O Saxofonista (conto)
Por Matheus Bensabat
Ajeitou a gravata, engraxou o sapato e, vestindo o terno desbotado, beijou a filha com uma vibração de pesar, conservando antigos hábitos. Deixou-a no internato e subiu pela Rua do Passeio, envolvendo com o braço esquerdo o estojo de madeira. Ao chegar à entrada do Theatro Municipal, acomodou-se na escadaria, observando o movimento na Praça Floriano. Começou a ensaiar um adágio apalpando a dedeira em movimentos suaves, pincelando a clavícula com o queixo.
Honório Maciel sentia o sol aumentar as máculas invisíveis em sua pele, velando os canteiros da praça com uma serena simpatia. Parou, subitamente, de tocar; limpou a braçadeira com um lenço vermelho e, pouco a pouco, crescendo o ritmo, desfez-se em nova postura, agora um pouco mais de lado, como que de bruços, a dedilhar sem pausas um quarteto. Não demorou muito para que o dinheiro começasse a pingar no estojo. Quando recebia alguma coisa, suspendia os movimentos meneando a cabeça em sinal de agradecimento, olhando de soslaio para as notas de dois reais, quase sempre, ou para as moedas que caíam — achava bonito vê-las se agrupando, em contraste com o fundo roxo, pensava em buquês, em jujubas sortidas; avançou na execução — a melopeia unia-se ao ruído das alvéolas. Fez uma nova pausa, limpou os óculos com o mesmo lenço, compenetrou-se e, ajeitando o corpo, sempiternamente, como o ator que se prepara para o último ato, começou a executar a partitura, a qual se dedicava desde a adolescência, de uma forma tão resoluta, como se quisesse antecipar a primavera.
Nisto, um senhor muito encurvado, de terno e bengala, que também vinha do Passeio, distinguiu o começo da Fantasia para saxofone de Villa-Lobos. Sentou-se à sua frente, acomodando-se no banco da praça, a observá-lo. Maciel se movimentava como um bailarino nos acentos de maior vigor; o sapato lustrado rinhando o passadiço na mesma intensidade dos membros superiores, que bordejavam, no entanto, leves e tranquilos. O senhor entrecruzou as pernas. Maciel firmou os dedos na cortiça, passando ao allegro com desenvoltura. E que melindre quando, ao mover de olhos, firmando-se ainda mais à bengala, na mudança de uma nota a outra, viu Mariana, à sua frente, com o mesmo casaco de pele vermelho que usara em Teresópolis, a rodopiar na linguagem dos sons. Tão delicada que mais parecia um jarro de porcelana oriental — não se impressionou com a palidez do rosto, quando o arpejo, antes de uma pequena pausa, desandou a levá-lo à Serra dos Órgãos, à trilha da Pedra do Sino, no inverno de 1970, horas depois de marcarem a data do casamento — nuvens pesadas que sobre suas cabeças pairavam, anunciando a união solene. Via-a como naquela época, mas sem a palidez de agora. Mariana tinha a pele morena, os lábios volumosos, uma pintinha abaixo do lábio, como se as mãos de hábil pintor houvessem aplicado uma suave estacada de tinta marrom. Decerto, era uma pequena indiazinha como a filha de Maciel. O intervalo de meio-tom deixou um vácuo na praça, mas não demorou para que o arpejo continuasse, para que o espetáculo iniciado, como se fosse o último, chegasse ao fim, os dedos velozes e traquejados — memorara a cesárea malsucedida, o corpo moreno dilatado na maca, médicos e enfermeiros indiferentes às súplicas da cunhada que, com o olhar piedoso, reunindo os dedos, fizera o sinal da cruz na testa da irmã, antes de estender-lhe um lençol branco sobre o corpo, enquanto ele gaguejava em assomos de loucura com o rosto entrecortado de lágrimas, no entanto, sem o barítono de agora que o enternecia, afundando-o em lembranças passadas, dando a elas a lousa tumular.
De pé, quase ao final da Fantasia, urdiu algumas variações que aprendera na Sala de concertos Cecília Meireles. “Há algo de sublime no músico”, pensou, mudando a bengala de posição. Sentiu-se impulsionado a aplaudi-lo, a levantar-se do banco para abraçá-lo e para deixar-lhe trocados, mas não se mexeu. Maciel afastou os lábios da boquilha e olhou para a Biblioteca Nacional. Entardecia. Guardou o saxofone no estojo e desceu os degraus do Theatro, sentindo a mansidão da tarde se espalhar pela praça, como se ela o impulsionasse a tocar, no dia seguinte, com maior intensidade e precisão a mesma partitura. Passou pelo senhor cumprimentando-o com um aceno, ao que ele retribuiu sublimando o dedo indicador.
Detalhes do autor
Matheus Bensabat
Matheus Bensabat nasceu em Niterói, é técnico em energias renováveis.
Gostei. Excelente conto.
“Há algo de sublime no músico”.
Belíssimo. Parabéns!
Muito bom!