quer que a linha vá, é na folha que ela vai. Para Deus, esta linha, a nossa vida, já existe inteiramente. Deus ouve nossa oração agora, e pode atender porque, digamos, está também lá no dia da morte do padre Júlio Kowalski. A linha toda está na folha…
— Acho que entendi! Pai, a história do padre!
— Melhor não sei explicar. Vamos ao padre, depois rezamos. A história é curta.
– Era uma vez um padre chamado Júlio Kowalski, padre jovem, de meia idade pra ser mais exato. Quando chegou, todos o achamos um tanto jovem porque, em comparação ao padre Godofredo, em verdade ele parecia um menino…
— Que saudade do Padre Godofredo, suspirou a mãe. Por onde será que anda… Deve estar aposentado, né?
— Aquele sim era um padre de verdade. Mas prossigo.
– Padre Godofredo, já que falamos dele, ficou mais de 30 anos na paróquia. Vocês nem chegaram a conhecê-lo. Foi ele quem te batizou, Maria. Era um pai para todos. Faltava pouco para se aposentar, mas um dia veio uma ordem de remoção, que pegou a todos de surpresa. Em seu lugar viria um padre mais jovem. Padre Júlio Kowalski. A paróquia se mobilizou, pedimos ao Bispo para manter o padre Godofredo, rezamos, choramos, tudo em vão. O padre novo chegou.
“Irmãos, meu nome é Júlio Kowalski, sou mestre em teologia pela PUC e doutor em educação pela Unicamp, e sei que não queriam que eu estivesse aqui”, lembra disso, Cristina? Foi assim que ele se apresentou.
Padre Júlio Kowalski, polaco, meia idade, olhar inquieto, agitado, chegou mudando tudo, numa agitação feroz: encheu a igreja de flores, montou comissões, pastorais, grupos, para reforma do salão paroquial, de obras, para campanha da fraternidade, para festa do padroeiro, convocou ministros, e pastorais para reuniões, apresentava slides, queria colocar em prática o que aprendera no doutorado na Unicamp, repetia sempre “porque no doutorado na Unicamp aprendi que…” Praticava esportes. Fazia musculação. Cuidava do ser humano. De forma integral. Corpo, mente e alma. Corpo são, mente sã. Cuidava da natureza. E dos animaizinhos. Queria todo mundo participando da vida paroquial. Era contra a acumulação de riqueza, e espoliação dos pobres. Morria de medo de assalto. Colocou grades na igreja. Câmeras na igreja e na casa paroquial. Fechou a igreja, que só abria agora nos horários das missas. Envolveu-se em fofocas. Depois “tirava a limpo” as fofocas, e magoava-se, e ofendia-se, e dava indiretas do púlpito e nas redes sociais. Cantava. E dançava. Tocava violão. Jogava bingo. Chorava, nas festas, depois que bebia. Não usava batina, tampouco clergyman. Inovava. Sempre um rito novo. Uma nova forma de fazer a velha missa. Mãos para cima, mãos para baixo, imposição de mãos, abençoando o irmão. Os irmãos da esquerda, os irmãos da direita. Novas formas de amar, e rezar e se relacionar. Dizia sempre que era feliz, feliz!, e que amava, amava! E corria pelas ruas da cidade todas as manhãs vestindo um agasalho da Adidas. Queria companhia, sempre. E novidade. Sempre uma novidade. Ô padre para gostar de novidade.
– Maria, você que é a única que ainda está prestando atenção (João a esta hora dormia e Alice estava mais interessada em sua boneca): padre Kowalski passou a anunciar uma surpresa para o dia da festa do padroeiro. Fazia mistério. Andava eufórico, ansioso. Viajou. Tirou uns dias de folga. Dizia que era para preparar a surpresa. Os paroquianos que tratassem de vender a rifa e organizar a festa. E o salão? A reforma? As toalhas novas? O telão? A cortina? Sem poder acompanhar de perto os preparativos da festa (porque caiu de cama com enxaqueca), o padre disparava mensagens, repousando num quarto escuro, com uma toalha úmida no rosto. A enxaqueca, enfim, foi-se embora. Padre Júlio Kowalski havia encontrado uma ocupação que correspondia ao seu gênio: a surpresa. Todos os bilhetes da rifa foram vendidos. Com todo o ímpeto da sua índole audaciosa, Kowalski estudava, fazia cálculos, montava e desmontava apetrechos que chegavam na paróquia em caixas e iam direto para o barracão, tudo em segredo. O salão paroquial estava pronto. A surpresa estava pronta, ele dizia. Os bilhetes da rifa esgotaram. Imprimiram novos. Que esgotaram também. O povo que não faltasse à festa.
E realmente o povo foi.
Um trovão reboou pelo quarto. João acordou. Tinha medo de trovões. Tampou os ouvidos, tremeu os beiços, quis chorar. Ralhei. Alice largou a boneca e voltou para história. Nenhum Vermeer jamais conseguiu retratar perfeitamente tudo o que se encerra num quarto de criança quando chove lá fora e, à meia-luz de um abajur, sob o olhar do Anjo da Guarda, um pai conta uma história para esperar o sono dos filhos chegar: porque hoje vemos apenas confusamente, e o próprio Deus está ali. A chuva aumentou. O vento zunia numa fresta da janela. Fechei-a. E foi o mote para eu entrar no dia de São Cristóvão.
— O dia da festa amanheceu chuvoso.
— Chuvoso é pouco – completou a mãe – chovia muito! E fazia frio.
Foi mais gente do que o esperado, e muitos tiveram de ficar do lado de fora, no pátio lamacento da paróquia, debaixo dos guarda-chuvas, esperando a hora da surpresa.
— Um céu de chumbo, — poetizei — um elmo de aço congelante. Aconselharam ao padre que desistisse. Mas padre Kowalski estava irredutível: “As nuvens não são problema. Lá em cima faz tempo bom. Eu vou voar acima delas!”
Alçado por mil balões de festa, padre Júlio Kowaslki subiu a uma velocidade de seis metros por segundos. A princípio os ventos sopravam do oceano para o continente. Mas dezessete minutos depois ele já estava a 5.800 metros de altitude, e o variômetro indicava que estava deslocando-se em direção ao mar. No seu último contato que fez o padre disse: “Graças a Deus estou bem de saúde, consciência tranqüila. Tá muito frio aqui, mas está tudo bem. Eu preciso que me ensinem a operar este GPS, que é a única forma de alguém por terra saber onde estou. O celular via satélite fica saindo fora de área. Além do mais a bateria está acabando”.
Nunca mais foi encontrado.
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Detalhes do autor
Luiz Cezar de Araújo
Nasceu em Palmas (PR) em 1981. Formou-se em Direito.
É autor de dois livros de prosa ficcional: A Vida é Traição (2014) e À Sombra do Pai (2017). Editou o volume O Remédio é a Crítica, coletânea de textos não-ficcionais de Machado de Assis, publicado em 2015 pela Editora Concreta.
Atualmente mora em Curitiba, com a esposa Christiane e seus quatro filhos.