Filhos do Tempo (conto)
Por Fábio Gonçalves
— Está aberta esta sessão — sentenciou Horácio Botafogo, o presidente, com sua voz rala e pacífica.
Ao anúncio, todo o bulício das rodinhas, o farfalhar dos figurinos, a mastigação dos canapés, a percussão dos tapas nas costas e o estalar das beijocas, tudo cessou de repente, como se a boca do velho houvesse aspergido no salão uns vapores anestesiantes. Com a exceção dos filmadores e fotógrafos, todos caíram em seus assentos — ajeitando lapelas, conferindo batons, desligando celulares.
A Academia estava lotada. Veio a imprensa, figurões do teatro e da música, sócios do Rotary, banqueiros destacados, ministros da Corte, o prefeito com sua esposa e parlamentares ligados aos lances da cultura e da cidadania.
Contrastava com essa nobreza, na aparência e nos trajes, os convidados da homenageada, que, oprimidos pela chiqueza do lugar e pela pompa da audiência, aprumaram-se nas cadeiras medalhão, na fileira de honra, e simularam com os olhos e a pose uma atenção reverencial.
Diante da mesa diretora, atrás da qual se achavam sete Imortais de cabeça branca e postura cansada, sentava-se com muito decoro, em postura elogiável, a estrela da noite. Horácio lhe fez o encômio:
— É como dizia o acadêmico Aristides Capanema, que nos deixou a todos em incomunicável saudade: “as deusas da arte são netas do Tempo e a ele estão ligadas pelo inquebrantável laço seminal”. É essa inesquecível lição de nosso mestre que os críticos mais rasteiros e o público mais reacionário custam a aprender. O Tempo avança, avança, e arrasta consigo suas Musas. Desde a muitos e muitos séculos elas não se acham em seus vestidos diáfanos, ensaiando danças com fitas e bolas ao murmúrio dos regatos frescos da Arcádia ou do Parnaso. Notem que mesmo a Idade Média, milênio da obtusidade, compreendeu a inevitabilidade da cronocracia e produziu arte conforme os seus caracteres e suas superstições. O Tempo marcha e impõe sobre cada época os seus caprichos, os seus gostos. Foi engano dos humanistas italianos o trazer à consciência moderna, ainda vacilante entre dois mundos, as concepções gregas de arte como se base e padrão para qualquer realização que se pretendesse de bom gosto. O desfile do Tempo, ali, já corria dois milênios adiante. Entretanto, o Tempo é inexorável e avô dedicado: a despeito de os conservadores, jupiterianos de marca maior, tentarem jogá-lo no Tártaro, que é a escuridão, a ignorância, ele segue trazendo consigo, na jornada dos séculos, suas netas, e elas, obedientes, continuam soprando novos ares aos homens sensíveis, àqueles abertos para aspirar o zeitgeist e expirá-lo em música nova, em metro novo, em novas cores, em novas formas. E cá estamos no nosso Tempo, com as inspirações que suas parentas nos reservaram. E eis que tenho a honra de receber, como presidente desta instituição, uma legítima filha das Musas; neta e fiel representante do Tempo: a cantora e poetisa Cléo.
A jovem tomou púlpito com a ajuda de dois acadêmicos. Muitos cliques e ovação. Cicerones e plateia honraram-na com longa e fervorosa salva de palmas. A diva, no entanto, parecia encabulada e até sugeriu com um gesto que sairia correndo, o que deixou a todos suspensos, num silêncio repentino e inquiridor. Mas ao sinal de sua mãe, que a encorajava e como que a orquestrava, ela decidiu-se a ficar; sobretudo quando todos sentaram-se, quietos e aflitos, e acabaram abruptamente com aquela efusão que, para a novata, pareceu menos lisonjeira que constrangedora.
Mais um instante de tensa irresolução. Silêncio entrecortado por pigarros. Ela espichava seus olhos castanhos de um lado para o outro, ofegava, confessava nos gestos algum desespero. Quantos desconhecidos, quantas pessoas em roupas coloridas, quantos cheiros novos… Ela estava com fome e com outras necessidades mais chãs. Talvez fosse a situação. Que estômago trabalharia conforme o hábito diante de auditório tão ilustrado, tão brilhante? Era muito diferente dos seus shows, mesmo dos programas dominicais. Era, afinal, uma solenidade. As solenidades, decalque borrado dos rituais, também exigem dos copartícipes determinada disposição do corpo e do espírito. Era isso, era isso. Cléo deu as costas à assembleia como admitindo-se incapaz de prosseguir. Estava agitada, arfante, olhos arregalados e nariz úmido.
— Clé-éo! Olha aqui, menina! — disse sua mãe. E a filha, como voltando a si, virou-se mais uma vez. Novamente perscrutou a plateia que, na forma de se sentar e de encarar, tentava parecer, à debutante, tanto mais amistosa quanto possível.
Alguns acadêmicos mais velhos cochichavam:
— É normal. Na minha vez, também quase tive um faniquito. E olha que talhei o discurso com mês de antecedência, com ajuda de um orador baiano amigo meu. Proclamava todas as manhãs, na saída do banho, nu. Chegando aqui, na hora de falar aos acadêmicos, um desastre.
— Ela é jovem, meu caro. Deve nos achar criaturas divinas, nomes que só via nas capas dos livros e na lista do vestibular. De repente, cai nossa colega. Já, já, passa a comoção. Mas, aproveitando, meu caro, o senhor sabe se o Vereador Nepomuceno viu aquela nossa emenda. Pergunto porque estou realmente preocupado. Sabe que tive até que voltar aos ansiolíticos? Meu caro, os ordenados de 25 estão comprometidos. Imagine, imagine a vergonha se ficamos sem o soldo, se isso vaza na imprensa. A memória do Machado deve ser preservada de tão negra mancha.
— O Nepomuceno está aí; na hora do champanhe lhe damos um apertão. Eles só funcionam assim. Políticos. Está aí também o ministro poeta. Pode nos conceder o regalo. Bom, parece que a cachorra vai desembuchar. Vamos ver.
A mãe da cantora precisou intervir: foi ao palco, tomou a artista nos braços, fez-lhe carícias e lhe disse motivações ao pé do ouvido. Cléo pareceu depois disso definitivamente preparada para iniciar o seu discurso. Posicionou-se diante do microfone e o ciciado foi se esvaindo, como balão esvaziando. Dali a nada, silêncio, silêncio apreensivo.
Cléo, num arroubo de coragem, pulou de um impulso sobre o púlpito. Fez-se um rumor de admiração. Agora olhava mais firme e até desafiadora aos convivas. A mãe lhe fazia gestos discretos, instruía-lhe. A filha lembrou-se do combinado: postou-se em quatro apoios e virou as ancas para o público, sacodindo o rabo arrebitado de um lado para o outro, num ritmo cadenciado e constante. Os convidados, como aliviados do peso que é a vergonha do alheio, muito maior que a do próprio, aplaudiram como nunca, uma algazarra de assobios e de vivas, uma explosão de gozo.
Uma acadêmica segredou ao vizinho:
— Tenho inveja dessa liberdade animal! Tivesse essa fibra, faria o mesmo!
E gritou:
— E viva a liberdade!
— Viva! — acompanhou o coro.
A alegria geral deu ânimo à artista que doravante conseguiu fazer, com muita destreza, o rolamento, o fingir-se de morta e uns outros sete truques que costumam levar os seus fãs ao delírio. No grand finale, não só declamou sua onomatopeia em versos brancos, que lhe rendera o Jabuti de 24, como, para surpresa de todos — chegou a arrancar lágrimas do Horácio — disse, ineditamente, um soneto em alexandrinos anapésticos — que os especialistas definiram como a perfeita sublimação do clássico no ultramoderno.
Nesse elã, o presidente, só com gestos, pois tinha um nó na garganta, decretou encerrada a solenidade. Aplausos em pé e assobios. O salão nobre foi preenchido por uma bossa instrumental. Os espectadores, parentes e celebridades, formaram fila para cumprimentar a acadêmica, para tirar uma foto. Dali, dispersavam: rodas se formando em torno das figuras mais carismáticas; garçons empenhados; estampidos dos champanhes; tapinhas, beijos, gargalhadas.
Detalhes do autor
Fábio Gonçalves
Fábio Gonçalves é escritor e professor de linguagens. É autor da novela “Um Milagre em Paraisópolis“, do livro de contos “Um Retrato Doente” e do romance inédito “Peroba”, vencedor do Prêmio Literário 200 Anos da Independência.
Também publicou o livro didático “Domine a Arte de Ler”, dedicado ao ensino da língua portuguesa. Em 2022, compôs o júri do Prêmio Fundação Biblioteca Nacional. É pai de dois meninos e vive em Sorocaba com eles e sua esposa, a Ana.
O Fábio tem um poder gigantesco de nos colocar em cada cena descrita e nos fazer imaginar, quase como uma fotografia, às vezes só com um nome, ou somente uma fala, cada personagem e torná-los vivos em nossas mentes.
Muito bom, como sempre! Nem dá mais para chamar de profético porque já tem ares de cobertura jornalística.