O Generoso Senador Galvão (conto)
Por Diogo Fontana
Caminhava o Senador Galvão. Seguia pela Avenida Atlântica na bela tarde de sol, confiante e perfumado, exibindo a barba branca desbastada caprichosamente. Na cabeça trazia o charmoso chapéu Panamá cobrindo os fios grisalhos; e, no peito, levemente aberta, ostentava a camisa azul celeste de algodão. Trazia também o mais importante, o seu passado, o sobrenome: Galvão, Senador Ângelo Galvão, Ângelo Galvão de Braga e Silva, peso e tradição na política catarinense, um daqueles nomes que abrem portas e dobram joelhos.
Por onde passasse, nas imobiliárias, nas boutiques, nos bares; na banca de revista, na barbearia, na agência bancária, nos pet shops, no cafezinho da Havan, — era muito bem recebido, causava forte impressão. Nenhum dos cidadãos, contudo, lhe concedia uma acolhida alegre, com eflúvios de amizade, abraços familiares, sorrisos, gracejos e tapinhas nas costas. Não, o senador chegava, voz de trovão, porte largo e espadaúdo, escoltado pelo perene séquito de aduladores, aquelas criaturas que lhe carregariam numa liteira se ele assim desejasse, e o povo todo se encolhia, solícito e respeitoso, rastejante e submisso, curvado perante o rajá, o semideus da política. E como não se impressionar com aquele homem alto e poderoso, habitante de Brasília, presidenciável, televisivo, figura emblemática, um homem que portava consigo uma estampa tão intimidante?
Diante de um belo restaurante, um bistrô da moda, o venerando senador mandou parar a comitiva, olhou, avaliou, conferenciou, entrou:
— Boa tarde, Senador! — acenou o dono do local, sorrindo amarelo enquanto deixava rapidamente o balcão.
Galvão se avizinhou, empertigado como sempre, estendeu a mão direita, cumprimentou o burguês, com muita firmeza, pressionando bem os dedos, olhando-o fundo nos olhos.
— Mui-tís-si-mo boa tarde, meu jovem! Como vai você? Que belo dia, não é mesmo? — disse, num tom expansivo, enfático e quase teatral.
— Lindo dia, Senador, lindo dia… Mesa pra… — pausou um momento, contou mentalmente o cortejo, continuou — Sete, pra oito?
O legislador não respondeu, ocupado que estava, já conversando com alguém, sorrindo, fazendo politicagem.
Entrementes, sem demora, um aspone qualquer, eficiente, bem justificando o ordenado público, comandou ao maître, que por ali estava, em pé, mãos para trás, um tanto retraído:
— Mesa pra oito, lá fora!
— Agora mesmo — respondeu o trabalhador, e se afastou, elétrico e espavorido, como um pássaro que se debate na gaiola.
Poucos segundos depois, o homenzinho retornou, ainda afoito, e conduziu o bando até uma mesa discreta, num dos cantos da varanda, apartada do restante da clientela.
Assentaram-se. As caixas de som reproduziam um CD antigo do Hôtel Costes: um downtempo hipnótico e jazzístico sobreposto por uma voz feminina muito sensual. Um exército de garçons serviu-lhes água mineral, distribuiu os cardápios. Antes de se distanciar, o maître ressaltou, mil vezes, que estava à inteira disposição.
Da mesa, beijada pela brisa, entrevia-se a cozinha, lá dentro, exposta por um vidro. Quatro ou cinco homens de branco agitavam-se entre coifas e bancadas de inox. Um haitiano taciturno e intimidado absorvia-se no manuseio de uma faca profissional, e o chapéu cônico do chef parecia andar sozinho, de um lado para o outro, dentro daquele aquário humano.
O Senador Galvão apreciava a carta de vinhos. Passou o olho, folheou rapidamente, negligenciou a historinha da importadora e o texto sobre as origens remotas da bebida. Fixava a atenção no preço e no país de produção. Seu veredito parecia oscilar entre a Borgonha e a Toscana. E agora? Examinou as folhas por mais alguns momentos, indo e voltando, inconvicto. Este ou aquele? Ou os dois? Não parecia sobremodo satisfeito. Optou então pelo toscano, um vinho vibrante, de coloração rubi, taninos finíssimos, acidez correta, frutado intenso no nariz (lembrando cereja e ameixa maduras), harmônico na boca e explosivo na fruta madura. Prestes a chamar o garçom, porém, hesitou. Não seria melhor pedir o francês, opulento e sápido, expressivo no olfato, com suas notas de frutos negros e azuis, e com a surpreendente firmeza no final muito longo?
Entretanto, ordenaram: ostras frescas, ostras gratinadas, endívias com brie, ceviche de salmão, risoto de aspargos, lombo de bacalhau, palmito pupunha, medalhão de mignon, carret de cordeiro…
— O senhor já escolheu o vinho? — perguntou o garçom.
— Chama o Almir! — respondeu o Senador.
Todos conversavam animadamente quando o proprietário se aproximou, envergonhado por interromper.
— Meu caro, eu quero escolher o vinho ali na adega!
— Claro! Como não? À vontade, Senador!
Empresário e político entraram juntos no belo cubículo envidraçado, onde dormiam centenas de garrafas, preenchendo todos os espaços, do chão ao teto do lugar.
— O que você tem de vinho francês?
— Aqui e aqui, nestas duas prateleiras.
O homem público retirou do bolso da camisa um pequenino óculos de leitura e começou a inspecionar os rótulos atenciosamente, enquanto o restaurateur tentava entabular algum tipo de conversa.
— E como vão as coisas lá em Brasília, Senador?
Galvão deu respostas evasivas às perguntas vazias; concentrava-se nos vinhos franceses.
— Este aqui! — disse, de repente.
Almir titubeou ao ver a garrafa que o político tinha nas mãos. Balbuciou:
— Senador, este vinho nós não temos no cardápio. Está aqui na adega pra se manter climatizado. É meu. Comprei em Miami, para a formatura do meu filho, que está estudando nos Estados Unidos. É um Romanée-Conti. O senhor sabe…
Galvão não disse nada, apenas olhou por cima da haste dos óculos, que haviam escorregado pelo nariz.
Duas horas mais tarde, no momento de fechar a comanda, Almir se torturava: como cobraria aquela garrafa de vinho? Quanto lhe havia mesmo custado aquilo? E como contabilizar? Deveria cadastrar o produto no sistema? Será que ele acharia ruim? Depois de refletir por alguns minutos, enquanto observava o Senador Galvão, lá fora na varanda, ignorando o aviso anti-fumo, e baforando seu Cohiba, “presente do próprio Fidel”, imprimiu o extrato de conferência, e caligrafou, à caneta, sob o valor final da comanda: “Romanée-Conti R$ 15.000,00”.
O maître levou a conta até o Senador. Quinze minutos transcorreram, talvez vinte. Na mesa, continuavam fumando charutos, conversando muito, rindo espalhafatosamente. Em dado momento de maior efusão, foi possível entreouvir o senador se gabando:
— Eu tenho uma história, sabe? Tá no sangue. Meu avô foi ministro do Getúlio, ele era do PTB. E papai era unha e carne com o Dr. Ulysses… Eu sei do que eu tô falando, tô nesse treco há mais de 30 anos…
O restaurante esvaziara, passava das quatro da tarde. Para relaxar, Almir se permitiu abrir uma longneck, enquanto esperava, sempre atrás do balcão, o pagamento daquela conta de valor excentricamente alto. No fundo, estava feliz, havia sido uma boa tarde, uma grande venda, o Senador era sempre um grande cliente. Bebericava sua cerveja quando acenou de longe para o político, que, enfim, se levantara, e se despedia, deixando o restaurante. De longe, Galvão ainda gritou, sorrindo à larga:
— Almir, obrigadão!
— Sempre um prazer, Senador!
Qual não foi a surpresa quando o maître se aproximou do balcão e disse:
— Chefe, o Senador saiu muito feliz. E me deixou uma gorjeta gorda: duzentos e cinquenta reais!
— Opa! Que bom, que bom! Tarde boa, então.
— E mais, chefe: ele agradeceu muito o presente, mas muito mesmo. Disse que adorou o vinho, que estava um espetáculo!
Largou o maître, sozinho e perplexo, e se precipitou até a entrada do restaurante. Olhava para a esquerda e para a direita, o semblante estatelado. A Avenida Atlântica ensolarada fervia de gente, ciclistas, banhistas, passantes, atletas de fim de semana. Almir respirou fundo, sentou-se num degrau, viu uma gaivota, entornou um gole de cerveja quente, restou olhando as ondas do mar.