O Dia do Juízo (conto)
Por Diogo Fontana
Estavam presentes os onzes ministros naquela quinta-feira sonolenta. Deliberavam um caso menor, uma arenga familiar de terras, inventários e heranças, cousa antiga de quarenta anos atrás. Rotina, enfim, na vida dos guardiões do estado democrático de direito.
Durante a sessão, como exige o salutar costume, os magistrados observaram o mais estrito respeito pelos títulos altissonantes, disso e daquilo, e empregaram o seu dialeto perfumado, aquele linguajar de quem fará milagres.
Depois de quarenta minutos, porém, algo de novo pareceu acontecer, uma insinuação, um detalhe, uma disputa, que elevou o tom de voz, e despertou do torpor um segurança, a taquígrafa e o cameraman da TV Justiça. Dois doutores debatiam como fariseus sobre pontos da Lei de 88, ostentando a singular capacidade mental dos nossos homens públicos. O primeiro atacou, atirando Canotilho no colo do outro, que rebateu, com Kant, Habermas e Adorno. Interpretavam a Carta Magna com extraordinária criatividade.
O ministro assistia a tudo com enfado. Conhecia os colegas; e sabia que a briga era velha. Os répteis que se devorassem. Em tardes mesquinhas como aquela, mesmo para um homem com a história dele, o trabalho era penoso. Ninguém pode se iludir presumindo que os pináculos da República oferecem ao seu ocupante apenas espumante e lagosta, um banquete contínuo de privilégios e prazeres. Há labuta, há suor; acima de tudo, há bocejo e aborrecimento. Há dias banais em que a mente vaga, displicente, pelo passado e pelo futuro; e o Ministro Marcondes sente preguiça já no início do expediente, quando se abre o espetáculo, sempre idêntico, com todos os juízes de pé, cerimoniosos, e o presidente enunciando a fórmula de praxe: “declaro aberta a sessão extraordinária e blá, blá, blá…”, então todos se sentam, solenes como bustos de mármore, e a chatice começa.
Não espanta, portanto, que o magistrado estivesse impaciente, tremendo a perna, espiando o relógio da parede, não vendo a hora de ir embora. Como ele poderia imaginar que a coroação de um tão belo cursus honorem traria consigo tais sentimentos menores? Desde antes do seu primeiro concurso, jovenzinho, ao entrar na loja maçônica levado pelo tio-avô, planejava estar ali. Ele era um daqueles homens decididos, que sabem guardar segredo dos seus objetivos, e assim conseguem manobrar discretamente as situações em benefício próprio. Foi mestre maçom ligado ao Rito Escocês Antigo e Aceito. Vestiu o avental, e subiu os graus rapidamente, não achando nada difícil, e sempre vendo aquela salada mística com bastante indiferença – a numerologia, a alquimia, o gnosticismo, a cabala, o panteísmo, o cristianismo liberal. Durante as seções, suportou a leitura de atas intermináveis, e assistiu, fingindo interesse, à apresentação de trabalhos escolares que tentavam coerir toda aquela simbologia dispersa. A parte boa foram os churrascos filantrópicos, onde se divertiu bastante, bebeu, deu risada, e expandiu a sua agenda telefônica, o chamado networking.
Quando a presidente indicou o seu nome para o cargo, e ele foi para sabatina do Senado, a imprensa toda – os especialistas – cantava a mesma melodia:
– É a bola da vez – comentou o William Waack.
– Tem notório saber jurídico – afiançou o Boechat.
– Não há nome melhor – garantiu Miriam Leitão.
E devia ser verdade, afinal, como era bonito de ver toda aquela papelada preenchida com as informações da sua carreira vitoriosa no meio jurídico brasileiro. Combatera o bom combate, o justo juiz, a ele estava reservada a coroa da justiça. A corrida começava em 1979, com a graduação; e seguia, década de 80 adiante, com o mestrado e o doutorado no exterior, ambos parcialmente financiados por uma fundação norte-americana. Na UnB, depois, além de lecionar, orientou dissertações e monografias, participou de bancas examinadoras, escreveu artigos, coordenou a publicação de livros e coleções jurídicas. Durante anos, proferiu palestras pelo Brasil. Suas teses tornaram-se leitura obrigatória nos cursos de direito e sua premiada obra sobre a Constituição de 88 é considerada marco nos estudos do assunto.
Pois bem. É este o homem que, quando o relógio bateu dezoito horas, e tiveram o bom senso de encerrar a seção, retirou-se ao gabinete ministerial; e, chegando ali, apressado, a primeira coisa que fez, antes mesmo de checar as mensagens no seu celular, foi pendurar no mancebo a capa preta, aquela vestimenta que o definia e que ele tanto desejara. Então, respirou fundo, desafogado: paisano, outra vez. Logo mirou-se ao espelho, e pensou que estava bem, apesar das sutis bolsas de cansaço abaixo da órbita dos olhos. Excesso de trabalho, é certo. Ele precisava, talvez, tirar novamente uma folga, uns dez dias na Europa, descansar, beber vinho, recarregar as baterias. Inspecionou o rosto outra vez. Aquelas marcas de envelhecimento não eram nada que uma luz pulsada, ou um microagulhamento, não resolvesse. Falaria com o médico. Ainda assim, continuava intrigado. E por isso franziu a testa, aproximando-se do seu reflexo, quase mergulhando para dentro do espelho. As linhas de expressão voltavam, evidentes. Incomodou-se por notar que a musculatura recuperara os movimentos, e que, acima do seu olho direito, quebrando a simetria do semblante, a sobrancelha desenhava uma pequena elevação. Que desagradável, quatro mil reais jogados fora, e nem três meses desde a última aplicação. Mudou, então, sua atenção para os cabelos. O degradé entre o preto e o branco, os longos fios prateados e a ondulação da cabeleira lateral lhe denotavam certo ar moderno, de sábio despojado. Gostou muito do que viu, e entreabriu os lábios num sorriso malicioso.
Sua Excelência deixou o edifício do Supremo Tribunal Federal e entrou no carro blindado; um segurança negro e escalvado, muito forte, vestido todo de preto, abriu e fechou a porta traseira do veículo. A noite caía na praça dos Três Poderes. Um vulcão entre nuvens tornava o fim de tarde apoteótico. Ágata, alizarina, ouro, escarlate, rubi, âmbar: explosão de tons de vermelho e laranja refletindo no espelho d´água imaginado pelo Niemayer. Indiferente à paisagem no horizonte, o ministro entreouvia a CBN e respondia mensagens no seu celular, enquanto o motorista os conduzia silenciosamente ao Setor Hoteleiro Sul.
Vinte horas. A exímia meretriz desprendeu a tampa do estojo de maquiagem e depositou o pó branco e cristalino por cima do vidro. Então, com o auxílio do pincel aplicador, a digníssima senhora reuniu dois filetes paralelos, longos, cada qual com não mais de dez centímetros. A moça aspirou, sentindo imediata ardência nas cavidades nasais e irresistível influxo de sensualidade. Ato contínuo, o Excelentíssimo magistrado arrolou uma cédula de dinheiro norte-americano em formato de cilindro, produzindo um tubo dúctil, donde aproximou as narinas, e graças aos seus impetuosos esforços, não deixou vestígios da substância sobre a mesa. Naquele momento, mais uma vez, o erudito doutor julgou entender o que Nietzsche queria dizer com super-homem. Fungou, roçou a ponta do nariz. Fitando a garota, os olhos siderados, disse:
– Tira essa calcinha, baby.
A moça notou que o Excelentíssimo senhor Ministro possuía alguma dificuldade vocal. Sua voz saía rouca e áspera. Quando ele falava, parecia executar uma tarefa extenuante. As palavras requeriam muito esforço para serem pronunciadas, e lhe era flagrantemente difícil coordenar a respiração com os músculos da boca.
O egrégio bacharel insistiu, docemente:
– Isso, tira, que coisa mais linda, quero ver essa bucetinha rosa, raspadinha. Mostra pro papai.
Falou e sorriu, os dentes reluzentes lustrados a laser.
A menina se movia lentamente ao ritmo da música. Com que languidez ela dançava, erguendo os braços, os olhos úmidos de volúpia, à luz tíbia do pequeno abajour. Num movimento brusco da cabeça, balouçou os cabelos, que lhe esconderam o rosto durante um segundo, e soltou a presilha do sutiã vermelho, revelando um par de seios rijos e empinados. As auréolas eram grandes, dilatadas, e por baixo das mamas desenhava-se uma cicatriz de incisão operatória. Sua Excelência apreciava a dança bárbara bebericando um copo de whisky, a gravata frouxa, as pernas abertas, refestelado no sofá.
A ambulância do SAMU estacionou diante do hotel. Removeram o ministro de maca, imediatamente, auxiliados pelos paramédicos. Todos no saguão pareciam apreensivos, hóspedes, recepcionistas, conciérge, mensageiros. Seus rostos estampavam curiosidade e o mais puro terror. A moça, a maquiagem borrada, repetia o tempo todo:
– Acho que ele tomou viagra, deve ter sido um infarto, um infarto.
Afastaram-na de supetão, fechando a porta do veículo.
A caminho do hospital, o susto, a parada cardiorrespiratória.
O paramédico seguia o protocolo, massageando o juiz, as mãos sobrepostas sobre o peito, em busca de oxigenação.
Compressão, compressão, compressão. Pausa. Nada. Respiração boca a boca. Pausa. Nada. Começava tudo de novo.
Dez minutos transcorreram assim. Enfim, perdeu a esperança. Anunciou a hora da morte, anotou-a sobre um papelzinho.
Não foi pequeno o seu espanto quando, repentinamente, o ministro soergueu-se na maca, os olhos estatelados:
– Falei com Deus. Eu falei com Ele!
– Calma, doutor, calma, sossega aí na maca.
– Eu vi você me massageando.
– Calma. Já estamos chegando ao hospital.
Muitos anos depois, em um congresso universitário, os historiadores chegaram a um raro consenso:
– Foi o único, nenhum mais. Daquela época, daquela roubalheira toda, foi o único que confessou tudo. Foi o único que se arrependeu.
Inscreva-se em nosso canal no Telegram: https://t.me/editoradanubio
Siga-nos também no Instagram: https://www.instagram.com/danubioeditoraa/
Detalhes do autor
Diogo Fontana
Nasceu em Curitiba em 1980. É autor do livro “A Exemplar Família de Itamar Halbmann”.
Já escreveu artigos para o jornal Gazeta do Povo e para os sites Brasil Sem Medo, Mídia Sem Máscara, Senso Incomum e Estudos Nacionais.
Mora em Santa Catarina com a esposa Gabriela e o filho Constantino.