Mário Ferreira do Santos vs. Loucura Brasileira
Hoje já não saberia mensurar os efeitos imunizantes da obra de Mário Ferreira dos Santos sobre mim, como uma criança que ignora todas as situações em que a vacina contra a meningite a livrou das conseqüências catastróficas da enfermidade. A vacina lhe garante a proteção sobre as situações conhecidas e ignoradas, como quando brinca no parque ou na escola com uma outra criancinha que não sabia doente.
Mário Ferreira dos Santos, Gilberto Freyre, Olavo de Carvalho, Manuel Bandeira são as doses de vitamina cultural e mesmo de imunizante contra os males lingüísticos, retóricos e ideológicos a que estamos sujeitos, sobretudo hoje em que tudo padece de suspeição, em que se quer que homem e mulher não sejam realidades distintas e complementares, em que se aceita as certezas mais cépticas que há, em que o homem é desqualificado ante os bichos e as máquinas e em que Deus na mídia não passa de uma frescura de beatas e trapaça de charlatães. Como não enlouquecer?
Quando fiz Mestrado em Santa Catarina, de caso pensado decidi ler Gerardo Mello Mourão e fazer aula de forró para manter minha sanidade. Submeti minha decisão a um excelente padre e bem… pude sentir que a força da poesia d’O País dos Mourões e a deliciosa galinhagem do Luís Gonzaga é que me mantiveram são e com possibilidades de salvação… Com esses dois mestres, eu fugia da loucura de cátedra que a universidade nos garante.
Desde os dezoito anos, quando comecei a ler o Mário, ele operou sobre mim como um remédio a minha ignorância: na forma e no conteúdo. Se buscava aprender algo, como por exemplo Filosofia dos Valores, consultava suas obras, mais precisamente no caso o Filosofia Concreta dos Valores. Além disso, sua forma expositiva é diferente de tudo a que estamos habituados em nossa educação regular, no colégio e na universidade. Os professores em geral falamos um português muito aquém de nossas obrigações pedagógicas, com sentenças quebradas, incompletas, mal exaradas e com o emprego dos termos sem a devida precisão. Todos os brasileiros, basicamente, somos assim; os nascidos da década de 80 em diante somos mais do que todos assim.
Onde encontrei um modelo em contrário foi nos áudios do Mário Ferreira dos Santos, no entusiasmo de sua retórica, na escolha de seu vocabulário e o que mais me impressionava era o fato de que ele fala como quem dita um livro. Não desejo falar do mesmo jeitinho, mas é de embasbacar e causar inveja que alguém o consiga em português do Brasil. A retórica de Mário Ferreira dos Santos é tudo o que não temos em nossas escolas e, mais do que um modelo a ser seguido – particularmente considero temerário tentar fazê-lo −, é algo para ser admirado pela majestade e originalidade da sua execução. Só um autor com o timbre de voz interior do Mário Ferreira dos Santos poderia fazê-lo. Se um pigmeu o tenta, fica tão ridículo, Sr. Deus dos desgraçados!
Mário Ferreira analisa dialeticamente suas sentenças como um escolástico o faria a seus alunos da Coimbra do século XVII ou da Paris do século XIII, mas ele o faz a brasileiros do século XX, que não o compreendiam minimamente. Acho até que, tirando os padres Stanislavs Ladusãns e Carlos Beraldo e mais uma meia dúzia de três ou quatro…, os jesuítas que o ouviam não o entendiam.
Aprendi com o Pe. Reinaldo Bento que muitos santos fizeram suas homilias aos bichos por não encontrarem ouvidos de ouvir junto aos homens. Assim, São Martinho de Porres pregou aos ratos e São Magnus de Füssen encontrou nos ursos quem lhe pudesse ouvir e entender. São Francisco de Assis pontificou Cristo aos pássaros, que bem ou muito bem o compreenderam. Já Santo Antônio de Lisboa disse: —Ó peixes, meus irmãos, vinde vós ouvir a palavra do Senhor, já que os infiéis fazem dela pouco caso! Assim, com sua língua incorrupta, Santo Antônio de Pádua pregou aos peixes. Mário Ferreira dos Santos (por não ser santo, mas sim brasileiro) pregou às antas, que o não compreenderam.
Por melhor que fosse sua capacidade expressional, sua filosofia era mesmo bastante difícil de apreender, já que não havia nada de similar à disposição. Imagine o leitor cair de paraquedas numa aula do Mário sobre a Matese, como aquelas que deram origem à obra A Sabedoria das Leis Eternas! Porém os que caíram de paraquedas não se fizeram a pergunta onde estou? Seguiram adiante sem perceber mesmo que caíram e sem saber o que são paraquedas.
Felizmente, ficaram-nos os livros, as palestras e os áudios do Mário Ferreira dos Santos. Esse material todo é a vacina de que precisamos contra as doenças de nossa cultura – tanto as da cultura brasileira em particular quanto as da cultura hodierna em geral. Em seu pendor escolástico, Mário Ferreira dos Santos é anti-brasileiro e anti-atual. Aparentemente anti… porque, na verdade, é atualíssimo e brasileiríssimo, ao representar as melhores possibilidades de harmonia dos opostos, que é uma marca profunda do Brasil.
O que foi verdadeiramente o Mário Ferreira dos Santos? —De fato, um filósofo. E digo mais: um filósofo brasileiro, com toda a plasticidade que a palavra brasileiro significa. Não digo filósofo brasileiro como quem dissesse filósofo nascido no Brasil; digo filósofo b-r-a-s-i-l-e-i-r-o como quem quer dizer filósofo dos absurdos confraternizados, filósofo das oposições coerenciadas, devido a sua filosofia viver e superar o drama das contradições, a confraternização dos aparentes absurdos pela revelação da coerência por baixo das incertezas e da certeza da coerência.
Filósofo brasileiro por antonomásia, Mário Ferreira dos Santos não é apenas o filósofo nascido no Brasil, é muito mais o filósofo-jardineiro da Verdade nascida no Brasil, a terra em que “em se plantando tudo dá”: tomismo nietzscheano, aristotelismo platônico, anarquismo católico, tomismo escotista e pitagorismo concreto. Essas combinações, vistas de fora, parecem absurdos. O que é absurdo? Etimologicamente, é o que desagrada ao ouvido. Assim, as combinações filosóficas do Mário destoam do que costumamos ouvir, ver e falar, são sons aparentemente ab-surdos. Contudo, Mário Ferreira dos Santos não pontifica o ruído filosófico aos ouvintes, muito menos a surdez. Com audição apurada, seu pitagorismo —a Filosofia Positiva e Concreta —escuta o tom, a música, a melodia, o sentido onde ouvidos destreinados não ouvem nada. Quem tenha ouvidos de ouvir, oiça! Onde cegos, surdos e mudos dizem absurdo!, abcego!, abmudo! Mário Ferreira dos Santos ensina o que vê e o que ouve quando fala.
A Filosofia Concreta, a Matese Megiste, recolhe verdades alcançadas por filosofias dos mais variados períodos históricos e lugares, dos mais diferentes ciclos culturais e dá a essas verdades uma posição harmônica e integrada em perfeito arranjo. Para alguns incautos, essa filosofia pode parecer uma miscelânea de impossibilidades: como pode ser católico e anarquista, tomista, nietzscheano e escotista?
Fruto de muita imprudência intelectual é a tentativa que vemos em certos grupinhos soi-disant conservadores (ou conservazios, como lata de conserva sem nada por dentro a conservar, estocadores de vento) de montar um tribunal de descanonização do Mário, com base em alguma informação de algum momento de sua vida —pois a certa altura ele foi anarquista, em certo outro momento nietzscheano, talvez maçom, liberal, isso, aquilo e aquilo outro…, mas graças a Deus jamais foi um desses falsos conservadores ー, paralisando o que ele fora em algum momento de sua vida como se tivesse sido aquilo sempre, em todos os momentos de sua vida, eliminando assim o drama de sua existência e de sua filosofia.
Por que os grupelhos neo-tomistas (de garganta) podem abjurar o Mário Ferreira dos Santos? Porque ele não foi neo-tomista, mas muito mais. Por que ele não representa nem mesmo os anarquistas? Porque não era anarquista ao gosto dos anarquistas, mas muito mais. Por que mesmo os conservadores podem odiá-lo? Porque não seguia a cartilha da ideologia conservadora, já que era um filósofo de verdade. Por que os marxistas o detestavam? Porque sua obra é uma operação inconcebível para uma cabeça moldada no materialismo e porque, em termos práticos, ele humilhava os dignitários marxistas em debates.
Mário Ferreira dos Santos foi um eminente brasileiro em sua mente plástica e moldável, em sua criatividade trans-partidária. Desse modo ele nos imuniza contra as ideologias de esquerda ou de direita ou de qualquer matiz que seja e contra os ismos modernos e contemporâneos: ateísmo, agnosticismo, relativismo etc.
Todavia, como certas vacinas que contêm os agentes infecciosos vivos, ao invés de proteger quem a toma, podem lhe causar a doença. Como toda filosofia pode se tornar em seu contrário, a vacina contra a loucura nos pode também ensandecer, como da Bíblia podem surgir interpretações nada bíblicas ou do ateísmo pode brotar uma fé idólatra nos poderes do homem. Assim como o estudo da Teologia também gera ateus, o estudo da Gramática pode produzir profanadores da Língua e o da Lógica pessoas com raciocínio de uma graviola ou uma jaca (e tenho visto…). O estudo da Filosofia do Mário Ferreira dos Santos pode igualmente conduzir ao seu contrário, a Loucura. Em si e por si a vacina Mário Ferreira dos Santos não é garantia absoluta de sanidade, porque carece ser combinada com outros medicamentos naturais —que podem ser outros autores, os mestres da Língua Portuguesa e da Filosofia de todos os tempos —e sobretudo o remédio sobrenatural à loucura dos homens: a loucura de Deus.
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Detalhes do autor
Elvis Amsterdã
Elvis Amsterdã do Nascimento Pachêco, nascido em São Luís-MA em 1982, graduou-se em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão e concluiu mestrado em Ontologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, com a dissertação A Dialéctica-Ontológica de Mário Ferreira dos Santos.
Como professor de Filosofia, trabalhou na própria universidade em que se graduou e também na Universidade Estadual do Maranhão e no Instituto Federal do Maranhão.
Saiba mais: www.elvisamsterda.com.br