Noite de Consumo (conto)
Por Douglas Lobo
Nas últimas três semanas, Débora ansiava, como nunca antes em sua vida, por chegar em casa após o trabalho.
Mal entrava no apartamento, o ritual era o mesmo: esquentar comida no micro-ondas e depois, à mesa, celular à frente sobre um suporte, sintonizar a live da noite, sempre no mesmo perfil de rede social.
Em toda as lives, o mesmo homem, em frente ao mesmo cenário — um fundo verde —, desatava a falar, sempre sobre um único tema: o consumo.
Conhecido só por seu nome “artístico”— Helel —, o homem defendia o valor do consumo. Segundo ele, tudo que nos venderam como importante: trabalho duro, disciplina, responsabilidade — o “pacote estoico”, como ele chamava — são em verdade sofismas que nos mantêm presos às engrenagens fordistas da sociedade industrial. Sem citar nomes, Helel narrava histórias de pessoas que deram duro, ralaram, sofreram, só para ao fim terminarem endividadas, demitidas, mortas por doenças terminais sem cobertura de plano de saúde…
— Meritocracia? — perguntava Helel, cavanhaque e cabelos lisos ruivos, testa protuberante, nariz destacado. – A Grande Mentira.
Helel prosseguia, olhos negros semicerrados, como se buscasse devassar a alma dos que o assistiam: A Grande Mentira acoberta os privilégios dos bem-nascidos — privilégios que nós, seres comuns, nos iludimos de que algum dia poderemos vir a ter, desde que trabalhemos muito. Mas o que ocorre ao fim? Somos sugados até o limite de nossa energia, explorados, vilipendiados… até sermos, uma vez velhos ou doentes, descartados como pano de chão…
Cada live durava cerca de uma hora, ao fim da qual Helel professava sempre a mesma mensagem: — Viver a vida. Vamos nos presentear. Vamos consumir!
Naquela noite, a segunda-feira da quarta semana desde que as lives haviam começado, a mensagem final incluiu uma convocação ao que Helel denominou de Noite do Consumo.
— Saiam agora, todos – disse ele. – Gastem. Consumam!
“Consumam!”
O comando ressoava na cabeça de Débora enquanto, mais tarde, sentada no sofá da sala, ela tentava ler um livro.
Consumam!
Súbito, Débora, lábios grossos, de blusa vermelha e sandálias gregas, lembrou-se dos pais…. dos valores que eles lhe haviam transmitido: responsabilidade, disciplina, trabalho duro…
(consuma!)
Débora rememorou então as escolhas que fizera: graduação em Engenharia; opção pela iniciativa privada (em vez de concurso público, ao contrário da maioria dos que haviam se formado com ela); e dedicação total ao trabalho, numa firma de construção. Aluna, filha e funcionária exemplar — a responsabilidade acima de tudo.
Quando foi a última vez que fiz algo pra mim?
(consuma!)
Sem saber o motivo, Débora se ergueu da cadeira. Lançou os olhos pela sala: uma TV digital, pequena, cinco anos já de compra; um sofá de dois lugares, apertado, os encostos-de-braço puídos; um tapete cuja estampa mal se via, de tão consumida pelo tempo….
(CONSUMA!)
Débora foi até uma mesinha de centro, de cuja superfície ergueu algo nas mãos.
Uma coruja de vidro.
Havia comprado o artefato na África do Sul — a única viagem internacional que fizera na vida. Primeiro ano de emprego, resolvera se conceder isso. O pai não aprovara o turismo — e muito menos a coruja, ao vê-la durante uma visita (“pagou uma fortuna num bicho que vigia cemitério?”); mas Débora estava então convencida de que merecia.
A viagem havia sido há cinco anos…
Desde então, só trabalho, boletos e poupança, trabalho, boletos e poupança, traba—
De impulso, Débora caminhou rumo à porta –
(pra onde vou?)
– abriu-a e desceu pelo elevador.
Ao passar pela portaria, acenou para o porteiro, na guarita acima. Ele, cabelos brancos, corpo franzino e pele enrugada, retribuiu – no pulso, um relógio cujo reluzir chamou tanto a atenção de Débora que ela perguntou, enquanto abria o primeiro portão:
— Prata?
O porteiro anuiu com a cabeça:
— De família. Mas quase nunca uso. Medo que roubem.
Após abrir o segundo portão e sair para a calçada, Débora se dirigiu para a esquerda.
Na primeira esquina, ela parou.
Sentia tontura. A vista, turva. Semicerrou os olhos, tentou descortinar algo, mas tudo se embaralhava. Na avenida à frente, luzes amareladas de faróis dianteiros de carros em um sentido se entremeavam com as vermelhas de lanternas traseiras na via oposta. As luzes se espalhavam, dilatavam-se, como em um mosaico, ao qual se juntavam as irradiações de um semáforo e de outdoors. Ao redor de cada fonte de brilho, uma auréola, como em dias de chuva.
O espetáculo de luzes fez Débora salivar. Um frio lhe paralisava as pernas. Seus lábios tremiam a cada toque de buzina ou ronco de motor, mesmo que os ruídos lhe chegassem amortecidos, amordaçados pelo único som que lhe chegava alto e límpido: a voz de Helel:
Consuma!
Súbito, Débora sentiu firmeza nos pés. Aos poucos a vista se aguçou. Os lábios se aquietaram e um calor lhe percorreu o corpo. Voltou a ouvir.
Mas algo havia se modificado em sua percepção da realidade. O mundo ao redor, sentia-o ainda, no atrito de suas sandálias com o chão, no vento em suas coxas por entre os furos da calça jeans, no roncar dos freios de um ônibus em um ponto ali perto; mas ao mesmo tempo tudo lhe parecia fugir: seus pés mal pareciam pisar o chão, o vento lhe tocava as coxas só de resvalo, o freio do ônibus lhe chegava como algo à parte, como em um filme.
Débora sabia que o melhor naquele momento seria voltar para casa; não era seguro andar nas ruas no estado em que estava. Mas por algum motivo –
Consuma!
— ela retomou o caminho.
Cruzou a avenida, depois uma, duas ruas — sem parar, sem olhar para os lados, sem ouvir o guinchar dos freios e os berros de um dos motoristas obrigados a parar — até parar num cruzamento.
Então, Débora lançou os olhos ao redor. Ansiava por algo.
(O quê?)
Em seu torpor, as luzes avermelhadas dos outdoors mesclavam-se às cores das fachadas de estabelecimentos comerciais e se irradiavam até ao infinito. Os transeuntes que apinhavam as calçadas, sacolas de compra em mãos, moviam-se como formigas. Os carros zuniam.
Débora entrou na loja mais próxima: eletrônicos. Encomendou para entrega uma smart TV de última geração.
Depois, entrou em uma loja de móveis. Encomendou um sofá Elisabeth de três lugares.
Em seguida, em uma loja de itens domésticos, encomendou um tapete de lã de carneiro.
Ao sair da loja, Débora desejava mais. Não sabia o motivo; afinal, acabara de comprar itens que cobiçava há tempos. Mas não era suficiente.
Consuma!
Débora pegou o celular e conferiu no aplicativo do cartão de crédito o que lhe restava de limite. Queria – precisa! – fartar o desejo.
Em uma loja de suplementos, ela pediu por um dos colágenos mais caros do mercado.
— Tá em falta, senhora – disse o atendente, um rapaz franzino de nariz avantajado.
Débora desconfiou que o rapaz mentia. Ela franziu as bochechas, apertou os lábios, sua mão enclavinhou a borda da bancada de vidro que a separava do atendente; ela teve desejo de discutir com o rapaz, gritar, bater, ma—
(tar?)
Antes que os pensamentos criassem corpo, Débora caminhou rumo à saída.
Ela escutou quando o atendente informou a um homem — até então atrás dela na fila — que o whey protein estava em falta.
— Como assim? – perguntou o homem.
— Muita gente procurou por esse produto, senhor. O estoque—
— Eu não saio daqui sem minha proteína, ouviu?
O homem e o atendente começaram a discutir. Logo outros na fila se juntaram à disputa — “o homem tá certo, é obrigação da loja ter o produto”, “O rapaz não tem culpa do estoque ter acabado”, “o cará tá certo, mas não precisa ser grosso” — até o cliente segurar o rapaz pela gola da blusa:
— Olha aqui, é melhor ´cê se virar pra me arranjar essa proteína ou— o homem notou que alguém lhe tocara no ombro: uma mulher, cabelos amarrados em coque, óculos de aros grossos, rugas mal escondidas pela maquiagem. – O quê?!
– Não precisa se exaltar, senhor – disse a mulher. – Com diálogo tudo se resolve.
Por um segundo, o homem só a fitou. Então, lhe deu um murro.
A mulher caiu. O homem avançou sobre ela, na iminência de outro soco, mas um rapaz da fila se adiantou e lhe esmurrou.
Alguém, em defesa do homem, chegou por trás do rapaz e lhe desferiu um soco na nuca. Outra pessoa, vindo dos lados, esmurrou quem socara o jovem — e nisso, de soco em soco, a briga se alastrou pela loja. Pessoas se atracavam, derrubavam produtos, quebravam estantes.
Ainda sem muita consciência do que lhe ocorria ao redor, Débora saiu da loja e pôs-se a caminhar a esmo.
Ao redor dela, algo ocorria: em cada loja, botequim, restaurante — discussões, brigas, vandalismo. Todos queriam consumir, mas os produtos acabavam. Logo alguns começaram a roubar, no que foram seguidos por outros; os próprios seguranças punham-se a furtar. Em minutos, os estabelecimentos estavam com vitrines e janelas quebradas. Nas calçadas, produtos caídos durante a fuga de ladrões eram recolhidos em segundos por transeuntes.
Por instinto, Débora sentiu o perigo. Essa consciência – ou talvez uma descarga de adrenalina — lhe devolveu um pouco da percepção. Após alguns segundos de pasmo, pôs-se a correr rumo à sua casa.
A meio caminho, uma mulher lhe agarrou, tentou arrancar sua blusa — Débora lhe deu um safanão e voltou a correr.
Alguns metros depois, um pivete tentou lhe agarrar o relógio — ela desviou o braço no último instante e o garoto seguiu seu caminho, à espreita de nova oportunidade.
Mais alguns metros, Débora já no quarteirão de seu apartamento, e um homem se jogou aos pés dela, agarrando-os. Ela caiu, e o homem lhe arrancou uma das sandálias, antes que ela conseguisse se levantar e correr. O ladrão partiu em seu encalço.
Na fachada de seu apartamento, Débora apertou a campainha com sofreguidão enquanto gritava pelo porteiro.
Na guarita, ao perceber o que ocorria, o porteiro apertou o botão que abria a porta. Mas não a tempo de impedir que o ladrão derrubasse Débora e tentasse lhe tirar a sandália restante. Ela o chutou – uma, duas, três vezes – mas ele não recuou. O homem já lhe tirara a sandália até a metade do pé quando o porteiro se atracou com ele.
O ladrão tentou lutar, mas seus esforços eram prejudicados pela cobiça: soco a postos, ele desviava o punho para tentar arrancar a camisa do porteiro, seu cinto, seus sapatos…. Ao notar o relógio de prata, agarrou-o com as duas mãos – e assim abriu a guarda para uma descarga de murros do porteiro.
Após alguns minutos, o homem estava no chão, sangue nos lábios, bochechas inchadas, olhos a esmo…
Ainda a recuperar o fôlego, o porteiro ajudou Débora a se erguer.
Ela tentou agradecer, mas as palavras lhe falharam. Ela transpirava, tinha dificuldade de respirar, de se orientar, de caminhar.
— Eu subo com você – o porteiro disse.
No elevador, subiram em silêncio. Depois de observar o porteiro por alguns segundos, Débora concluiu que de algum modo ele não parecia ter sido contaminado pela loucura coletiva de consumo. Ela própria já se sentia a mesma de novo.
— O que houve com as pessoas? – ela perguntou.
— Eu ouvi no rádio que tem a ver com um guru de rede social.
Consuma!
Débora fechou os olhos, tentou tirar do pensamento a palavra, que lhe chegava na voz de Helel, como se ele estivesse ali… ali, no elevador!
— Senhora Débora? – Lábios cerrados, mandíbula rígida, ela mal escutava o porteiro. – Tudo bem?
Débora abriu os olhos e forçou um sorriso:
— Só uma tontura…
O elevador chegou ao andar, e o porteiro acompanhou Débora até a porta do apartamento.
Com alguma dificuldade, ela destravou o trinco da porta e, após breve despedida, entrou.
O porteiro caminhou rumo ao elevador, que havia subido. Apertou o botão de descida.
Enquanto esperava, olhos no display, ele assobiava uma seresta da década de 1970.
Súbito, o porteiro notou algo a seu lado: uma sombra… de mulher… nas mãos dela, um objeto — e ela acaba de erguê-lo!
O porteiro ensaiou se virar, as mãos em posição de defesa, quando um golpe na nuca o derrubou.
Ele caiu de joelhos, o sangue a lhe escorrer pela nuca. Braços e pernas descoordenados, tentou se levantar, chegou a soerguer o dorso, apoiando-se nos joelhos trêmulos — quando um segundo golpe na nuca o devolveu ao solo, desta vez de bruços.
Gemendo, ele se arrastou rumo ao elevador, cuja porta acabara de se abrir — as mãos já dentro do vão quando um terceiro golpe na nuca o atingiu.
Agora nos estertores, o porteiro agarrou os próprios testículos, numa tentativa de diminuir a dor. E assim ficou, posição de feto, sangue a se espraiar, até o corpo parar de se mover.
Débora, olhos como os de um defunto, largou a coruja de vidro, ensanguentada. O objeto se estilhaçou, e os fragmentos, à medida que se misturavam ao sangue, refletiam o vermelho como em um prisma.
(Consuma!)
Débora sorriu. Ajoelhou-se junto ao cadáver.
Após alguns segundos, voltou a seu apartamento.
Em suas mãos, o relógio de prata.
Detalhes do autor
Douglas Lobo
Douglas Lobo é romancista. Nasceu no interior do Piauí em 1977. Reside e trabalha em Fortaleza (CE)
Excelente ritmo… uma boa exploração do tema!