Natália (conto)
Por Matheus Bensabat
I
Olhando-a de frente, como se esperasse por alguma coisa, constatou: não era a mesma de uma semana atrás; havia naqueles grandes olhos castanhos um quê de fatalidade, de renúncia, de incerteza.
— Tem algo de vago, filha, em sua fisionomia… — dissera o Padre Ângelo, no adro, vendo-a estender as mãos para o recipiente de álcool gel. A última confissão a que atendera reverberava ainda entre a sua consciência, o céu e a terra.
— A benção, padre! — E, aproximando-se, beijou-lhe as mãos. — Está muito quente, sinto-me exausta.
Natália, sorvendo o ar fresco que se desprendia das aglaias, relaxou a musculatura, apoiando a mochila no parapeito da entrada. Revirou-a à procura do celular.
— Soube que você está lendo os Santos Padres.
— Sim, a coleção que o senhor doou para a tia Rose. Enquanto ela esteve acamada, passei alguns meses a folhear, tomando notas, alguns tomos — atalhou Natália, sorrindo, porém apreensiva, contornando com os olhos a abóboda central.
— Se eu, na sua idade — 22 anos? — , tivesse a força de espírito para estudar com diligência, não passaria por tais tribulações…
— Quais, padre?
E, percebendo que atravancavam a saída dos fiéis, disse:
— Sentemo-nos, minha filha.
Do adro à praça. Naquela manhã de outono os comerciantes principiavam a abrir as lojas, os camelôs espalhavam a barafunda pela calçada, pedintes empedernidos em cobertores desbotados passavam café, ali mesmo, ao ruído dos automóveis e ao trinar das cambacicas.
Pensar nos tempos idos o entristecia. Remexer como ferro em brasa as lembranças soterradas impelia-o a angústias diversas.
Sentaram-se em um dos bancos da Praça Dom Pedro, ao lado da estátua de Nossa Senhora de Fátima. Na marquise do canteiro lateral, um rapaz e uma moça abraçavam-se, aos beijos.
Padre Ângelo rompeu o silêncio:
— Pensei que viesse para a confissão da manhã… — E, disfarçando, mirou o casal.
— Infelizmente não pude chegar a tempo… Houve uma operação da polícia militar no Santo Cristo. Tivemos que ficar em casa até acabar o tiroteio. Uma sorte ter sido de manhãzinha. Mais tarde um pouco e me atrasaria para o trabalho!
— Você tem uma boa família. Apesar de tudo, o seu pai não a deixa solta por aí — disse, com a cabeça arriada, observando o trabalho das formiguinhas.
— Papai sempre foi trabalhador, sempre se preocupou com os nossos estudos e nunca nos deixou faltar nada em casa.
— Ora, conheço o seu pai desde a época do seminário. Ele consertou a parte elétrica do casarão. Fui obrigado — à época, o mais novo postulante — a ajudá-lo, informando-lhe o lugar do disjuntor, rodando de lá e cá à procura de peças elétricas, ferramentas de pedreiro, martelos e chaves. Ele, além de bom eletricista, também sabia derrubar uma parede.
— Papai é bom em tudo. Tem uma espécie de vocação universal, eu acho. Uma vez — Natália sorriu — , ele operou um gato.
— Veterinário também?
— Há muitos anos, eu ainda não era nascida, e acho que ele não havia conhecido a mamãe, pode não ser verdade, mas diz ele que, quando jovem, no sítio em que passou a infância, lá para Campos, havia um gato vagabundo que roubava os peixes direto da vara, ainda no anzol — não sei como — , quando vovô, por sorte, pescava alguma coisa. Certo dia, o gato apareceu com a barriga estourada, as vísceras para fora, e ninguém quis chegar perto, o bicho ainda estava vivo, mas ninguém quis saber. Foram acordar papai, o vocacionado universal, para olhar. O gato miava como se implorasse, flexionando as patinhas enquanto as tripas escorriam pela barriga. Papai pegou o carretel de costura da vovó, daqueles antigos, de madeira, e uma agulha — e ali mesmo, no alpendre, na frente de todos, empurrou tudo de volta e costurou o animal, que gemia como um exorcizado.
— E depois? — Padre Ângelo divertia-se recordando a figura enigmática de Frederico.
— O gato sobreviveu, mas ficou com uma linha vermelha riscando a barriga.
Ambos gargalharam. O casal, por sua vez, mantinha-se num festejo de toques e risadinhas, alheio ao movimento da rua.
Natália, percebendo a distração do amigo, assumiu uma postura direta, penetrante. Quais preocupações levavam o padre a se esquivar sempre, a fugir quase como um bicho? Sinceramente não gostava dessa atitude, esperava dele iniciativa, curiosidade.
Resolveu, então, falar sobre a sua vida — seria um bom momento, pensou. Apesar de conhecê-lo há muitos anos, em poucas ocasiões tiveram a chance de dialogar com calma e sinceridade.
— Lembro-me, padre, do dia em que mamãe nos levou ao circo em Maricá. Garotinhos com a camisa do Flamengo e do Botafogo; mães preocupadas com os bate-bolas, brigas e tiroteio. A promiscuidade se transformava em alegria. Ninguém se preocupava com os excessos: socos, uma discussão que rebenta em sangue e alarido. Ao contrário: exultavam. Sentia um calafrio como naquele dia em que nos assaltaram, em dezembro. Mamãe havia parado o carro na calçada, perto das onze da noite, para abrir o portão, quando eles entraram, rendendo-a. Levaram-nos para cima, um deles me puxou pelo cabelo, gritando: “Vai, merda, vai, menina!” Subimos as escadas, o de branco nos guiava, enquanto o outro, um sujeito cheio de espinhas com uma cicatriz na testa e o mais violento, vigiava a rua pela janela da sala. O comparsa nos trancou na gaveta do lavatório, uma gaveta grande, construída por papai na época em que ele trabalhava com marcenaria. Abraçamo-nos: não a quis largar, padre, não pude, não seria possível. Consolava-a enquanto ela tremia, beijava-a enquanto nos roubavam quase tudo — sobrou-nos tão somente a TV. De onde estávamos, ouvíamos o modo como eles se comunicavam, especulando o que prestava e o que não prestava.
Parou, pensativa. Padre Ângelo ouvia calado, com os olhos na marquise.
— Levaram até o material de trabalho de papai, um multímetro antigo, preto, um rádio e um notebook. Mantivemo-nos quietas; o de branco remexia as gavetas, xingando, que se não encontrasse algo de valor, estaríamos mortas. Mas que culpa tínhamos se, pobres, não possuíamos nada mesmo, ou pouco? Havia o necessário. O furor demorou uma hora, e durante uma hora permanecemos ali, sufocadas.
O sacerdote, virgulando a manhã de vão em vão, considerava argumentos, procurando retorquir adequadamente àquela moça que, ao seu lado, tão frágil, portava-se com firmeza frente às tribulações impostas por Deus.
— Querida, passamos na vida por alguns momentos de provação. Trato do assunto em algumas homilias, especialmente no tempo da Quaresma. Você está se esforçando, estuda e trabalha para melhorar de vida, sair de onde está para um bairro melhor, talvez Camboinhas, que é mais seguro…
Natália suspirou. Veio-lhe um arrependimento agudo, doloroso, por ter falado demais, por ter se aberto demais.
O casal agora improvisava, à socapa, gestos indecentes; dos beijos enérgicos passaram a grudar-se, encostando ombro com ombro.
Ao que a amante, como alucinada, começou a usar as mãos para envolver a cabeça do rapaz. Aquelas mãos… tão parecidas com as de agora há pouco, duas mãos trêmulas postas em riste rente ao madeirame central do confessionário, mãos de adolescente, aquela voz sussurrante não se confessava — transfigurava em canção sinfônica veleidades carnais sob um falso grunhido de choro, insinuando-se quase — pensou — como carpideira…
Natália não quis tirá-lo do torpor em que estava.
Procurou novamente o celular. Não o encontrou. Revirou mais uma vez. Nada. Dentro da bolsa havia um lencinho vermelho, um grampo de cabelo, além de papéis diversos: comprovantes de pagamento, boletos e um mundo inteiro, de um extremo a outro, que é a bolsa feminina.
O casal encaminhava-se para o portão lateral.
Natália levantou-se.
— Já, filha?
— Preciso ir. Não quero perder o ônibus.
— Retorne depois do seu expediente para a confissão da noite, preciso ainda fazer alguns telefonemas, responder mensagens e desinfetar o confessionário para o próximo atendimento.
— Voltarei. — E, erguendo-se, percebeu que o celular estava no bolso da calça. Lembrou-se da noite anterior, da intensa troca de mensagens, da dor de cabeça com que, durante o dia, fora obrigada a atender os clientes.
Apoiou-se ao ipê; no entorno, pinos de cocaína e trouxas de maconha dispersos por entre os bancos de concreto e cercanias, destoando da simplicidade com que as velas votivas, organizadas meticulosamente por mãos piedosas, substanciavam as aglaias que como toldos, guardavam a imagem de Nossa Senhora de Fátima.
Mirou o pináculo contraindo os músculos da face; atravessou, sozinha, de volta ao adro até a nave central, deixando o Padre Ângelo na Praça São João, absorto. Com uma genuflexão, a mão direita apoiada ao banco, deteve o olhar na imagem de São João Batista, ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado, circundando-o, através dos vitrais, um filete luminoso. Arqueou a cabeça e, por alguns segundos, lembrou-se da mãe, das irmãs, da tia Eulália, dos poucos anos vividos, dos momentos no primeiro colegial — os recreios no Dom Pedro II, a sombra das jabuticabeiras, a algazarra dos pequenos na creche; a professora Sônia, hirsuta, insistindo com voz de homem para que as crianças terminassem de colorir antes do último sinal um Papai Noel simplório, a carruagem deslizando de um polo a outro. Natália pausava o trabalho, pois cansava-se: doía-lhe a palma da mão sobre o lápis vermelho. Queria terminar logo, ver-se livre, abraçar a mãe, abandonar de uma vez aquele lugar que, em penumbra, mais parecia uma gruta selvagem.
Diante do recipiente de álcool gel, gritou, com certa apreensão embora alegre:
— A benção, padre! — E, assim como os dois amantes, saiu pelo portão lateral.
II
Entrou no primeiro ônibus que passou pela Rua São João. Centro de Niterói. Avenida Amaral Peixoto, Biblioteca Municipal, Liceu Nilo Peçanha — lembrou-se de Lima Barreto, o mais célebre aluno da instituição centenária — , Câmara Municipal, Prefeitura Nova, o Terminal Rodoviário Roberto Silveira. A Baía de Guanabara, próxima, reluzia. Uma barca, ao longe, em direção à Praça XV, ladeando o Santos Dumont, deixara uma faixa cintilar nas águas fluminenses.
Natália desceu um ponto antes decidida a terminar de vez com a situação. Caminhava trocando mensagens, esbarrando em estranhos. Sinal verde. Atravessou. A Rua da Praia estava movimentada, como sempre. Deu cinco reais a um sujeito que tocava saxofone; estudantes da UFF, de mochila nas costas, em grupos marchavam para o campus do Gragoatá, talvez para o prédio de sociologia — o rapaz do meio sobraçava uma edição de Casa-grande & senzala. Padre Ângelo, outrora, fora também um desses estudantes. Natália lembrou-se do que dissera o pai: “largou a faculdade para vestir a batina”.
Sentiu-se envolta numa espiral nauseante, aguardou o bom tempo lhe restituir o ar enquanto sentia a vibração do aparelho em suas mãos. Recuou para uma parede. “Chega, ou serei obrigada a tomar medidas mais drásticas para afastá-lo!”, disse, na tentativa de contê-lo. A mensagem não chegou imediatamente. Apenas um sinal positivo. Continuou pela Rua da Praia e, mordendo os lábios infantis, virou a Quinze de Novembro.
Encontraram-se pela primeira vez no curso de enfermagem, no segundo dia de aula. Ela, calma e sorridente, cumprimentava os colegas, apresentando-se. Marcos chegara atrasado com uma camisa estampada, cabelos longos, um certo ar de desprendimento, como se estivesse não ali, na Rua da Conceição, mas em qualquer outra parte do mundo, num lugar isolado e quimérico, enfurnado dentro de uma viela de roda desmesurada, embebido no néctar do Olimpo.
Por iniciativa dela, estendendo a mão, solícita, cumprimentou-o. Sentaram-se lado a lado, e durante a aula Marcos a encarou disfarçadamente. À saída, com ar retraído, tendo-a no mesmo elevador, pediu o número do celular, se poderia chamá-la naquela mesma noite. Natália disse que sim. Sorriram. Cada um foi para um lado.
Não demorou muito para enojar-se da maneira abusada e indecente com que o jovem a abordava — conversas descabidas para um primeiro contato, sem racionalidade, frases soltas, desconexas, mensagens exageradas que com os dias passaram a conter agressividade, uma imposição na qual ela não consentia. Estava decidido a relacionar-se com ela a qualquer custo; Natália argumentava: tinha-o como um colega de curso, um rapaz inteligente que sabia conversar sobre literatura, cinema, música especialmente. Passavam horas e horas, quando ele não se mostrava inconveniente, a ouvir sinfonias. Marcos havia adquirido a obra completa de Machado de Assis. Chegou um dia a emprestá-la. Que poderia ficar com ela por quanto tempo desejasse; Natália agradeceu; no dia seguinte, a convite dele, foram para a Cantareira assistir ao show de uma banda de jazz — a impressão negativa poderia se dissipar, elucubrou através do WhatsApp um sujeito que, nas manifestações ordinárias, poderia ser outro.
Os Naftalinas. Um grupo de rapazes vestidos com camisa social listrada, blusa branca, bermuda de praia e máscaras representando personagens de desenho animado. Marcos, rente ao palco, sem se explicar, deixando-a com um buquê de margaridinhas nas mãos, revirou-a, retendo-a diante de si, e calado, arrancou-lhe o cordão de prata cujo pingente era uma casinha camponesa como no quadro de Pissarro, e pôs no pescoço, subindo o estrado a pedir voz. Esboçou as primeiras frases de Pais e filhos enquanto o guitarrista ritmava os acordes. Largou, entretanto, o palco e, descendo em zigue-zague, pegou-a pelo braço, arrastando-a até a Praia de Icaraí. Natália, ainda mais preocupada, fora para casa decidida, pois se alongasse os dias a situação se tornaria ainda mais difícil — não seria possível envolver-se com um sujeito como ele, definitivamente, apesar das afinidades, das vezes em que, como sempre foi expansiva, procurava agradá-lo enviando-lhe poemas, arsenal camoniano.
Dez da manhã. Horário de abertura do shopping. “Vou até você ao meio-dia. Eu me declarei, gastei dinheiro e tempo com você, pensando em você! Você não vai me abandonar assim, não vai não”, leu. “Esquece. Exclui o meu número”, respondeu digitando febrilmente, com o brilho da tela no máximo, ao subir a primeira escada rolante. Que faria ele, movido por qual sentimento? Por um impulso de loucura, em suma?
III
Starbucks, Adidas, Bradesco, Casa & Vídeo, Chilli Beans, Fast Shop, LG, O Boticário. Aturdido, passou por todas elas, com a máscara no queixo, sem se preocupar com os seguranças, afastou a mochila para o lado, apoiando o ombro por cima dela, mantendo o fecho perto da mão.
Preferiu usar as escadas.
Era como se, a cada lance, uma imagem de cresce-e-míngua obnubilasse a sua visão: à medida que alcançava o terceiro andar, impulsionado por espasmos crescentes, olhando para baixo, via crescer, do térreo ao cimo do shopping, um arranjo de margaridas nas quais rubis chamejavam como sinais aéreos. Um escarlate facetado, ora pendendo para o claro ora para o escuro.
As flores, de uma brancura etérea, misteriosamente estouravam, fazendo escorrer sangue, pequena torneirinha aberta por um capetinha bonachão.
E os rubis fluíam também, até o momento em que, sem matéria viva, o buquê murchava — as margaridas morriam e se esfacelavam no térreo, espalhadas em forma de conchas…
Acelerou o passo, anulando as divagações. Natália provavelmente estaria atendendo a clientela exigente, porém simpática, burgueses niteroienses, em sua maioria senhores aposentados que sujeitavam o pensamento solto a olhar mulheres e a bebericar café importado.
Mais um lance e estaria na praça de alimentação. Deixara o celular em casa. Dentro da mochila havia tão somente algumas apostilas do curso de enfermagem e, na parte lateral, um livro e a faca.
Avistou-a. Natália almoçava sozinha numa mesa em frente à cafeteria.
Chutando uma das cadeiras, gritou:
— Vagabunda!
Um calafrio tomou-a da cabeça aos pés: ali estava ele, de novo, com aquela voz grave, a mesma camisa estampada por uma guitarra, que usava sempre para frequentar o curso, por baixo do jaleco — vestimenta ordinária associada ao aspecto de abandono. Aquela figura tétrica agora a enojava.
— Eu realmente não entendo! — disse, arrastando a cadeira, erguendo-se. — O que você quer comigo, me deixe!
Quando, de súbito, com ferocidade incontida, Marcos, inclinando-se levemente para trás, derrubou-a com um golpe único. Vendo-a cair, açodado, cravejou mais dois golpes; movido por um arroubo animalesco, sentiu-se encoberto por uma nuvem de fumaça desprendida dos infernos. Naquele momento, esquecera os rubis, o cordão, as madeixas onduladas que exalavam colônia campestre. Bolçou a faca pela escada rolante, sentou-se ao lado da moça e, com o rosto desfigurado pelo ódio, começou a contar as máquinas de café, tal qual condenado confesso.
Correria, arrastar de mesas. Dominados por um impulso de medo, os clientes deambularam em direção à saída, “É assalto!” — a enorme procissão ofegante de braços e pernas derrubando talheres, bolsas e cadeiras num bramir histérico.
Solidifica-se o silêncio. Estendida, o maxilar rijo, mirando o teto luminoso, voltou-se para o lado, vendo-o sentado naquela mesma posição. Buscou forças para levantar a mão esquerda; não conseguiu — quis pedir ajuda, mas naquele momento todos haviam passado para o extremo oposto; dois homens, entretanto, aproximaram-se dela, um sujeito de terno e um senhor, provavelmente cliente da cafeteria. Agacharam-se, o rapaz disse algo, ela não pôde escutar; repetiu — não houve resposta. Com esforço, tartamudeou consoantes, não para o jovem inclinado sobre si, mas por misericórdia, pela luz impoluta que, horas antes, avistara na Catedral São João Batista.
Detalhes do autor
Matheus Bensabat
Matheus Bensabat nasceu em Niterói, é técnico em energias renováveis.