Mito e Apocalipse
Este artigo faz parte do livro “As mentiras em que acreditamos”, publicado em agosto de 2021.
Por Jeffrey Nyquist
A partir de antigas fontes caldaicas e hebraicas (Gen. 4 e parte de 10), aprendemos sobre uma era mítica de gigantes e heróis — antes do dilúvio. Hoje nós evitamos essa pré-história. Não acreditamos numa Era Dourada perdida ou no dilúvio que a varreu. Não acreditamos no Timeu e no Crítias de Platão, ou no fragmento de Políbio sobre as catástrofes cósmicas que aniquilam periodicamente a civilização. Não acreditamos nos relatos caldaicos e hebraicos de uma grande inundação.
Nós, modernos, preferimos acreditar que o passado era inteiramente primitivo, que o progresso foi gradual e “evolutivo”. Preferimos acreditar que não houve Era Dourada, nem gigantes ou heróis, nem dilúvio, nem mundo antediluviano. Acreditamos que o tempo corre em linha reta. Quanto mais para trás você vai, mais atrasados os homens. Quanto mais para frente, mais instruídos e avançados. (Um conceito autolisonjeiro, se é que jamais houve algum).
Os antigos caldeus, egípcios, hebreus e gregos ficariam chocados com nosso desprezo pelas tradições orais e escritas. Eles teriam aversão à nossa visão da história como “uma coisinha atrás da outra”. Certamente, a história tem sentido. Certamente, há um padrão — a sugestão de algo maior e mais grandioso em ação.
Pergunte a si mesmo: por que a pré-história durou tanto, com tão pouco realizado? Nossos ancestrais da Idade da Pedra tinham cérebros tão grandes quanto os nossos e supostamente não conseguiram descobrir nada — construir nada — durante 180.000 anos.
Há mais de cem anos, o orientalista William Saint Chad Boscawen referiu-se ao dilúvio como “uma linha divisória entre a era mítica dos deuses e o início da história…” Ser mítico, no entanto, não quer dizer que não era real. Se encontrarmos metáfora, parábola e símbolo em nossos mitos — tanto melhor.
Giorgio de Santillana e Hertha von Dechend tentaram elucidar a profundidade do mito antigo em seu livrinho, Hamlet’s Mill (O Moinho de Hamlet). Eles negaram que os mitos fossem um tipo distorcido de história. Em vez disso, sugeriram que a mitologia contém mensagens codificadas para a posteridade. Eis algo para confundir o cientista de mente literal, para confundir nossos modernos saqueadores do inconsciente (isto é, psicólogos). Santillana e Dechend sugerem que o mito representa algo mais alto que a história e mais profundo que a ciência. É até sugerido que o mito representa algo que torna possíveis estes últimos afloramentos; pois o mito não nos diz o que aconteceu tanto quanto diz o porquê. Eis o fundamento de sentido que foi drenado de nossa ciência, de nossa história, gota a gota.
Será que, desde o início, as bordas de nosso mundo têm avançado ou retrocedido, não pelas explorações de Colombo e Magalhães, mas pelos efeitos benéficos ou deletérios dos entendimentos mitológicos — ou a falta deles? Será que dragões e serpentes marinhas não são apenas representados nas margens de mapas antigos, mas também são igualmente representados nas margens do tempo?
O grego-caldeu Beroso escreveu:
Uma grande multidão de homens de várias tribos habitava a Caldéia, mas viviam sem nenhuma ordem, como os animais… Então apareceu para eles, vindo do mar, na costa da Babilônia, um animal temível de nome Oan. Seu corpo era o de um peixe, mas sob a cabeça do peixe outra cabeça estava presa, e nas nadadeiras havia pés como os de um homem, e ele tinha uma voz de homem. Sua imagem ainda está preservada. O animal veio pela manhã e passou o dia com os homens; mas não se alimentou, e ao pôr-do-sol voltou para o mar, e lá permaneceu durante a noite. Este animal ensinou aos homens a linguagem e a ciência, a colheita de sementes e frutos, as regras para as delimitações de terra, o modo de construir cidades e templos, artes e escrita, e tudo o que se relaciona com a civilização da vida humana.
O absurdo intrínseco do texto não deveria ser nenhuma objeção. É uma história que é encontrada, de forma alterada, entre o povo dogon do Mali, a milhares de quilômetros da Mesopotâmia. O povo dogon manteve suas tradições orais até os tempos modernos. Eles falam do Nummo, uma criatura anfíbia comparável a um lagarto ou camaleão. Essa criatura também era descrita como um peixe que ficava de pé — e também como uma serpente!
Curiosamente, foi uma serpente que falou com Eva no Jardim do Éden; e, assim falando, convenceu o primeiro homem e a primeira mulher a sairem do Éden — para entrar nos rigores da labuta civilizada. Um réptil, uma cobra, um “dragão” — com pés! E esse réptil aparece de novo, no Livro do Apocalipse, capítulo 12.
Um grande sinal apareceu no céu: uma mulher vestida de sol, com a lua sob os pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça. Ela estava grávida e chorava de dor no momento em que estava para dar à luz. Em seguida, outro sinal apareceu no céu: um enorme dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres e sete coroas em suas cabeças. Sua cauda varreu um terço das estrelas do céu e as jogou na terra. O dragão postou-se diante da mulher que estava para dar à luz, de modo que pudesse devorar-lhe o filho no momento em que nascesse.
Esta mulher é Eva, a mãe da humanidade? Nossa aversão aos répteis, neste caso, é recíproca? E aqui está o réptil mais terrível de todos, juntando um terço das estrelas como meio de bombardeamento — para matar a humanidade em seu berço. Se a cobra nos atraiu para fora do Éden com o fruto proibido (contendo o conhecimento do bem e do mal), prometendo que seríamos “como deuses” — então essa cobra era um inimigo cuja estratégia era nos destruir com uma vaidade perigosa.
Será que o moderno revigoramento dessa vaidade é uma coincidência?
O que acontece com as mitologias — de todo o mundo — são as formas sutis pelas quais elas se conectam (mesmo que não concordem totalmente). Existe o absurdo palpável de um peixe ambulante, ou uma serpente que fala com mulheres, ou um camaleão que ensina as artes da civilização, ou um dragão bombardeando a terra com um terço das estrelas do céu para “devorar” um recém-nascido. Porém as testemunhas estão de acordo em todos os lugares. O peixe, a serpente e o dragão são parte integrante da nossa história. E por mais metafóricas, ou simbólicas, ou mesmo enigmáticas, essas criaturas arcaicas são, como afirmam Santillana e Dechend, “cosmológicas da primeiro à última”.
Isso foi compreendido apenas por poucos, interessou a muitos, e é para sempre espinhoso para aqueles que o abordam por meio das “maravilhas da matemática” ou pela especulação sobre o inconsciente. Em outras palavras, trata-se de uma abordagem seletiva e difícil, empregando os meios disponíveis e muita reflexão, certamente limitada, mas resistente à falsificação.
Este último ponto merece nossa atenção. Enquanto rimos da ignorância de nossos ancestrais da ciência, a sua mitologia ainda ecoa. Enquanto falsificamos a realidade com nossos “fatos” — enquanto estamos perdidos em “fatos” — imaginamos que descobertas “científicas” falam por si mesmas. Isso é mais absurdo do que um anfíbio que fala e anda; pois as noções “cientificistas” vazias da modernidade devem se mostrar intrinsecamente falsificadoras. Falamos sobre fatos o tempo todo, e fingimos respeitá-los. Mas usamos os fatos como um titereiro usa seus títeres. Fazemo-los dizer, nas profundezas da nossa corrupção, o que queremos que digam.
Enquanto um mito relata esotericamente o que é proibido a cativos e reféns, “fatos” tomados fora do contexto podem ser usados para garantir a continuidade do cativeiro. Da mesma forma, descer à trivialidade é o destino de quem está preso em uma falsa realidade, absorvendo a luz de um sol artificial, lutando por uma liberdade artificial, aderindo a uma ciência artificial.
A pergunta pode ser: o que nos capturou? Qual é a coisa má que ainda nos mantém como reféns? — com a promessa de uma serpente ainda ressoando em nossos ouvidos?
Detalhes do autor
Jeffrey Nyquist
Jeffrey Nyquist é um analista político americano e pesquisador independente, especialista em estratégias de subversão comunista e armas de destruição em massa. Já publicou milhares de artigos em importantes sites ao longo das últimas duas décadas. Mantém o blog pessoal www.jrnyquist.blog. É autor dos livros Origins of the Fourth World War e O Tolo e Seu Inimigo.