Entrevista (conto)
O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu amo… Iona anima-se e conta-lhe tudo…
(Anton Tchekhov)
O sinal abriu, mas Carlos só se deu conta quando o motorista de trás deu dois toques na buzina, fazendo-o arrancar de súbito, maquinalmente. Estava longe… imaginava-se naquele momento numa sala muito iluminada, numa mesa oval com tampo de vidro, em frente a uma mocinha que fazia anotações. Ali parado no semáforo, Carlos pensava no que deveria fazer com as mãos naquela ocasião, naquela sala iluminada, em frente à mocinha, pensava na postura do tronco, no que deveria dizer, e, principalmente, no que não dizer…
— Calor hoje, né? Aqui no visor está marcando 31, mas ouvi agora há pouco no rádio que a sensação térmica…
— Oi? Falou comigo? Desculpe, estava com o fone… — respondeu a voz que vinha do banco de trás.
— Ah, sim, não quis incomodar…
Silêncio. No rádio toca uma balada antiga, e Carlos suspira. A viagem termina.
— Obrigado, tenha uma boa tarde.
— Boa tarde, bom trabalho.
A porta bate, o aplicativo apita, e com um toque na tela do celular Carlos aceita mais uma corrida, e vai ao encontro do décimo sexto passageiro do dia: Janice dos Santos.
— Boa tarde, quer uma balinha?
— Amigo, não vai reto, não, pega aqui pela Visconde Guarapuava que é mais rápido.
— Certo, a senhora que manda, mas eu conheço bem a região, e nesse horário é melhor dobrar n…
— Vai pela Visconde, ok?
— Está bem, a senhora que…
— Senhora não, ok, que senhora tá no céu.
— Pois não, dona Janice. Me desculpe, não quis…
Carlos recolhe-se, suspirando. Teme que uma nota baixa dada pela passageira Janice dos Santos o impeça de obter o nível Gold. Precisa agradar os passageiros, ser simpático. Precisa de notas altas, precisa ser Gold para ser elegível às corridas mais bem remuneradas…
— Disse que conheço a região porque trabalhei aqui na Alameda Santos, mas isso faz muito tempo já, na Cooperativa que tinha ali na esquina com a Visconde, não é do teu tempo, você é nova, trabalhei ali logo depois de me formar em administração, entrei como escriturário…
— Meu senhor, pode ir mais rápido? Tô em cima da hora pra uma reunião, ok?
— Pois não, dona Janice…
— Sou advogada. Doutora Janice, por favor.
Passando a mão pelo cabelo suado, o nosso herói puxa o ar com sofreguidão, mas a respiração anda curta ultimamente e o ar não vem. São as contas atrasadas, as entrevistas de emprego cada vez mais raras, o cansaço, o calor, a doença da esposa… E Carlos suspira, procurando no rádio alguma coisa que o faça esquecer um pouco sua realidade, uma notícia de Brasília que seja, qualquer coisa que o entretenha por um minuto, e o faça esquecer…
Uma corrida pula na tela. Um passageiro no alto da rua XV, com destino à Universidade Federal. Lá vai Carlos.
— Boa tarde.
Silêncio.
— Quer balinha?
— Não, obrigado.
Silêncio. “Chegamos”, “tchau”, “boa tarde”, “bom trabalho”. Dentro do carro estacionado numa viela transversal, à sombra de um chorão, Carlos imagina-se entrando num prédio espelhado… agora está na sala de espera. Está bem vestido, calça social ou de sarja, bege, camisa azul clara, paletó… Uma mocinha o chama, ele entra, senta–se, e começa a entrevista: “— Vi pelo seu currículo que o senhor é formado em Administração de empresas”… “— Sim, turma de 1985… após me formar, trabalhei na cooperativa…” Carlos discorre, articulado, concatenando idéias, falando do que sabe, do que viu, do que viveu, do que fez ao longo de toda a vida, da sua experiência… A mocinha ouve, está impressionada, e o Carlos da entrevista pensa: “serei contratado!…”
O sol se põe no horizonte, entrevisto aqui e ali por entre os prédios da Avenida Marechal Floriano. Carlos está há dez horas ao volante.
Súbito o aplicativo estrila, e entram três rapazes, universitários. Estão alegres, falantes, riem, caçoam, estão voltados para a vida, confiantes na vida. São estudantes de engenharia.
— Boa tarde — saúda o nosso motorista —, ou melhor, boa tarde não, boa noite né, já passou das 18. Balinha, água?
— Opa, valeu.
— Pra Universidade Federal, né?
No banco de trás uma algazarra: um dos marmanjos tinha dito não sei o quê sobre uma tal Camila, colega da turma, que tinha feito com ela não sei o quê na última festa, qualquer coisa enfim, que tinha muita graça, pois que o trio explodiu num riso convulsivo.
– Eu me formei na Federal também — diz Carlos —, mas não em engenharia, em administração de empresas, faz tempo já, turma de 1985. Logo arrumei emprego na Cooperativa Agroindustrial, conhecem? Pois então, entrei como escriturário, mas fui promovido logo, sabe como é, promovido por mérito, naquela época tinha plano de carreira, hoje não sei como é, mas cheguei ao nível C13, e em menos de 5 anos já ocupava o cargo de…
— Fala ai pra nós, tio, e as menininhas, as cocotinhas, rola muita oportunidade, né?
— Na cooperativa?! — respondeu o pobre Carlos, sobressaltado.
— Que cooperativa, irmão, do que você tá falando? — Risos estrondosos. — Aqui no carro, pega muita menininha, rola uns xerecard, fala pra nós?
— Não, não, imagina, não tenho mais idade… sou casado… — ia respondendo assim, mas súbito mudou de rumo, temendo desagradar os rapazes e receber uma nota baixa por ser tão moralista. — Tem, sempre, tem né, como você disse, sempre tem uns xerecard he he! — Carlos não sabia o que era xerecard, mas precisava ser simpático, precisava do nível Gold. Estava com dois aluguéis atrasados.
Quando estacionou em frente ao prédio da Universidade Federal, no firmamento esmaecia o poente, sob um céu pardo e tristonho. Os passarinhos faziam alaridos aninhando-se nas árvores do passeio. Despontavam as primeiras estrelas. Carlos estava com fome.
Tocou nova corrida: o passageiro pedia um carro na sede do Banco do Brasil da Praça Tiradentes. Quem entra desta vez é um homem de terno e gravata, de uns 40 anos, cabelo preto cortado em degradê, penteado com gel, barba cerrada, perfumado, que falava ao celular: “— …o motorista chegou, beijo, até…”
— Boa noite – seu Álvaro, né?
— Isso.
— Uma balinha, seu Álvaro?
— Não, obrigado.
É hora de trânsito lento e pesado no centro da cidade. Carlos passas as estações, procurando algo, qualquer coisa… No rádio, um comentarista político esgoela-se, enfurecido, “Não passarão! Não passarão! Canalhas, golpistas! A extrema-direita…”
— O senhor quer que mude a estação? Quer que abaixe o volume?
— Se puder desligar, agradeço.
— Chega de serviço por hoje, seu Álvaro?
— Oi? Falou comigo?
— Chega por hoje… o senhor trabalha ali, no banco?
Subindo o vidro, o passageiro pede para ligar o ar condicionado.
— Sim, sim, trabalho.
— Já fui bancário…
E Carlos passava então a compor a cena recorrente na sua imaginação: uma sala iluminada, mesa oval, uma moça jovem do RH que faz perguntas e o olha amiúde por sobre os óculos, enquanto rabisca uma folha de papel…
— Tô aqui no aplicativo até me recolocar… Trabalhei mais de dez anos no Bradesco. Cheguei a gerente de contas pessoa jurídica…
— Ah é, olha só, bacana… — O passageiro de vez em quando levantava o olho do celular e fitava o motorista pelo retrovisor interno.
— Saí na crise do subprime de 2008. Bah, aquele ano foi terrível pro setor, não é? Teve corte adoidado. Depois, trabalhei com vendas, máquinas de refrigeração industr…
“— Mãe, precisa passar na lavanderia, não vou conseguir chegar a tempo, você faz isso pra mim, por favor?” — diz o passageiro numa mensagem de áudio.
— Desculpe… Foi bancário então, seu Carlos? — perguntou, desinteressado, sem tirar os olhos do celular.
— Pois é. Chegamos. Boa noite, seu Álvaro.
Estacionado em frente ao prédio onde Álvaro desembarcara, à luz baça do interior do veículo, ao som de um Nick Cave que cantava Into My Arms — Carlos comeu uma banana e fez a contabilidade do dia: abriu o aplicativo na aba “ganhos”, anotou o faturamento, dividiu pela quantidade de horas trabalhadas. Em seguida calculou os gastos com combustível — havia rodado 206 quilômetros —, e chegou à conclusão de que teria de trabalhar um pouco mais. “Trabalharei ainda um pouco mais”, disse para si mesmo.
Nisso despontou na esquina em meio à treva silenciosa, luminoso e barulhento — o caminhão de lixo. Dois mulatos atléticos uniformizados davam saltos, feéricas piruetas no negrume circundante, equilibrando-se um pouco na carroceria para logo em uns metros à frente tornar a pular, com a habilidade de acrobatas, aos gritos e assobios, recolhendo os sacos que se amontoavam nas calçadas.
A tudo isso assistiu Carlos, de dentro do seu carro, reflexivo. Os dois lixeiros riam! Pareciam felizes… — Seriam mesmo felizes? Quem é que sabe quantos aluguéis atrasados, quantas esposas doentes, quanto choro, quanta briga conjugal, quanta traição, desconfiança, culpa, frustração, quantos dramas íntimos não escondem em casa aqueles que riem pelas calçadas, pensou consigo. Ele mesmo não estava risonho e falante hoje à tarde, simpático, dissimulando por entre conversa fiada suas angústias? Quantos passageiros hoje não o tomaram por um bonacheirão motorista de praça, e no entanto, se soubessem…
O aplicativo estrilou, e Carlos emergiu de suas divagações.
— Trabalharei ainda um pouco mais — sussurrou, resignado.
Naquela noite Carlos realizaria ainda mais cinco ou seis corridas antes de ir para casa. Por volta da meia noite, o nosso herói adentrou o quarto do casal, palmilhando vagarosamente. Persignou-se diante do crucifixo e tentou ajoelhar-se à beirada da cama para rezar, mas uma aguda dor na lombar prostrou-o, e Carlos tombou lentamente ao lado da esposa, que ressonava. Rezou deitado mesmo. Mal terminou as orações de costume e com a bruma do sonho Carlos já se via numa sala muito iluminada, uma mesa oval, diante de uma mocinha que anotava…
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Detalhes do autor
Luiz Cezar de Araújo
Nasceu em Palmas (PR) em 1981. Formou-se em Direito.
É autor de dois livros de prosa ficcional: A Vida é Traição (2014) e À Sombra do Pai (2017). Editou o volume O Remédio é a Crítica, coletânea de textos não-ficcionais de Machado de Assis, publicado em 2015 pela Editora Concreta.
Excelente repaginação do tchekhov.
Excelente!