O Prêmio (conto)
Por Fábio Gonçalves
I.
Cícero entrou em casa querendo ter um troço. Suadouro nas mãos, coração em batuques esquisitos, o escuro querendo baixar nos seus olhos. Passou pela cozinha alheando-se da mulher. Tinha careta de quem deparasse com visagem na encruzilhada, naquele princípio de noite. Quis comedir-se, puxou ar. Abriu a gaveta das cuecas com máxima dificuldade. Tirou cautelosamente seu saquinho do Mercado União de Timbó. Cavoucou com ansiedade de criança até que sentiu o bilhete entre os dedos. Fez carinho ao bilhete como se quisesse adulá-lo. Cerrou firme os olhos. Sua existência inteira partiu-se em duas metades. Tudo o que ele teve de esperança haveria ou de dar ali o seu prêmio fatal ou de se extinguir definitivamente, como também se extinguira a fé e a caridade infundidas no Batismo. Abriu os olhos como quem abrisse janela através da qual, ato seguinte, necessariamente pularia Deus ou o Diabo. Trouxe o bilhete diante dos olhos, arregalou-os. Era o número. Estava ali, de fato: 8.6.2.9.9. Virou o bilhete de ponta cabeça. O 2 era a garantia da posição verdadeira. Conferiu, número a número: 8… 6… 2… 9… Era mesmo. Fato insofismável. Mordeu a manga da camisa e o punho, contraiu a musculatura inteira, ficando muito vermelho, levou as mãos à cabeça, esfregou a cara. Tudo isso calado. Conferia novamente…
— Ciço? Já chegou, Ciço? — questionou a mulher, estranhando a luz acesa. O coração do homem desanimou e ele sentiu fraqueza nos membros. Foi rápido metendo o bilhete no saco, o saco na gaveta; encaixou-a no guarda-roupas combalido.
— Tô aqui, sim, mulher. Vim antes. Já temos janta?
II.
A cidade restou monotemática e obsessiva. Era o único assunto para todas as mesas familiares, fabulações colegiais, especulações do Jornal Timboense, querelas dos botecos da Praça Matriz. Discutia-se com todas as nuances da paixão e da sabedoria. Ora palpitava-se com sólido fundamento, ora lançava-se disparates impossíveis. Mas não havia quem não trouxesse na ponta da língua uma conjectura, uma aposta, salvo, claro, as crianças, os muito velhos, e os oito loucos da cidade, cada qual com suas loucuras distintas.
Quem seria o novo milionário? Certamente era cidadão de Timbó, o que só espicaçava a imaginação dos conspiradores. Casais deram de se olhar obliquamente. Os vizinhos trocavam perguntas maliciosas. O povo foi dominado por uma curiosidade totalitária. Quem haveria de ser o felizardo? E quem teria cavado tesouro em terreno tão emporcalhado?
III.
— Se o bonado tiver aqui e não bancar a rodada pra gente, tomara que ele termine corno e brocha.
Gargalhadas prorromperam no boteco Sete Chicos. Cícero sorriu amarelo.
— Mas seria possível que o ganhador estivesse aqui com a gente, na moita, sem dar um sinalzinho sequer? Capaz. Homem desses tinha é que ser ator de TV.
— Ih, gente, isso aí tá cheirando papo pra desbaratinar… — provocou Chico, o botequeiro.
— Ih… — fez-se em coro. Depois gargalhada.
Tomou a palavra Edivaldo, que tinha fama de filósofo:
— Só pode ser casado. Tirem todos os solteiros da lista. Tô afirmando. O vencedor é casado com medo de morrer nas mãos da patroa. Onde já se viu homem ganhar a vida na zona? No mínimo será capado.
— Capaz! — Replicou Chico. — Era aí que a patroa ia amar o cabra. Primeira vez que o chifre daria lucro. O fulano ia ganhar é outra lua de mel.
Riram arreganhado, ébrios, devassos.
— E tu Ciço, o que tu achas? — cortou a graça um dos bêbados que notou Cícero
desconcertado.
Cícero precisou falar, mesmo tímido e contrafeito.
— Acho que o Chico deu a deixa. A bolada tá com o Moreira. — Achou uma tirada salvadora — Ou tá com o Prefeito, aquele safado. Vai encher mais ainda aquelas tetas velhas da senhora primeira-dama.
Sorte dele que homens riem fácil e se esquecem rapidamente do mundo. Cícero deu gole na cerveja e voltou para dentro de si.
IV.
— E atenção, atenção! — Puxou o locutor matinal da Rádio Timbó. — As autoridades responsáveis pelo concurso dizem que o vencedor só tem mais dois dias para retirar a bolada de R$ 1.000.000,00 na Casa Noturna Prima Bouna, caso contrário o dinheiro acumula e voltará a sorteio. Judith Castanheira está lá na Câmara Municipal pra nos dizer como está a expectativa entre os nossos parlamentares. Vai daí, Ju!
*****
Cícero só ouviu até o “mais dois dias”; daí em diante seguiu absorto revirando sua massa, sob um sol de rachar concretagem.
— Mais cimento, Mestre Ciço? — Indagou o menino servente. O homem não deu troco.
— Seu Ciço, mais uma pazada de cimento aí? — O homem levantava a colher pesada, cavaca, jogava a massa de volta, no mesmo lugar, sem arte e objetivo lúcido.
— Seu Ciço… — o menino teve que cutucar. O homem despertou feroz:
— Bota cimento aí, seu moleque! Vamos! Vamos!
V.
Dois dias. Cada um dos dois dias virou um homem no delírio noturno de Cícero.
O primeiro era um velho de cãs enormes, vergado num bordão de profeta; o segundo era um jovem a toda popa, bonito feito os jovens de Hollywood. Aconselhava o velho, com o siso dos anos e a sinceridade do moribundo:
— Arreda, homem. Terá nisso a sua perdição. O jovem argumentou dando-lhe uma bicuda na vara, o que fez o outro estatelar numa pedra, morto.
Márcia o sacodiu:
— Já tá na hora, bem. Vai se atrasar.
VI.
— E aí, Cicinho, não vem, não? — Convidou-o Darlene Morena, fazendo seduções com o indicador e com o beiço.
O homem estava amuado e não deu confiança à puta de seu costume. Ficou no balcão, degustando a pinga e as canções que estalavam no jukebox. Nem para a Aline do pole dance, que era loira e fresca, nova na praça, ele dava atenção. Os
companheiros é que se fartavam. O Chico, o Moreira, o Lúcio, o Jacó, que era o dono da festança. Cada qual embolado em suas meninas, recebendo bebida na boca, beliscando petiscos, trocando beijinhos. Aline requebrava no palco. A
turma assobiava, aplaudia. Ciço, alheado e soturno, puxou conversa com o garçom Altemir:
— Hoje tô com o arrependimento me dando chave de braço.
— É, tem dia que bate. Já ouvi muito. Qual foi a lorota?
— Baralho no Jacó. É sempre baralho no Jacó. Mas dessa vez me deu pena. Devo tá ficando velho. Homem velho começa a sentir pena da mulher, que também vai ficando velha. Já aprontei muito, deve tá chegando o tempo de assentar.
O outro falava enquanto polia copos:
— É por aí, mesmo. Eu nunca tive mulher certa, mas acho que também ficaria com pena de judiar. Mas é que homem é homem. Complicado…
O complicado finalizou a questão. Ciço trocou de assunto:
— Estão vendendo bilhetes ainda?
— Opa. Tem, sim. Vai querer?
— Levo um. Cinco?
— Cinco. — Tirou uma cartela do avental. — Na mão.
Cícero inclinou a aba do boné.
— Olha, Ciço, imagina só o bafafá se tu ganhas, hahaha. A patroa te arrancas o fígado fora, não?
— Ganho nada. Imagina se o bilhete premiado vai sair dum puteirinho de quinta categoria como esse. A Trimania deve mandar só bilhete batizado.
— Vai pensando. Um camarada de Floripa, dum bordelzinho bacana, disse que já deu ganhador lá. Era mixaria? Era. Mas deu. É questão de sorte, Ciço. Vai na fé. E já prepara a lábia pra enrolar a Dona Márcia, hehehe. Mais cachaça?
— Bota.
VII.
Deitado com a mulher, Ciço relembrava o episódio. E matutava com certa dificuldade, porque nunca foi muito do seu feito semelhantes concentrações de espírito. Tinha que decidir, era amanhã ou nunca. Ficava calado e preservava a família, ou arriscava terminar rico e solitário. Mas ficaria solitário? Mulher boa é que não faltaria. Mulheres com carne mais fresca e gênio mais dócil, porque Márcia já estava decaída e azeda há muitos anos. Que se danasse a mulher. Cristão ele não era; não temia a justiça do inferno. Era pegar o dinheiro e se sumir nesse mundo que ele conhecia muito pouco. Algum tanto ele dava por terras e gados, porque terras e gados, segundo ensinam os marajás, nunca cessam de devolver rendimento. No mais era a esbórnia, a muvuca. A mulher se mexia na cama, parecia escutá-lo. Ele a sentiu e filosofou: não seria coisa de homem abandonar velha a mulher que desde jovem o servia. Márcia tinha suas amarguras, suas ranhetices, mais toda vida tratara dele como um príncipe. Honesta, discreta. Mulherão. Descobriu umas patranhas do homem e não fez grande revolta; antes resignou, suportou calada. Até na vez em que ele lhe levantou os punhos e deixou machucados no seu rosto ela aguentou firme.
Ameaçava deixá-lo, de quando em quando, mas era mulher de nobreza e resistia. Cícero nem precisava invocar o perdão. Ela perdoava com seu silêncio, com a roupa lavada, com a panela chiando no fogo. Repassando desse jeito, Cícero até sentiu uma ternura, uma vontade de que a mulher não se acabasse. Olhou para ela, que estava virada para o canto. Os cabelos já cinzentos. Estavam os dois ficando velhos. Que adiantava esse aluvião de riquezas na desembocadura da vida? Estava em época de morrer a qualquer ponto. Tomava o dinheiro, magoava a mulher, e morria. De que valia? Mas também podia não morrer, podia durar muito, carecer de remédios, de certos luxos. E tinha a chance de Márcia desculpar. Ficou nessa oscilação madrugada adentro.
VIII.
— Atenção! — Interrompeu a música o apresentador matinal da Rádio Timbó. — Notícia urgente, timboenses: acaba de chegar a informação de que o premiado, que não quis revelar sua identidade, se apresentou ainda há pouco na Casa
Noturna da Prima Bouna. É isso que a Trimania, organizadora do sorteio, acaba de nos informar. Repetindo essa informação quentíssima…
Cícero sentiu um formigamento no peito, as vistas turvaram. Largou a pá e correu para casa, deixando aturdido o moleque servente.
Abriu a porta em gesto de louco. Márcia não estava no seu posto de costume, à beira da pia, onde só se achava uma réstia de sol que coava pela janela.
— Márcia!?
Passou ao quarto com péssimos agouros. Também ali não estava a mulher. O peito doía. Tinha câimbras nas mãos.
— Márcia!? — Berrou alucinado.
Jogou a gaveta no chão e dilacerou a sacola do Mercado União de Timbó. Não, não estava lá.
O quarto girou, as paredes ondulavam. Tentou gritar ainda uma vez o nome da esposa, mas a voz já saiu engasgada e pastosa. Os olhos deram uma volta e o mundo pretejou definitivamente. Saiu um último suspiro:
— Vagabunda…
IX.
— Agora é vida nova, Altemir. Vida nova, meu bem — e decolou o jatinho.
Detalhes do autor
Fábio Gonçalves
Fábio Gonçalves nasceu em 1990. Professor de História e Redação. Jornalista e articulista. Escreveu para a Agência Estudos Nacionais; atualmente colabora no jornal Brasil Sem Medo. Casado com a Ana Beatriz, pai do Pedro Augusto. Mora em Diadema.
Fábio:
O conto ficou muito bom! Verdade seja dita: o seu estilo faz bem aos leitores brasileiros. Ele nos faz valorizar nossa língua e higieniza o ambiente literário contemporâneo. Meu desejo é que você continue avançando em sua caminhada literária. Deus o abençoe 🙂