Os Esportes e o Sentido da Vida
Este texto é um trecho do livro Ego & Alma.
O que há no esporte que o fez ganhar e manter tanto o interesse das sociedades ocidentais modernas? Os acadêmicos que o levam a sério e que não o descartam como um circo vulgar para as massas tendem a vê-lo como mais uma vítima da sociedade de consumo. Eles temem que um passatempo outrora nobre esteja sendo comercializado – ainda que com sucesso brilhante – como mero entretenimento.[1]
O argumento é de que o esporte costumava ser uma parte rica da vida comunitária, proporcionando rituais convincentes para a exibição de valores como habilidade, coragem e fair play. Os grandes investidores, que estão apenas interessados nos lucros, assumiram o esporte e o estão transformando rapidamente numa miscelânea de espetáculos sensacionais, adaptados ao entretenimento de massa. No processo, os rituais são destruídos, as regras são alteradas e os padrões declinam. Os jogadores perdem seus laços tradicionais com os clubes e com os companheiros de equipe, assim como perdem o ethos do bom espírito esportivo. Eles mesmos tornam-se seguidores egoístas de ganhos pessoais máximos. As drogas e a corrupção entram. Uma nova casta de espectadores aparece, ignorante dos códigos e dos padrões tradicionais, cujo principal interesse reside na ação sensacional, no estilo da vingança violenta. Em suma, o esporte se torna um espetáculo que “espelha e satisfaz as exigências emocionais dos consumidores”.[2]
Parece haver pouca dúvida de que a motivação do lucro está fortemente ativa no esporte e de que a pressiona nesta direção. No entanto, essa motivação é contraposta por uma bateria de forças muito diferentes. Uma guerra cultural está ocorrendo, assim como em muitas outras áreas da sociedade moderna. As forças contrárias estão profundamente enraizadas e são poderosas.
A fraqueza severa da teoria da comercialização – uma fraqueza herdada do conjunto da sociologia ao longo do último século – decorre do fato de ela subestimar enormemente as ligações duradouras da grande maioria no Ocidente moderno. A maioria das pessoas continua a sentir-se fortemente comovida por valores tão antigos como confiança, educação, proteção dos inocentes e dos desamparados, honestidade, coragem e patriotismo. Elas fazem isso através de sua experiência cotidiana da vida familiar e de suas vicissitudes; do trabalho; e da vida do subúrbio, da cidade e da nação. Combinando-se com estas forças conservadoras, há novos sentidos a serem explorados.
A sociologia do esporte sofre igualmente da falta de empatia com o fã. Não imagina como é estar no seu lugar. Poderia aprender com Nick Hornby, que, em seu livro Fever Pitch, múltiplas vezes premiado e best-seller, confessa ter uma vida obcecada pelo futebol – “nada importa, exceto o futebol”.[3] Uma das coisas que Hornby deixa claro é que sua paixão não é consumista. O estado natural do torcedor é uma “decepção amarga”[4]; a experiência típica da multidão é “ficar irritada com frustração e preocupação”[5].
[…]
Quais são os motivos que atraem os indivíduos, seja como competidores, seja como espectadores? A principal teoria psicológica – de Freud – sustentou que o esporte é um meio de sublimar a agressão. Ele fornece um contexto para a atividade vigorosa e, às vezes violenta, de maneira cuidadosamente regulada. A agressão pode ser exercida com uma boa consciência, em grande medida porque os controles significam que ninguém vai se machucar seriamente nem o desejo de vingança sairá do controle. Quando os homens começam a ficar gravemente feridos, as regras são reforçadas.
É difícil superestimar a importância terapêutica da violência dos esportes em equipe, especialmente do futebol, para os homens jovens. É uma válvula de escape aprovada para a mistura explosiva das múltiplas frustrações da transição da infância para a masculinidade e para a necessidade inata de poder do animal macho. Como Freud disse, a ansiedade fundamental do sexo masculino gira em torno da castração: isto é, do medo da impotência, da emasculação.[1] A ansiedade da castração produz uma grande gama de tentativas de compensação – algumas delas perigosas, outras criminosas – incluindo dirigir rápido, beber muito, xingar, arrumar brigas e praticar a conquista sádica de mulheres. No futebol, a luta pelo poder pode ser travada até a exaustão (com a catarse completa dos instintos mais violentos), sem haver consequências anti-sociais.
O problema psicológico profundo enfrentado pelos jovens que perderam o desejo de jogar esportes competitivos é demostrado por Herbert Hendin em The Age of Sensation, um estudo com estudantes universitários americanos no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. O estudo baseia-se em cinco centenas de entrevistas psicanalíticas conduzidas pelo autor, que resultaram num livro que se destaca como a versão moderna do inferno de Dante. Hendin retrata a frieza, a falta de alegria e o tédio deste mundo juvenil em que a intimidade é muito ameaçadora para se aventurar: ” Nada distingue mais esta geração de jovens do que sua irresistível atração pelo desejo de matar para sobreviver .”[2]
Os alunos de Hendin não praticavam mais esportes. Eles eram assombrados pelo medo de serem humilhados se perdessem e de se tornarem combatentes assassinos se ganhassem. A repressão da agressão, quase sem descanso, levou a uma vida imaginativa à beira da loucura, na qual o mundo inteiro e, especialmente, o mundo pessoal tornaram-se campos minados de fantasias paranóicas. Um jovem, falando sobre a intimidade, disse: “Se você mostrar seus sentimentos, terá suas pernas cortadas!”[3] Esses estudantes ainda queriam ganhar prêmios, mas esperavam fazer isso sem competir. Hendin destaca o problema maior das sociedades em geral com o rito de passagem dos meninos para a idade adulta responsável em comparação com as meninas.[4]
O esporte atua com sucesso como um meio de sublimar a agressão. Essa explicação, no entanto, constitui um eufemismo da verdade mais antiga e mais profunda de que o esporte é o substituto civilizado da guerra. A transformação deliberada da guerra medieval no torneio justo é apenas um dos desdobramentos mais óbvios. O instinto guerreiro e o ethos guerreiro são ressuscitados pelo futebol moderno. O time se torna um bando de irmãos de sangue, homens que se reúnem para empreender façanhas perigosas sob condições de pressão e ameaça. A experiência cria fortes laços de companheirismo – laços que muitas vezes duram por toda a vida e, certamente, por muito tempo depois que a equipe se desfaz. Alunos que eram membros de times escreveram inconscientemente, num estilo similar ao dos veteranos de guerra, sobre a ligação com seus companheiros.
O ethos guerreiro, enfatizando a coragem, a tenacidade e o auto-sacrifício para o bem maior da coletividade transita diretamente para o futebol – com a grande diferença, obviamente, de que não se exige o maior sacrifício de todos. O que está envolvido é a “masculinidade”, com suas raízes mais profundas no herói de guerra, quaisquer que sejam as sutilezas humanistas da civilização moderna. Essas raízes não parecem murchar. De fato, tive alunos que, sem provocação, disseram que, caso houvesse uma guerra, eles e seus companheiros de equipe seriam os primeiros a se voluntariar, e, devido à sua moral coletiva, formariam uma excelente unidade. Foi o caso, na Primeira Guerra Mundial, dos homens das escolas públicas inglesas que, escrevendo das trincheiras, refletiam que lutar pela nação era como jogar pela escola.[5] Goste-se ou não, a virtude política depende disso – a virtude no sentido maquiavélico, da vontade e da força de caráter para defender o seu próprio Estado, quando ele precisar ser defendido.
Para continuar a leitura, compre o livro Ego & Alma, de John Carroll.
[1] Sigmund Freud, Dictionary of Psychoanalysis, ed. N. B. F. Gaynor, Premier, New York, 1963, pp. 22–3.
[2] Hendin, The Age of Sensation, p. 103.
[3] Hendin, The Age of Sensation, p. 294.
[4] Esta foi a principal razão pela qual os aborígines australianos, em seus tipos de sociedade muito diferentes, submetiam, tradicionalmente, apenas os meninos à iniciação, ritual que tinha maior importância cultural do que qualquer outro. Veja Robert Tonkinson, The Mardu Aborigines, Holt, Rinehart and Winston, Fortworth, Texas, 1993, ch. 4.
[5] Gathorne-Hardy, The Public School Phenomenon, pp. 213–18.
[1] Veja, por exemplo, John Alt, ‘Sport and Cultural Reification: from ritual to mass consumption’, Theory, Culture and Society, vol. 1, no. 3, 1983, pp. 93–107. George Orwell, em ‘The Sporting Spirit’, Collected Essays, Journalism and Letters, vol. IV, Secker & Warburg, London, 1968. pp. 40–4, era mais da velha guarda, ao identificar crueldade, violência e xenofobia. Por outro lado, Michael Novak, em The Joy of Sports, fornece muitos exemplos americanos que contrariam a tese da comercialização. Gumbrecht, em In Praise of Athletic Beauty, celebra o esporte por seu apelo estético.
[2] Vide, ‘Sport and Cultural Reification: from ritual to mass consumption’, p. 98.
[3] Hornby, Fever Pitch, p. 225.
[4] Hornby, Fever Pitch, p. 20.
[5] Hornby, Fever Pitch, p. 198.
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Detalhes do autor
John Carroll
John Carroll, nascido em 1944, vem sendo considerado um dos mais proeminentes pensadores contemporâneos no mundo de língua inglesa. Ocupa o cargo de professor emérito de sociologia na La Trobe University, em Melbourne, Austrália. Publicou diversos livros nos últimos anos, entre os quais destacam-se The Existential Jesus, Humanism: The Rebirth and Wreck of Western Culture e Intruders In The Bush: The Australian Quest For Identity