O escritor cristão e a vaidade literária
Este texto é um trecho do livro O Elogio do Conservadorismo
Se há virtudes específicas de determinadas condições sociais, virtudes de estado, se assim se pode dizer (Santo Tomás não nos fala numa “prudência régia”?), há os defeitos de estado. Na nossa profissão de escritor, é a vaidade. Ninguém escreveria, ninguém publicaria, se não fosse o estímulo deste sentimento que o nosso Matias Aires tão saborosamente estudou, e analisou em todas as suas formas. Um escritor que se sentisse animado unicamente do amor à verdade, escreveria artigos e livros sem assinatura, como fazem certas freiras. Direis que um nome é marca de fábrica e nós compramos livros de certo autor como adquirimos caneta-tinteiro ou vinho de certas marcas. Mas… Quem não se recorda do dia em que surgiu o primeiro artigo com o nome em letra de forma? São destas datas que ficam na vida da gente como a da primeira comunhão, por exemplo. Um dia diferente dos outros, em tudo e por tudo. O que eu senti no natal de 1936 vale muitos presentes grandes… E se dei o pormenor autobiográfico é para mostrar que tenho experiência pessoal e sei que a vaidade ocupa um lugar importante na vida do escritor. Devemos ter a coragem de reconhecer e dizer isto.
A questão, todavia, torna-se mais grave quando o caso é de um escritor católico. Desde o dia em que tomamos da pena para defender a causa da Verdade, impõe-se uma reforma pessoal. Podemos escrever a vida inteira e amontoar livros e artigos. Mas, se, por vontade nossa ou por mandato de quem pode, ou por simples assentimento dos povos, passamos, de certo modo, a exercer uma função na assembléia dos fiéis, se começamos a falar como escritor católico, um manto pesado, como o que Elias jogou nos ombros de Eliseu, cai sobre nós. E isto não se refere, como pensa a maioria, unicamente aos temas tratados nos artigos ou livros, o que é óbvio. Mas, na minha opinião, importa acima de tudo uma reforma moral, atingindo, principalmente às chamadas virtudes intelectuais.
Não pretendo, aqui, tratar in extenso do assunto, nem estabelecer um código de ética para escritores católicos. Para começo de história, não tenho autoridade para isto. Quero, apenas, trazer uma contribuição para um aspecto importante do assunto, exatamente o da vaidade.
Creio que talvez o mais difícil da nossa tarefa seja, exatamente, combater o que é o principal entre os vícios de estado — a vaidade. Creio que é fácil a um escritor católico dizer a Verdade — ela está aí, ao alcance de todos: mas, creio ser muito difícil evitarmos que façamos de certas verdadezinhas nossas peculiares a expressão da Verdade. Direi de mim: nada me tem custado tanto como evitar o perigo de fazer da monarquia a expressão da doutrina católica, no que aliás estaria muito bem acompanhado; nenhuma tentação me tem sido mais dura do que é esta — fazer da verdade política da monarquia uma verdade católica. Creio que é fácil a um escritor católico ser justo: mas, é difícil ser com os que o desconhecem, o desmerecem, o agridem. É terrivelmente difícil aplicar a justiça àqueles que nos tratam injustamente, é duro dar o merecido a quem não nos dá o que merecemos. Ou supomos tal. Não é fácil reconhecer o mérito de quem não dá qualquer demonstração de reconhecer o nosso. Mas é obrigação, posto que incômoda.
Não creio ser fácil a prática da Caridade. Infelizmente, há duas virtudes em crise entre os cristãos: a da Prudência, que muitos consideram apenas medo e omissão, e a Caridade, que não praticamos. Quando leio São Paulo e tudo o que diz sobre a prática da Caridade entre irmãos, encho-me de vergonha. Tenho a impressão que somos címbalos vazios, que fazemos atoarda, sem qualquer resultado prático. Cultivamos as nossas vaidadezinhas, cuidamos de nossos negócios: dificilmente demonstramos verdadeiro espírito de amor ao próximo. Continua sendo verdade aquela triste observação, nem sei se de Scheler ou de Maritain: mais fácil dar a vida pela Humanidade abstrata do que suportar o nosso vizinho concreto. A nossa Caridade vai até o ponto onde começa a nossa vaidade literária.
Não seria esta a causa de um certo malogro de nossa missão? Não estará nisto a causa de todo nosso insucesso? Será que cai sobre nós a dura palavra de Vieira acerca do semeador e do que semeia? Pensamos nós por acaso que a beleza de nossos raciocínios pode alguma coisa sem a Graça? E nós fazemos de nossa parte alguma coisa para merecer a graça de sermos instrumentos nas mãos de Deus?
Devemos, pois, escrever com humildade, sabendo que estamos cumprindo uma obrigação, executando uma tarefa determinada por Deus: a de dizer a verdade, toda a verdade, nada senão a verdade.
Isto não é fácil: há modas literárias, como há modas femininas. Muitas vezes não temos a coragem de dizer tudo o que pensamos por medo de que jovens afoitos nos considerem “ultrapassados”. Bem sei que, para muita gente, importa seguir a moda — como as moças que estão de vestidos curtos e, no próximo ano, novamente abaixo dos joelhos, algumas pessoas acham que importa mostrar ou esconder os joelhos da inteligência, conforme ditarem os costureiros literários de Paris.
Mas, se devemos dizer somente a verdade, mesmo com risco da mais total incompreensão, nem sempre temos a certeza de que estamos no caminho certo; daí a preocupação que devemos, todos, manter de pé: o que escrevemos é o que nos parece, salvo erro ou omissão, a verdade. Nunca, porém, afirmar categoricamente que estamos formulando dogmas, ou sendo porta-vozes da verdade católica. Concretamente: defendo teimosamente certas posições políticas, não obstante pessoas mais autorizadas do que eu discordarem disso, acontece que o raciocínio teórico e a experiência de todos os dias mostram que estou com razão. Mas, não tenho o direito de considerar isto a “verdade católica”, a “concepção católica do Estado”, mas, sim, a maneira pela qual me parece bem claro ser a verdade.
Ninguém tem o direito, como escritor, de achar que está dizendo a última palavra, nem sendo inspirado pelo Espírito Santo. Daí dever ser a humildade a nossa principal preocupação, humildade derivada, principalmente, da consciência de que possuímos uma missão — a de pregar o Cristo, e de que somos essencialmente indignos desta missão.
Devíamos ser católicos que escrevem livros e, não, escritores católicos, isto é, escritores que tratam de temas católicos, como outros quaisquer.
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Detalhes do autor
João Camilo de Oliveira Torres
Nasceu em Itabira do Mato Dentro (hoje Itabira), Minas Gerais, a 31 de julho de 1915. Como professor lecionou sociologia, antropologia e etnografia, ética, estética, filosofia da educação, filosofia moral e história do Brasil.
Como jornalista, foi redator-chefe da Folha de Minas e redator de O Diário, ambos de Belo Horizonte, além colaborar nos principais órgãos da imprensa do Rio de Janeiro, de São Paulo, Porto Alegre, Recife, Curitiba e Petrópolis. João Camilo pertenceu ainda ao IHGMG (Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais), à Academia de História de Portugal, ao Instituto de Sociologia e Política de Minas Gerais.
Como servidor público, foi Coordenador de Seguros Sociais e Superintendente Regional do INPS (atual INSS) em Minas Gerais, falecendo em pleno exercício da última função, no dia 1.° de fevereiro de 1973, aos 57 anos.”
Que maravilha encontrar intelectuais cristãos dispostos a escrever sobre a Verdade! Compraria todos os seus livros.