Maritacas (conto)

28, jun, 2023 | Artigos | 1 Comentário

Por Douglas Lobo

 

Silas acordou debaixo de grasnidos. Soergueu-se na cama e, uma vez desperto, atinou com o que ocorrera: as maritacas haviam feito um ninho no telhado.

No escuro, não conseguia vê-las;  só as ouvia:

KRIK-KRIK! KRIK! KRIK-KRIK-KRIK!..

Também lhes ouvia o farfalhar das penas e o atrito de seus pés com as ripas que constituíam o forro. Os grasnidos não vinham da parte do telhado acima de sua cabeça — estavam mais à frente, além da porta do quarto, na sala de jantar.

Ainda um pouco grogue de sono, Silas — barba de lenhador, cabelo em coque, rosto cavado — lançou os olhos em Daiane, deitada a seu lado.

A esposa ainda dormia: as cobertas até a cintura, os cabelos curtos cacheados esparramados no colchão, o dorso magro a subir e descer junto com a respiração. Silas agradeceu em silêncio que ela tivesse sono pesado. Nas últimas semanas, quando os pássaros tinham começado a se movimentar no telhado, a esposa lhe dissera para se livrar deles. Daiane só não lhe havia dito como fazê-lo. Não era surpresa: ela nunca lhe dizia como fazer algo; só pedia e esperava que ele resolvesse o problema. Bem, Silas não tinha se livrado das maritacas e a última coisa de que precisava agora era de uma discussão do tipo “eu te disse…”

Silas jogou de lado o lençol e, de pijama, saiu rumo à sala de visitas, o troar das maritacas mais forte a cada passo. Dado o barulho, não teve dificuldade em localizar as aves: no centro da sala, acima de sua cabeça. Como não as visse, apertou o interruptor; a luminosidade penetrou no quarto do casal pela fresta da porta entreaberta. Daiane gemeu na cama. Silas se amaldiçoou.

Ele tentou se concentrar nas maritacas. Agora conseguia avistá-las — ou melhor, distinguia-lhe as penas verdes da cauda, à medida que corriam sobre as ripas do forro. Divisava também a circunferência do ninho, de palhas e gravetos.

Silas pensava em como tirar as aves. E se fizesse barulho? Não, não ganharia das maritacas nesse quesito. Além disso, se fizesse ruído acordaria a esposa, e não estava preparado para isso naquele momento.

E se atirasse algo nas maritacas? — pensou. — Suas sandálias, as havia deixado ao pé da cama… Não, teto alto, e as aves protegidas pelas ripas e pelos caibros: muito grande a chance de errar. Além disso, o barulho acordaria a esposa…

Depois de alguns segundos, uma ideia lhe veio à cabeça:

E se…

(Não.)

Mas…

(Não.)

A espingarda—

(Não!)

Estava doido? — pensou. Matar dois animais inocentes? Logo ele, defensor dos animais?Ele, vegetariano há cinco anos em protesto contra a dor que os animais sofriam? A espingarda — calibre 22, própria para pequenos animais — era por segurança (ideia besta da esposa: “e se aparecer uma cobra?”); esperava nunca ter de usá-la.

(Além de quê, o tiro com certeza acordaria a esposa…)

Silas teve de admitir a si mesmo: não sabia o que fazer. Sentia-se como há três anos —  quando descobrira a verdade sobre a mãe e—

— Eu disse.

À voz de Daiane, um frio subiu pelo espinhaço de Silas. Ele contraiu os ombros. Um de seus joelhos vacilou.

Em um  segundo se recompôs, virou-se e topou com Daiane, de pé, no limiar da porta do quarto. A esposa o fitava, com olhos que pareciam cortá-lo.

— As maritacas, elas… — Silas apontou com o dedo indicador para o teto, e neste momento a voz lhe começou a falhar, então se calou: não queria que a esposa lhe percebesse a tensão; não queria que ela se sentisse forte o suficiente para discutir, para dizer “viu só, eu alertei, no primeiro dia que elas apareceram!”

Para alívio dele, Daiane parecia mais preocupada com o futuro do que com o passado:

— O que você fará — ela falava alto, em uma tentativa de se sobressair aos sons das maritacas — pra se livrar deles?

Silas pôs-se a pensar em uma solução. Daiane esperava isso dele: que ele tomasse decisões e as executasse, sem hesitar; ainda que ela discordasse do que foi decidido — como ocorrera há dois anos, quando ele decidira que iriam morar no interior.

— Vou chamar o Ibama — ele disse.

Daiane  entreabriu a boca. Por um instante ficou em silêncio, em meio aos grasnidos das maritacas. Do quintal veio o cocoricó do galo. Do curral, o mugido da vaca leiteira. Do pátio, o chilrear dos primeiros pássaros da manhã. Então, ela disse:

— A gente tem que se livrar dum casal de passarinhos… e você quer chamar o órgão de proteção ambiental?

— Querida, a gente precisa de orientações de como proceder.

— Tudo o que o Ibama vai fazer é nos impedir de proceder.

Silas fitou a esposa por alguns segundos, antes de dizer:

— Querida, você não está pensando que devíamos… — deixou no ar as últimas palavras: não conseguia verbalizá-las; mal conseguia pensar nelas.

Daiane avançou até a mesa de jantar e, as mãos sobre a toalha:

— Temos como se livrar desse problema agora mesmo.

Um calor subiu à cabeça de Silas. Os olhos dele se contraíram. As costas se enrijeceram. Como Daiane podia sequer cogitar isso? Não havia aprendido nada com ele? Não havia aprendido nada sobre a dignidade dos animais? Tentou esconder a raiva, ao dizer:

— Tem como a gente fazer isso com respeito à natureza. — Viu que a esposa mordia os lábios para esconder um sorriso, mas continuou: — O Ibama vai nos dar uma orientação.

Daiane se retesou, deixou as mãos caírem ao longo do corpo:

— Espero que sim.

A espinha de Silas gelou.

***

— Infelizmente, eu não posso remover o ninho.

Silas resistiu ao impulso de olhar para a esposa (embora a visse de relance, de pé a seu lado, e sentisse os olhos dela cravados nele) — manteve a atenção no policial ambiental, com quem o casal conversava, no meio da sala. O homem, de pescoço curto e orelhas curvadas à frente como asas de morcego, usava farda militar de camuflagem, gorro de selva, colete e coturnos pretos.

— Por quê? — perguntou Silas. A voz saiu sem a firmeza que ele tencionava.

(Preferia que Daiane não estivesse ali.)

— A fêmea pôs um ovo. — O policial intercalava o olhar entre Silas e Daiane; olhos de estátua, de quem registra sem de fato se importar. As maritacas haviam levantado vôo e podiam falar sem aumentar a voz. — Nós não podemos remover animais durante a fase de reprodução.

Daiane, punhos cerrados na cintura:

— Essa é nossa casa, policial. Nosso teto.

— Remover o ninho poderia  comprometer o nascimento do filhote, senhora, e nisso a preservação da espécie.

— A preservação da espécie está ameaçada —  dedo indicador em riste, como a contar — por um ovo?

— Querida…

— Cada vida animal é importante, senhora. — Pareceu a Silas que Daiane reprimia um sorriso de zombaria, enquanto o policial continuava: — E outros ovos virão. As maritacas costumam pôr até uns nove.

Daiane meneou a cabeça:

— E nossas vidas, policial?

No silêncio de instantes que se seguiu — quebrado só pelo silvo de uma carreta que passava pela estrada de rodagem em frente ao sítio —, Silas percebeu que o policial se deixara afetar pelo apelo de Daiane. Os olhos de estátua passaram a exibir uma centelha de vida.

O sol do meio da manhã penetrava pelas janelas e portas abertas, grãos de poeira a flutuar nas réstias de luz. Cheiro de panqueca no forno permeava o ar, e Silas sentiu fome.

— A senhora pode… — o policial reparou em Silas, e emendou: — vocês podem enviar um e-mail ao Ibama solicitando o remanejo imediato, sob alegação dos transtornos causados. Mas não é garantida resposta positiva.

— Um e-mail, você diz? — Daiane lançou os olhos em Silas, um esgar nos lábios. Ele tentou firmar a voz ao dizer ao policial:

— Eu prefiro entregar uma carta em mãos. Onde fica o posto do Ibama mais perto?

— Em Picos — disse o policial. — Mas por que a viagem, senhor? Algum problema com o wi-fi?

Silas ia responder, quando Daiane atalhou:

— Nós não temos wi-fi. Nem computador. Eletricidade, só porque eu insisti.

O policial arregalou os olhos. Mas se limitou a dizer:

— Como acharem melhor. Agora, se me dão licença… encontraram uma cobra na fazenda Barro Seco.

Com um gesto de cabeça, a título de despedida, o policial saiu.

Silas pensou em ralhar com a esposa, a frase lhe veio à mente (“por que falar de nossas coisas domésticas para o policial?”) — mas ao fim permaneceu calado enquanto Daiane cruzava o corredor que levava da sala de visitas à cozinha.

***

No almoço, Silas comia com pressa e em grandes quantidades; tinha fome: após o policial sair, tivera de escrever — à máquina — a carta ao Ibama, e então partira de caminhonete até Picos — duas horas de viagem, ida e volta. Voltara com um número de protocolo e a promessa de que teria uma resposta em até cinco dias úteis — ou seja, até sexta-feira.

Silas vibrou ao dar a notícia à Daiane. Só cinco dias por uma resposta? — perguntara, enquanto a esposa punha na mesa as travessas. Prazo rápido para um órgão público. E o Ibama ia aceitar os argumentos deles — até porque, sem falsa modéstia, a carta estava bem escrita; afinal seu marido, querida, era advogado, bom em linguagem oficiosa! Até a semana seguinte tudo estaria resolvido.

Enquanto Silas falara, a esposa só o fitara, em silêncio. E assim permaneceu, calada, por vários minutos, enquanto comia uma panqueca de legumes. Até que pôs os talheres de lado e disse:

— Cinco dias? Só pra sabermos se o Ibama concorda em tirar essas pestes daqui?

— Até lá a gente tenta conviver com elas, querida. — Talheres empinados nas mãos, Silas tentava esconder a irritação. Por que Daiane nunca via o lado bom das situações? — Se integrar à natureza. Essa sempre foi a proposta, foi pra isso que nos mudamos pro interior. Por isso dispensamos a tecnologia.

Daiane se retesou na cadeira e, o garfo empunhado como espada, disse:

— Integração pressupõe ordem. E não há ordem na natureza. Só caos.

Silas abriu as mãos, os talheres a caírem sobre a mesa:

— Qual o preço da ordem, querida? —  Sua voz saíra mais áspera do que tencionara, mas prosseguiu: — Impor nosso mundo aos animais? Sendo que eles têm mais direito à natureza que nós?

Silas agradeceu em silêncio quando Daiane se limitou a menear a cabeça. Não queria continuar com o assunto: quando decidia ser teimosa, a esposa lembrava demais a mãe dele…

Continuaram o almoço, em um silêncio interrompido só de quando em vez pelo fraquejar de uma galinha d´angola no quintal.

***

Na semana que transcorreu, Silas e Daiane aprenderam o quanto um par de aves pode afetar  a rotina.

A algazarra começava às cinco e meia da manhã. Durava cerca de uma hora. Depois, as aves voavam para fora, em busca de comida; voltavam no fim da tarde e continuavam a soar com estrindor até o escurecer, quando dormiam. 

Silas tentava levar na esportiva: “elas são um bom alarme” — dizia, enquanto se erguia da cama e, após escovar os dentes, ia para o curral ordenhar a vaca holandesa. Soerguida na cama, olhos sonolentos, Daiane resmungava algo.

Na terça-feira, as duas maritacas, até então restritas ao teto, arriscaram maior aproximação.

Desciam à sala, onde ficavam em cima ora da geladeira, ora da arca, ora do recosto do sofá de três lugares. Silas gostava: era como ter animais domésticos — dizia à Daiane; ela só mexia a cabeça, sem ânimo para discussões.

Silas aproveitava a proximidade das aves para lhes prestar atenção nos detalhes (desde criança não via passarinhos tão de perto): assemelhavam-se a um pequeno papagaio: penas verdes do topo do crânio até as pontas dos pés, acinzentados; amarelas na parte inferior das asas; vermelhas no pescoço e nos lados da cabeça, que tinha forma de ovo e onde despontava um bico curvilíneo cor de minhoca.

Na quarta-feira, as maritacas achegaram-se ainda mais.

Durante o almoço, uma delas escalou a mesa e comeu sobras de arroz; com nojo, Daiane a enxotou com um safanão — sob o olhar reprovador de Silas.  Mas era tarde: as aves haviam descoberto que não precisavam sair de casa para encontrar comida.

Algumas horas depois invadiram a cozinha e, às escondidas de Daiane — ela preparava o jantar no fogão à lenha —, bicaram uma manga na fruteira. Logo descobriram a lixeira de detritos orgânicos e se esbaldaram ali dentro.  Daiane ouvia-lhes o escavar, mas tentava ignorá-las e se concentrar no cozimento do arroz com lentilhas.

Na hora de servir o jantar, a esposa abriu o armário, à procura de travessas, e gritou de susto: lá estavam as maritacas, a caminhar sobre pratos e xícaras; aos ralhos, Daiane as enxotou.

Na quinta-feira, o estopim: Daiane refogava legumes quando, ao se virar em busca do saleiro, deparou-se com uma das maritacas a pisar nos cogumelos que ela reservara em um pote de plástico.

Daiane fez menção de ralhar com o animal. Mas se calou. Livrou-se do avental, avançou pela cozinha e entrou na despensa. Ali ficavam os mantimentos — e algo mais…

Depois de alguns minutos, Daiane saiu. Nas mãos, a espingarda calibre 22.

Ela mirou a arma na maritaca — esta abandonara os cogumelos e, sobre a borda da panela, pescoço estirado, observava os legumes a refogar.

Daiane engatilhou a espingarda, o dedo pronto a pressionar o gatilho — quando atrás dela Silas gritou:

— Não!

No limiar da porta holandesa que levava ao quintal, ele estendia as mãos abertas rumo à esposa, em súplica. Viera do curral; ao gritar, derrubara um saco de ração bovina, e farelos espalhavam-se pelo chão, brilhosos sob o sol de fim de tarde.

— O que você tá fazendo? — perguntou à Daiane.

— Resolvendo o problema — ela mantinha a arma em riste, o passarinho na mira.

— Você não pode matar um animal.

— Não?

— É moralmente errado.

Daiane desviou os olhos, do passarinho para o marido: “não existe moral quando se trata de animais. É um conceito que só se aplica a humanos” — e de novo para a ave.

Por um segundo Silas ficou sem resposta ante o argumento. Mas logo voltou à carga:

— É um crime.

— Quem vai saber?

— O Ibama. Se decidirem vir aqui, remover os passarinhos, e não os encontrarem?

Desta vez, foi Daiane quem hesitou.

Após alguns segundos, abaixou a arma. Sem dizer palavra, devolveu-a à despensa. Ao retornar à cozinha, tinha os olhos em Silas:

— Amanhã cedo vá a Picos pegar a resposta do Ibama.

— Cedo talvez ainda não tenham resposta.

— Bem — ela adentrou o corredor, rumo à sala — só volte de lá com uma.

Na sexta-feira, acordaram às cinco, sob o alarma das maritacas. Com pressa de partir para Picos, Silas dispensou o café da manhã: um copo de leite mugido e uma fatia de pão integral, só para enganar o estômago, e partiu na caminhonete Ford Ranger.

No carro, enquanto percorria a estrada de rodagem que levava à rodovia BR-316, Silas percebeu o quão cansado estava. Embora se esforçasse em não dar o braço a torcer,  o berreiro das maritacas afetava sua energia, seus reflexos, sua atenção. Na quietude do automóvel, percebia que iludira a si mesmo ao dizer que estava tudo bem.

Felizmente, aquilo terminaria naquele dia mesmo, com a resposta do Ibama — pensou enquanto acelerava, o mato à frente ora a recuar, ora a avançar — o mato a bater ora no para-brisa, ora nos retrovisores, ora nas bordas das janelas, por onde galhos às vezes caíam dentro da caminhonete. Na margem da estrada, uma seriema perlongou o carro por alguns segundos; Silas emparelhou o carro com a ave, em uma corrida imaginária que durou alguns segundos, até o pássaro adentrar o mato e sumir de vista.

Silas não acreditava que o órgão ambiental os submeteria àquilo por mais tempo. Não havia sentido: ele a esposa pagavam impostos; as maritacas, não.

Reprimiu-se por este último pensamento: parecia algo saído de memes de direita. Talvez estivesse dando ouvidos demais à Daiane…

Ao acessar a rodovia, Silas foi invadido por uma dúvida: e se o Ibama se recusasse a remover as aves?

Tentou afastar o pensamento; mas ao longo da viagem ele lhe voltava, como uma dor-de-cabeça que se recusa a passar.

Em uma das vezes que o pensamento lhe invadiu, veio junto com a imagem da espingarda.  Silas sacudiu a cabeça, afastou a visão e se concentrou na rodovia.

***

No almoço, Daiane tentava comer. Tendo de parar a todo instante para espantar as maritacas. As aves haviam subido à mesa e, expulsas, insistiam em voltar, escalando com os bicos e pés as quinas, franjas da toalha, cadeiras — às vezes as pernas de Daiane, que pulava de susto.

Em um desses pulos, ela chegou ao limite.

Deu um safanão no pássaro em sua coxa, ergueu-se da cadeira — com tanto ímpeto que os talheres caíram ao chão — e lançou os olhos na parede à direita, por trás da qual ficava a despensa.  

E se usasse a arma naquelas pestes? — pensou. Poderia inventar algo para dizer ao marido (“entrou uma raposa no quintal, atrás das galinhas; as maritacas deram no pé, com medo”.) Mas não se sentia bem em mentir a Silas. Por entre os altos e baixos do relacionamento deles, havia um princípio jamais dito, mas sempre presente: não mentiam um para o outro. Não — pensou — melhor esperar o marido voltar, vai que o Ibama—

Naquele momento ela ouviu, do lado de fora, o roncar do motor da caminhonete.

Daiane saiu para o alpendre. Esperou, enquanto Silas dobrava à esquerda na estrada de rodagem, pegava a viela de acesso e, após abrir e fechar a cancela, adentrava o pátio e estacionava em uma clareira à frente da casa-grande.

Pelas feições de Silas quando saiu do carro, Daiane soube que o Ibama negara a remoção das aves.

Ela contraiu os lábios, cerrou os olhos, a raiva a dominá-la — enquanto o marido, já no alpendre, lhe dizia algo, de que ela só captava trechos:

— …época de ovos… esperar até os filhotes abandonarem o ninho.

Daiane abriu os olhos, puxou o ar — uma, duas, três vezes — e só então, após recuperar o controle —  no pátio o farfalhar de lagartixas a correr em meio a folhas dentro de um toco seco de madeira —, Daiane perguntou:

— Quanto tempo?

— Três, quatro meses.

Daiane fitou o marido.

Silas viu nos olhos dela algo que jamais vira até então: um sensação de acuo, um ódio que parecia vir da impotência. Percebeu naquele momento que aquelas pequenas aves dentro de casa haviam conseguido fazer o que ele, Silas, jamais conseguira: intimidar Daiane — deixá-la sem reação, sem controle.

Ele não teve muito tempo para pensar sobre isso: sem dizer palavra, Daiane virou-se, entrou na casa-grande e avançou pelo corredor. Silas foi atrás dela e, a meio caminho da cozinha, percebeu o que a esposa queria. Apressou o passo.

Entrou na cozinha a tempo de se jogar à frente da porta da despensa, antes que Daiane alcançasse a maçaneta.

— Querida, não é esse o caminho.

— Sai da frente — Daiane tentava alcançar a maçaneta, as mãos a esbarrar no corpo de Silas.

— Querida, a natureza é território dos animais. Não nosso.

Daiane desistiu de avançar e, dedo em riste:

— É nosso sítio. Nós compramos o terreno, nós construímos…

— Mas a gente tá aqui de favor.

Daiane recuou a cabeça, olhos arregalados:

— Favor de quem?

— Dos animais.

Ela pôs as mãos na cintura e, entredentes:

— Animais não fazem favor. Pare de falar deles como se fossem pessoas.

— E por acaso só pessoas têm direito à vida?

— Então, é sobre isso? — Daiane abriu os braços, as mãos espalmadas rumo ao teto. — Sobre proteger a vida?

— Isso mesmo.

Daiane deixou os braços caírem, enquanto dizia, olhos cravados nos de Silas:

— Ou é sobre fugir da vida?

Silas recuou. Não sabia de que Daiane falava — e ainda assim algo nas palavras dela haviam lhe perturbado.

Não precisou esperar muito para compreender o motivo, já que Daiane, inclinada rumo a ele, prosseguiu:

— Todo esse papo de “natureza”… quando na verdade se trata de fugir. Fugir por não poder lidar com o que sua mãe fez.

À menção à mãe, Silas cerrou os punhos, rilhou os dentes, bufou pelo nariz.

Daiane matinha os olhos nos do marido — olhos de uma gata frente a uma presa.

Por alguns segundos entreolharam-se, sem dizer palavra.

Então, em um supetão, Silas debandou da cozinha.

***

No quarto, na cama, porta trancada à chave, olhos no teto, Silas pensava em Daiane.

Como a esposa mudara tanto, em cinco anos de casamento? Sempre fora forte, claro; mas ao lado disso havia meiguice, otimismo —qualidades que aos poucos tinham se perdido nela. E Silas teve de reconhecer que a mudança havia ocorrido após se mudarem para o interior.

Ele se revirou na cama, o queixo agora sobre o travesseiro, os olhos fitos na cabeceira da cama.

A quem tento enganar? — pensava. Daiane não era o problema ali. Ele era. Por trás das palavras duras da esposa, havia a verdade — admitia a si mesmo. Ele viera morar no mato por causa, sim, da mãe…

Como a mãe pudera fazer aquilo? e de modo tão desleixado? Será alias que não havia feito daquele jeito de propósito — para ser desmaracada e com isso precipitar o divórcio?

Silas se revirou na cama. Olhos de novo no teto, onde as maritacas começaram a vociferar:

KRIK-KRIK-KRIK. KRIK. KRIK-KRIK…

Como a mãe pudera trair papai?

Trair papai não com um homem, mas vários?

E como pudera, depois disso, trair algo ainda mais importante: os próprios valores?

KRIK. KRIK-KRIK. KRIK-KRIK-KRIK…

Depois do divórcio, Silas tentara seguir em frente. Visitava a mãe, instalada na casa de um dentre vários amantes. Tentava conversar, atualizá-la sobre sua vida, sobre Daiane. Mas algo não encaixava…

…KRIK-KRIK. KRIK. KRIK-KRIK-KRIK…

havia sempre palavras não ditas, silêncios preenchidos com pensamentos que nenhum dos dois tinha coragem de expressar….

KRIK-KRIK-KRIK. KRIK. KRIK-KRIK…

… a mãe não perguntava pelo ex-marido. Silas pensava em falar, em dizer que após o divórcio o pai voltara a beber; sumia às vezes fins de semana inteiros, em que gastava todo o dinheiro com garotas de vinte e poucos anos… Mas ao fim ficava calado, não sabia qual seria a reação da mãe à menção de papai…

KRIKKRIK. KRIK-KRIK-KRIK…

… não sabia aliás sequer o que a mãe pensava dele, Silas… só agora percebia que não conhecia a própria mãe, que havia todo um lado dela que sempre permanecera na sombra — que ela tentara reprimir talvez, até que algo (o quê?) trouxera aquilo à tona…

KRIK-KRIK-KRIK…

e ela fora atrás de dar vazão àquilo no

(eu não posso falar)

no…

(não posso)

no sexo!

(não!)

Sim! O lado negro da mãe se revelava, se preenchia, no sexo… via isso sempre que a visitava: o ar de luxúria permeava o ar…

KRIK-KRIK-KRIK-KRIK

a mãe se apresentava em roupas curtas, sensuais, do tipo que jamais usara quando casada… o rosto com maquiagem pesada…

KRIK-KRIK-KRIK-KRIK-KRIK-KRIK

até mesmos os gestos… com o tempo se tornaram lânguidos, sedutores… como os de uma—

Silas mordeu o travesseiro, como se ao sufocar a palavra na boca a fizesse no cérebro. Inútil: a palavra lhe veio. E só agora percebia tudo: dava-se conta do que a mãe se tornara após o divórcio.

Lágrimas lhe escorreram pelos olhos.

***

No jantar, em meio aos brados das maritacas no teto, Silas e Daiane comiam em silêncio. 

Na travessa, o ravioli com molho de berinjela permeava a sala de um cheiro que dava alegria a Silas. Pelas janelas abertas penetrava a luz das lâmpadas do alpendre, dependuradas em fios e em torno das quais insetos revoavam. No céu limpo de nuvens, a lua crescente resplandecia. Quando as maritacas se calavam, era possível ouvir ao longe o ronco de algum motor de carro ou moto.

Silas gostava disso, dos aromas e sons do interior; mas de nada lhe valiam sem Daiane.

Sabia que precisavam se entender. Mas notou que a esposa parecia constrangida em começar a conversar — talvez por sentir que tinha passado dos limites. Decidiu então, em um intervalo de silêncio dado pelas maritacas, tomar a iniciativa:

— Sabe, querida.. — Eles pôs os talheres ao lado do prato. — Sobre o que você disse…

— Eu fui injusta — ela abandonou os talheres no prato —, eu não devia ter—

Silas a calou com um gesto de mão:

— Você tá certa.

Daiane pôs as mãos no regaço da blusa. Seus olhos se umedeceram.

— Talvez eu tenha tentado fugir da vida — continuava Silas —, dos problemas… e acabei te arrastando pra isso.

As maritacas voltaram a estrugir durante alguns segundos. Tão logo pararam, Silas retomou:

— Mas o que tá feito, tá feito. A gente tem que olhar pra frente. Você se adaptou à comida vegetariana, não se adaptou? ao leite mugido..?  — Daiane anuiu, e Silas prosseguiu: — … se adaptou a cuidar do galinheiro…

— Eu adoro as galinhas. — Falava a verdade: dar milho às aves toda manhã era um de seus maiores prazeres.

— A gente tem que persistir. — Ele pegou o garfo e, olhos no prato, pressionou o cabo sobre a toalha da mesa. — Talvez minha motivação inicial não tenha sido a de se integrar à natureza… — ele ergueu os olhos e passou a mover o talher, como se rascunhasse com ele seus argumentos na superfície da mesa: — Mas a partir de agora vai ser. A gente tá começando um novo momento. Um novo momento de integração à natureza e de amor aos animais.

Daiane sorriu. Ela via à sua frente o homem por quem havia se apaixonado. Reclinou o dorso sobre a mesa:

— Vai dar certo, amor.

— Quanto às maritacas… — Como que atendendo a um chamado, elas voltaram a estrondear. Silas esperou que silenciassem, antes de retomar: — São sós alguns meses. A gente dá conta. Elas vão ser como… primos que vieram passar um tempo.

— Claro, amor.

Ele sorriu. Via no olhar de Daiane calor, afeto; a esposa parecia ter voltado a confiar nele, parecia disposto a segui-lo em qualquer aventura. Ao fim as maritacas, longe de um problema, haviam sido uma solução: haviam-no permitido revitalizar o casamento, reforçar o papel de chefe da casa, do protetor com que a esposa sempre poderia contar.

Olhos fitos nos de Daiane, Silas saboreou o momento. Vencera.

Súbito, algo escuro vindo do teto cruzou a linha do olhar deles — e caiu dentro do prato de Silas.

Ele baixou os olhos. E seu rosto se contorceu.

Daiane lhe acompanhou o olhar… e se enojou.

As maritacas haviam defecado no prato de Silas. Uma gosma preta molhada, onde se viam aqui e ali grãos mal digeridos de ervilha e milho, engolfava o ravioli.

 — Querida? — perguntou Silas, sem tirar os olhos do prato.

— Sim, amor?

— Traz a espingarda.

FIM

 
 
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Douglas Lobo

Douglas Lobo é romancista. Nasceu no interior do Piauí em 1977. Reside e trabalha em Fortaleza (CE)