Por que nós, escritores, devemos usar as redes sociais
Por Douglas Lobo
A princípio, nada parece mais distante de um mundo literário do que as redes sociais. A estimulação excessiva dos sentidos, o fluxo diário ininterrupto de novos conteúdos, o ritmo rápido, a predominância da imagem sobre a escrita – tudo nelas, enfim, remete a uma sociedade cada vez mais afastada do espaço interior exigido para fruição das obras literárias.
Os traços específicos de uma época ficam mais evidentes se a compararmos com outra. Para atestarmos o efeito do ambiente digital na literatura, não precisamos voltar muito longe: a década de 1980 já evoca um mundo perdido; um tempo em que podíamos, depois das responsabilidades do dia-a-dia, nos recolher em nossos lares e nos dedicar com sossego à vida doméstica. Os riscos de interrupção externa eram mínimos: uma ligação telefônica, alguém a bater à porta, uma correspondência a aguardar leitura. Não havia telas de celulares. As opções na TV eram poucas — mesmo nos canais por assinatura, então no nascedouro. O rádio só tocava as canções escolhidas pelo locutor e, por isso, a atenção dada ao equipamento flutuava ao interesse de cada música.
É certo que, em se tratando de consumo cultural, ainda na década de 1980 já existia o arremedo da sociedade de streaming de hoje. O vídeo cassete e o record player, ao permitirem consumo e gravação de filmes e músicas, respectivamente, foram o início da “cultura sob demanda”, o tipo de serviço que plataformas como Netflix proporcionam nos dias de hoje. Mas essa tecnologia só se tornaria disruptiva a partir da década de 2000. Até a consolidação do ambiente digital, a gravação de músicas e filmes tinha limites (o custo e a memória das “fitas”, bem como o espaço doméstico de armazenamento) e o consumo era pago, nas locadoras e lojas de discos. Vivia-se em um mundo não muito diferente, do ponto de vista de fruição cultural, do que na década de 1950.
Hoje isso mudou. E é inegável que as redes sociais atrapalham nossa vida de escritores. No plano pessoal, são um fator de dispersão, seja por nosso desejo de consumir conteúdo — e isso rouba nosso tempo —, seja porque propicia que amigos e familiares tenham acesso a nós a qualquer instante — e isso rouba nossa concentração.
No plano geral, as redes sociais dificultam a atividade literária devido ao papel cada vez maior que exercem em pautar o debate público, especialmente devido à crise do jornalismo tradicional. Como escritores, é natural que nos interessemos pela sociedade e, portanto, pela discussão pública; corremos assim o risco de retardarmos nossos projetos para darmos atenção aos assuntos em debate nas redes sociais, os quais mudam toda semana. Não se vira um escritor quando se pula de galho em galho, na tentativa de se “atualizar”; a obra literária exige atenção de longo prazo.
Não que a tentação dispersiva do debate público não existisse antes. Mas era diferente. Quando a comunicação de massa se restringia à TV, aos jornais impressos e ao rádio, a própria lógica deles impunha limites a seu consumo: no caso do jornal, lia-se pela manhã ou a longo do dia, de modo que ele não entrava pela noite; no caso da TV e do rádio, a programação jornalística era mínima, com a maior parte da grade horária dedicada ao entretenimento.
Já hoje em dia, a comunicação de conteúdos pelas redes sociais é constante, vinte e quatro horas por dia e com inúmeras opções de plataformas. É natural que isso leve aqueles interessados no debate público a consumir conteúdo em vez de se dedicar a projetos artísticos de envergadura.
De modo geral, as redes sociais trazem o mundo externo a nossas casas. Elas atrapalham assim todas as tarefas que exigem recolhimento e interioridade – como a de escritor.
No entanto – e agora entro no ponto principal –, e se essa impressão não for de todo correta? E se, longe de prejudicarem a atividade literária, as redes sociais forem uma forma de fortalecê-la?
As redes sociais não precisam atrapalhar nossa vida de escritores. Ao contrário: podemos usá-las a nosso favor. Arrisco até a dizer que esteja nelas a semente do resgate do debate literário brasileiro.
Digo “resgate” porque o debate literário brasileiro desapareceu, a partir da década de 1980. Ou melhor: ele se se refugiou na universidade; tornou-se assim assunto de especialistas — e a literatura, objeto de estudo acadêmico.
Até a década de 1970, o debate literário brasileiro acontecia nos jornais. Era a época da “’crítica de rodapé”, que levava esse nome porque ficava no rodapé das publicações. Toda semana, grandes críticos literários comentavam os lançamentos editoriais, em uma efervescência cultural que tratava as obras literárias como algo vivo, e não artefatos a serem dissecados por experts. Esse ambiente intelectual, somado à alta qualidade dos livros publicados então, transformaram as décadas de 1930, `40 e `50 em uma era de ouro da literatura brasileira.
Essa época acabou quando a crítica de rodapé, por motivos que tentei explicar em outro espaço, desapareceu. O debate literário se refugiou na universidade, onde as obras literárias se tornaram objeto de estudo e, nisso, restritas a estudantes e professores. A discussão literária entre intelectuais públicos deu lugar à divulgação de notícias sobre o mercado editorial, à resenha jornalística e a perfis de autores famosos, em especial estrangeiros.
Felizardos assim os escritores das décadas anteriores à de 1980: desfrutaram do privilégio de terem seus livros comentados pelos maiores intelectuais que o Brasil já teve.
Já os escritores surgidos a partir da década de 1980, não tiveram suas obras apreciadas por grandes críticos. Os livros deles não geraram discussão. Toda uma geração de escritores caiu na obscuridade, até…
… a emergência do ambiente digital, a partir da década de 2000.
Reflitamos: não seria a explosão da internet, dos blogs e, mais tarde, das redes sociais o retorno ao antigo ambiente das redações de jornal?
Sob o risco de soar otimista demais, digo que as condições de divulgação do escritor brasileiro contemporâneo são melhores que a dos escritores da geração anterior, condenados que foram ao limbo.
Longe de mim, claro, defender que o ambiente blogs e redes sociais esteja à altura das redações de jornal em que resplandeciam os grandes críticos do passado. Mas talvez estejamos, como escritores, numa situação melhor do que aqueles que publicaram nas décadas de 1980 e ´90. Com todas as restrições que se lhe apliquem, temos um espaço onde se pode ter um debate literário, às vistas do público, longe dos muros da universidade.
Talvez seja melhor para nós, escritores, aceitarmos as redes sociais. Sei que muitos de nós não gostamos de “produzir conteúdo” (eu inclusive). Mas o fato é que temos uma vantagem em relação à geração anterior. É chegada a hora de pararmos de romantizar o passado e usar as ferramentas do presente para – quem sabe? – construir uma nova era de ouro da literatura brasileira.
Detalhes do autor
Douglas Lobo
Douglas Lobo é romancista, jornalista, dramaturgo e ator teatral.
Nasceu no interior do Piauí em 1977. É autor do romance “Areia Movediça” (Danúbio, 2021).
Reside e trabalha em Fortaleza (CE)
Concordo plenamente. Os primeiros livros que escrevi foram digitais, publicados em marketplaces e editoras. O avanço da tecnologia e a inclusão digital nos permitiu a possibilidade de alcançar públicos impensáveis. É bem verdade que algum saudosismo nos consome, mas os tempos mudaram. Hoje é possível estabelecer um público, expor o trabalho e ganhar mais notoriedade através das redes.
A faca corta o pão e mata. O uso determina o caráter mais do usuário do que do instrumento. Assim também as redes sociais. As letras dependem do valor que se dá ao pensamento mais elaborado. Nas últimas décadas, assim como o universo, a burrice coletiva se expandiu em velocidades astronômicas. As redes sociais são apenas a sua manifestação mais óbvia.
Concordo e subscrevo cada palavra, meu caro.