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O Dia da Liquidação (conto)
Por Daniel Emer
Baixada Fluminense, Nova Iguaçu. Em frente ao Q-Bão, estapeia-se a multidão.
— Bárbaros! Rudes! Bestiais! — fez o gerente Chico Volté, deliciando-se — Comecem logo esse quebra-pau! — torcia, eufórico, encostando um copinho na parede a fim de melhor escutar o arranca-rabo.
— Abre logo! Tem congelador frósfri? — esmurrava a porta de aço Lucicleide, parteira no Instituto BenzaDeus.
— Não saio sem minha tevê ismálti e um mix de produtos de higiene pessoal — berrava Deodato, caminhoneiro recém-chegado de Maricá.
— Selvagens! Brutos demais! — completou o gerente, dando saltinhos de alegria. Observando tudo pelas câmeras, bastante espichado na salinha do ar-condicionado, Chico Volté colhia dados, tecia comparativos e tomava anotações. Mas o que diabos Volté tanto anotava? E por que vibrava? Que gerente de mercado mais insensível era aquele? Para entender aquela cabeça exótica, vamos à história do homem.
Chico Volté, como dito, hoje é gerente do mercadão Q-Bão. Antes de subir na vida, contudo, era conhecido como Francisco Aparício, um rapazola nascido e criado em Nova Iguaçu que, sabe-se lá por qual motivo, levava a vida espalhando ser filósofo. Aliás, não só ele como o inseparável amigo Mirrabô, igualmente filósofo, ambos recebendo tais apelidos em homenagem aos pensadores franceses.
Volté e Mirrabô montaram uma dupla de intelectuais que aterrorizou a Nova Iguaçu dos anos 90, ambos adotando modos de vida escandalosos. Mão boba na mulher dos outros? Opa, alto lá, alegavam estar “presos às circunstâncias”, citando trechos de Nietzsche com máxima indignação. Pegos com pertence alheio? Nada tinham com isso, que é que há? Propriedade é despotismo! — saíam batendo carteiras, sugerindo que estudassem Proudhon. De tanto afanar, pilhar, sacanear, investir na mulher do próximo — tudo com irrespondíveis argumentos filosóficos que ninguém, nascido ou por nascer, saberia rebater, granjearam fama na região.
— Corra! Lá vem os intelectuais! — muitos fugiam à época, temerosos com a chegada dos dois.
A dupla, pois, nunca pôde reclamar: foi uma juventude feliz em Nova Iguaçu. Sentiam-se, contudo, talentos desperdiçados. Duas inteligências daquelas, mentes engenhosas, talentos capazes de tomar dinheiro dos outros com volteios filosóficos… sem pisar numa universidade que fosse? Inadmissível! Mas como chegar lá, se eram dois quebrados?
Quis, porém, numa dessas voltas da vida, que aparecesse na região um artista plástico francês de nome Jacques Bichou. E esse Bichou, até onde se sabia, apreciava patrocinar jovenzinhos com vocação. Queria ser esportista? Bichou bancava. Astronauta, cantor, cineasta? Deixasse com Bichou, Bichou amparava. O francês montou um time de muito potencial, o qual chamava carinhosamente de Querubins da Baixada: Elielzinho da Pavuna, arquiteto promissor; Cleitinho Pavaroti, cantor de ópera; Pepeu Maluco, futuro engenheiro agrimensor, dentre muitos outros. Foi assim que, prometendo isso e aquilo, o francês bancou não só ele como Mirrabô.
— Quer ser filósofo, chouchou? Deixa Bichou te paparicar. Um dia, escreva o que digo, vou te meter na Sorbonne — foi a promessa dele a Volté, assistindo à final da Copa de 94 numa sauninha de Belford Roxo.
Os pais preocuparam-se.
— Quem é esse amigo novo, filhinho?
— Amigo novo?
— Um senhor de barba branca, cheio de cachecol… ele tem um andar meio diferente…
— Deixem Bichou em paz! Ele só quer meu bem, garantiu que vai me meter na Sorbonne! Palavras dele! — batia a porta um Volté rebelde, ainda adolescente.
Não demorou e a promessa de Bichou se efetivou: Volté, o mais querido dos Querubins, foi levado à França. Mirrabô, desolado, ficou.
Morando em Paris, “Le Philosophe de Nova Iguaçu” se destacou. Graduou-se, frequentou salões, provou da melhor comida nos bistrôs da Pigalle, virou gente — como se diz na Baixada. Hoje um quarentão, Volté é doutorando em sociologia na Sorbonne. Mas apesar dos confortos europeus, o iguaçuano anda infeliz, vive ultimamente um amargor torturante: ser intelectual na França tem lá seus percalços.
Semanas antes da referida liquidação do Q-Bão, andava em círculos no Quartier Latin, mirava o horizonte lambendo casquinhas de sorvete no Montparnasse, era visto chutando latas por Montmartre. Tanta angústia tinha motivo: sua tese de doutorado, “Consumérisme est Barbarie”, carecia de evidências sólidas. Onde encontrá-las? Procurava por toda a parte e não achava. Volté andava rude, respondão, mergulhando na bebida: uma melancolia dos diabos.
Referida tese, cujo título é autoexplicativo, reclamava o quê? Um ambiente de selvajaria profunda, um meio social bárbaro onde se pudesse, em pesquisas de campo, colher provas categóricas. Sem isso, nada feito, doutorado rejeitado. Mas onde achar ambiente hostil assim? Que experiência humana única seria essa? Um centro de compras que, unindo ódio cruento e bestialidade ilimitada, seria a um só tempo desumanidade e horror. Existia isso na Europa? Cogitou possibilidades: visitar o 20eme. arrondissement, a periferia de Paris, estudando modos de consumo de imigrantes tunisianos? Uma temporada na Faixa de Gaza? E se passasse uns dias com tribos aborígenes da Suazilândia? Tem consumismo lá? Nada, não via aí ineditismo algum, isso Pierre Verger já havia feito com primor. Tudo o que vinha à mente, portanto, era démodé e sem graça. “Evidências mixurucas, fraquinhas demais!” — lamentava, mirando as águas do Sena com profundo desgosto.
Foram duas semanas assim, sem dormir bem; ideia alguma calhava. Que tese mais fajuta era aquela, sem provas, sem amostragem, absolutamente nada? Volté esticava os cabelos, ouvindo rumores nos corredores da Sorbonne: “Volté, sua tese não vai vingar…”, “Volté, seu doutorado não vai sair…”.
Ruminando naquelas noites de aflição, teve enfim um sonho revelador: Boca Rica, o saudoso tio bicheiro de Bangu, aparecia numa nuvem cintilante. Sem camisa, proferia palavras de rara sabedoria: “Às raízes, Volté… torne às raízes!” — e ria misteriosamente, exibindo a dentição magnífica até desaparecer, sacudindo dinheiro. Volté acordou extasiado, cutucando Bichou.
— Chouchou? Tive uma iluminação. Preciso ir com urgência ao Brasil. Voltar à Baixada!
O francês coçou os olhos, sem entender. Voltar a Nova Iguaçu, depois de tantos anos? Como assim?
— As provas da tese, chéri! Estão lá! Unicamente lá!
Num pinote, ainda madrugada alta, correu a aprontar as malas: “Às raízes! Às raízes!” — a frase martelava. Aquele tio era mesmo um gênio! Nova Iguaçu, terra de barbáries sem fim, um mundo mágico de imperdíveis fenômenos sociais… Que prato cheio para qualquer sociólogo e sua tese! Gênio, gênio demais!
Desceria no Galeão já no dia seguinte, apesar dos chiliques de Bichou, que fez escândalo — baixou o nível mesmo, subiu nas tamancas — em frente à Dior do aeroporto de Orly. Que entendesse, eram ossos do ofício! De volta à terra natal, tocaria por um mês o mercadão da família em Nova Iguaçu. No papel de gerente, sempre protegido por um vidro fumê, observaria padrões de comportamento do populacho, tomando notas que, enfim, provariam a bendita tese.
É nesta ocupação, portanto, que vamos reencontrá-lo, vinte anos depois de ser levado a Paris, estudando o povaréu: tornamos ao início da história.
— Bárbaros! Rudes! Bestiais!
Naquela temporada como gerente, Volté promoveu diversos experimentos sociológicos: choquinhos de alta voltagem nos colaboradores, premiação de funcionário da semana a vários deles simultaneamente, atiçando a discórdia, retenção indefinida de salários, dentre muitas novidades. Sempre que um reclamava, advertia que compreendesse, cabeças subdesenvolvidas não seriam capazes de assimilar métodos sofisticados trazidos da Europa. Volté de tudo tentou, procedeu e logrou, mas tais experimentos ainda não satisfaziam o doutorando: careciam de robustez científica.
Um dia, caminhando cabisbaixo por Nova Iguaçu, reencontrou o velho amigo de infância.
— Mirrabô!
— Volté? É você ou meus olhos mentem?
Depois de muito palavrório e lembranças fraternais, queixas da vida e pedidos de dinheiro emprestado, sabe como é, a grana andava curta, Volté confidenciou sofrimentos inimagináveis. Que tinha uma tese de doutorado assim e assado saindo do forno, mas carecendo de provas, que vinha padecendo como um pobre-diabo nas ruas de Paris, que Bichou não o ajudava mais, nada de jantar em restaurante estrelado, no máximo um marmitex e olhe lá, que temia a rejeição dos pares e coisa e tal, destrinchando, por fim, muitas dificuldades da vida de um sociólogo na França.
— Quer um conselho? Por que não fica de uma vez aqui? Esquece a Europa!
— Não posso, Mirrabô… tenho essa tese aí na Sorbonne… vim aqui de pulo, somente em busca de evidências.
— Bobinho! Então não sabe que o Brasil virou celeiro de sociólogos? Rolam uns esquemas aqui… — o amigo pontuou.
— Como assim?
— Palavra de sociólogo.
— Você também… virou sociólogo?
— Com pós-doutorado pela UERJ. Acha que brinco em serviço? Também achei meu mecenas, o romeno Baku.
Volté até parabenizou, mas analisou o amigo dos pés à cabeça num tom meio apiedado.
— Sociólogo no Brasil? Vida sofrida… um eterno ganhar mal…
— Sofrida? Ha-ha-ha. Tolinho! — Mirrabô caiu numa crise de risos, mas logo se recompôs. Baixando a voz, quase sussurrou — Quer saber de algo muito sigiloso? Mas sigiloso mesmo? Promete que guarda segredo?
— Boquinha de siri.
— Nós, sociólogos, mandamos no país. Tem sociólogo por trás de tudo aqui no Brasil.
— Poderia ser mais claro?
— Vamos lá. Briga de torcida, Mancha Verde contra Gaviões. Captou?
— Estou confuso.
— Acha que é de graça quando saem na mão?
— E não é?
— Não! Tem sociólogo por trás! Os delinquentes recebem por cacetada, meu filho, são vinte dólares cada testa sangrando. Tudo tabeladinho…
— Qual o sentido disso?
— Acorda, Volté! Os sociólogos passam temporadas aqui financiando balbúrdia, o Brasil inteiro é um experimento social. Chacina da Candelária, preciso relembrar? Anos 90! Vamos lá, põe essa cachola pra funcionar! — Mirrabô estalou os dedos — Quem financiou?
— Sociólogos?
— Na mosca!
— Massacre do Carandiru, consegue dizer?
— Eles novamente?
— Bom garoto!
— É assim que coletam as evidências?
— Perfeitamente.
— E essas verbas saem de onde?
— De onde? Ô, ingenuidade! Do Estado, né? CAPES!
— Então em toda esculhambação no Brasil… tem dedo de sociólogo e muita grana por trás?
— Bingo! Sabe aqueles surfistas de trem? Ônibus socados, pobralhada voltando da praia, menino pendurado na janela, parari parará? Alguma aposta?
— Sempre atribuí à incivilidade do povo.
— Tolinho! Ali é a tese do sueco Björgensen e ninguém tasca. O danado arrumou um esquema bacanérrimo com o Rei do Ônibus. Todo mês ele faz o quê? Pinga cinquenta mil na conta dele e, na parceria, na camaradagem, esse Rei reduz a quantidade de busões em circulação.
— E é?
— É! Arrastão em Copacabana, quer saber? Ali é a tese do respeitadíssimo holandês Van der Veers. O sacana dá vinte dólares a cada trombadinha e fica sentado na varandinha do Fasano escrevendo uma tese do cacete, “Capitalismo e Espoliação”
— E você? Tem tese também?
— Ah! Mexo com vespeiro, meu amigo… atuo com secas e inundações.
— Secas e inundações?
— Basicamente cortamos a água da patuleia e observamos padrões: sem água, como fica a libido? Coligi muitos dados na última seca do Cariri. E nas enxurradas? O desejo sexual é, digamos, sublimado? É o que queremos investigar na tese “Erotismo Líquido e Aridez Sexual”.
— Você promove essas secas e inundações? Então o povo brasileiro é composto inteiramente por cobaias?
— São todos idiotas participando de experimentos sociais.
— Isso não seria desumano?
— Me poupe! Somos cientistas! O que é a vida desse povinho chechelento, um povo sem legado à humanidade, diante de uma descoberta científica?
— É… se é pela ciência, faz sentido.
— Basta qualquer trocado na mão dum chefe de comporta e… pum! Olha aí a mágica acontecendo…
— Ele fecha ou abre essas comportas, a depender do caso?
— Agora você pegou o espírito da coisa. Vem uma seca bacanérrima aí na altura de Quixadá, quer dar um pulo lá? Em março tem suicídio coletivo em Irajá… anote na agenda, viu? Vamos estudar Durkheim vendo a matança geral… já contratamos até um bufê de salgadinhos, ninguém é de ferro.
— E eu na Sorbonne… perdendo meu tempo!
— Certamente! O Brasil é celeiro, celeiro! Vou te apresentar a uma turma bacanérrima, traga sua tese e descolam uma verba daquelas pra você.
Chico Volté recebeu um cartão e revistinhas da LSBT — Liga dos Sociólogos em Busca de uma Tese.
— É um círculo muito restrito, Volté…
— De fato, nunca vi algo parecido. O grand monde da sociologia…
— Gente poderosa e influente. São bilhões para fazer o populacho de fantoche, provando as mais variadas teses acadêmicas.
— Tudo isso me inspira! Vem comigo — fez, dando a mão, já conduzindo Mirrabô.
Depois de ouvir tantas novidades, Volté tornava ao Q-Bão de peito estufado; mais que confiança, irradiava afetação.
— Prepare-se, lá vem espetáculo.
Puxando o microfone, anunciou:
— Deu a louca no gerente! O gerente endoidou!
Ouvindo tais palavras, uma massa de gente logo formou uma espécie de muralha intransponível.
— Apenas os cem primeiros! Um por cepêéfe!
Neste momento passava por ali a sacoleira Gertrudes. Sempre de butuca, curiosa como mil demônios, a idosa vive à espera de ofertas e liquidações. Instintivamente, portanto, logo serviu-se de um cone de trânsito como megafone, convocando seu batalhão:
— Venham! Carne baixou de trinta! São ofertas arrasadoras! — a voz esganiçada fez-se ouvir por quarteirões. Num instante, cento e vinte crianças e adolescentes, entre sobrinhos, netos e mais chegados, todos portando paus e cacetes, formaram um pelotão.
— Estamos prontos, vovó! — um dos meninos montou base.
— Então siga minhas instruções! Quando a porteira abrir, passe debaixo das pernas do segurança — incitava seus pequenos soldados — Bililiu! — um dos netinhos bateu continência — Meu docinho, será que consegue dar uma dentada na perna daquela sirigaita?
— Na hora, vovó! Mordo logo as duas — respondeu, arreganhando os dentes — Assim a vovó ganha tempo para avançar nos enlatados.
Na calçada defronte, pacientemente sentada numa banqueta, sua eterna rival de históricos embates: imperturbável, a capenga Leidymar do Realengo lixava unhas. Experiente na arte da guerra do Atacadão, já sobrevivera a mais de vinte batalhas, tendo apenas uma vez baixado no Hospital Geral de Bonsucesso, oportunidade em que perdera o pé. Num repente, ergueu as muletas ortopédicas e proferiu à tropa um discurso comovente e mobilizador:
Que vento é este que bate, hostes amigas?
Não é o vento da liquidação?
Fraldinhas descartáveis e creme de cabelo,
Leite condensado e miolo de pão
Chuchu, toicinho, miúdos de galinha!
Tudo apraz a esta velha!
Preços altos embotam minha visão!
Coro de Realengo: são os ventos da liquidação!
Mas, oh! Os que não lutarem comigo,
E não buscarem cicatrizes
Nesta batalha nefanda
Trarão no peito algum coração?
Ide, lutai! Esmagai a vil Gertrudes!
Que só imundícia traz n’alma
E no traseiro podridão!
Coro de Realengo: são os ventos da liquidação!
Com olhos empapados pelas palavras cortantes, a tropa do Realengo brandiu armas, preparando a investida. Admirados, muitos apontavam de longe: aquele era o conflito decisivo, o embate final.
Postada entre as duas inimigas figadais, a família de Elias do Açougue também se achegou, distribuindo facas desossadoras. Quem ia perder uma liquidação dessa? Em meia hora, mais de duas mil pessoas aguardavam a abertura das porteiras.
— Vai ser uma desgraceira daquelas — Mirrabô lambia os beiços por trás do vidro fumê.
— Que palco enternecedor, que campo de estudos maravilhoso para um sociólogo e sua tese! — vibrava Chico Volté — É hora? — questionou, mordendo os lábios.
— Sim, é hora — ouviu em resposta, o riso faceiro mal escondendo o ardor.
De fato, com times tão bem postados, esperar o quê?
— Pelo sangue de Adorno! As provas da tese!
Abrindo lentamente a porteira de aço, Volté viu as primeiras canelas aparecendo, cabeças assomando, brados rangendo, gemidos se destacando.
— Lembra Kubrick… a cena do osso! Ouço até a música de fundo. Como seja! Estou em êxtase, êxtase! Sabe o que é êxtase, Mirrabô?
Como um raio, os meninos de dona Gertrudes zarparam pelo flanco esquerdo, logo avançando nos embutidos. Gabrielzinho e Bililiu iniciaram os saques: “Pegue o máximo que puder! Vai acabar!”. Com a multidão avançando de uma vez, estantes foram derrubadas, corpos pisoteados, calçolas lascadas, pernas e culatras de fora.
Mirando a última panela de pressão, as famílias de dona Gertrudes e Leidymar estudavam-se: também Nova Iguaçu tem lá seus Montecchios e Capuletos. Valendo-se de unhadas, a maquiadora Soraya Rocha — que pelo ípsilon, tradição de família, já se via qual dos clãs defendia — atacou por trás. Dona Gertrudes, contudo, estrategista sem par, sabe defender uma posição em combate.
—Venham, cobras! — bradou, já executando o plano. Escondida num baú de ursinhos de pelúcia, segurava ocultamente espetos de churrasco — uma armadilha ao estilo vietnamita. De lá, provocava, mantendo só a cabeça de fora. Quando Elyelson, Leyriene e Yndianara avançaram aos gritos de cínica!, foram vazados pelas lanças mortais.
Mas Dona Gertrudes queria mais:
—Essa foi pela mão decepada de minha menina no mercadão de Nilópolis! — completou, discorrendo com grande serenidade — Agora todos ao hortifruti! — anunciou, regendo a artilharia. Pondo um menino num carrinho de mercado, o qual segurava um espeto em forma de aríete, partiu em blitzkrieg por novos territórios.
Famílias se digladiavam, braços eram torcidos, cabeças pisadas, voadoras e bicudas, crentaiada falando em línguas, gritos e imprecações, muita bala cantando, coroas emborcadas, cópulas e encoxadas nos cantinhos, um bate-cu daqueles, nocaute e peixeirada comendo no centro, sangue tingindo pacotes de gelo, uma completa danação.
Assistindo à carnificina com a fleuma de um embaixador, o sociólogo não só coligia dados, como elaborava novas teses:
“Matar e Morrer em Nova Iguaçu: a Ética do Desejo sob um Olhar Lacaniano”
“Capitalismo em Contradição: Desumanização das Relações de Consumo”
“Bases Morais do Imaginário da Ralé: um Recorte Necessário”
“Relações de Poder no Atacadão: um viés Weberiano”.
“A Metanoia do Pobre: Pequenas alegrias na modernidade periférica”
“Genocídio na Baixada Fluminense: um paralelo com a teoria estética de Benedetto Croce”
— Minha cabeça está fervilhante! Que palco! Que festa para meus olhos! Se um dia tive lapso criativo… Deus, já não lembro! — Chico Volté dava saltinhos a cada estocada.
Sucede que um sociólogo, por vezes, pode ser objeto de estudo de outros sociólogos. Chico Volté nem percebeu quando Mirrabô envolveu seu pescoço num saco do mercadão. Esganando com força, viu o gerente ficar azul, roxo, espumar e por fim escurecer. Ao lado dele surgiram diversos homens, todos com brochinhos da LSBT.
— Quer secar nossa fonte, safado? Nosso material de trabalho é o pobre! Mude de tese!
— Só tenho essa! — fez, engasgando.
Foi então que, adotando um tom grave, e discursando pausadamente, um dos sociólogos da LSBT emendou:
— Vamos falar abertamente? Estudamos você há muitos anos, Volté… sua vida é objeto de estudos… desde que nasceu.
— Oi?
— Você é objeto da tese “Suicídio e Anomia: Efeitos da Desintegração Social.
Mirrabô afrouxou o saco, permitindo que Volté falasse.
— Até tu, Mirrabô? — o velho amigo baixou a cabeça. “Jacques Bichou estava nessa também?”
— Bichou trabalha há anos com a gente, é célebre ator da Comédie-Française. Gostou do show que ele deu na Dior? Acreditou mesmo naquele papo de artista plástico?
— Deus! Fui cobaia?
— A cobaia das cobaias.
— Cobaia por mais de quarentas anos!? Uma vida inteira como fantoche? — Volté se desesperou.
— Seu tio Boca Rica vendeu até a alma pra nós. Enquanto viveu, forneceu informações preciosas.
Volté desvencilhou-se, tentando fugir: iria para a casa dos pais.
— Pais? Seus verdadeiros pais receberam um capilé quando nasceu, Volté… ainda bebezinho, foi vendido à LSBT… esses que conhecia eram atores. Atores! Precisamos repetir?
Chico Volté procurou a primeira janela e atirou-se. Tomaram-lhe o pulso, fizeram anotações: a tese estava provada.
“Le Philosofe de Nova Iguaçu” é o caso mais estudado nos dias de hoje por Mirrabô, o sociólogo mais respeitado em toda a Sorbonne.
Detalhes do autor
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Daniel Emer
Nasceu em Salvador (BA) no ano de 1984; é funcionário público federal em Santa Catarina. Seu primeiro romance será publicado em 2025 pela Editora Danúbio.
Da comédia ao horror; mais que interessante, instigante.
Muito bom, aguardando o livro 👏🏻
Conto maravilhoso, meu amigo. Como contista te digo: é um conto que gostaria de ter escrito.
Meus parabéns 👏
Adorei. Muito bom!
Esse causo de Volté já merece algum spin-off