Drama humano e transcendência

13, dez, 2021 | Artigos | 0 Comentários

 
Este texto é um trecho do livro Transcendência & História, de Glenn Hughes, publicado em 2018.
 
Por Glenn Hughes
 

GRANDE PARTE da cultura contemporânea, tanto popular como intelectual, nos instiga a concluir que o universo físico e temporal corresponde ao conjunto total da realidade. Todas as principais religiões e tradições de sabedoria do mundo baseiam-se, é claro, precisamente na convicção oposta: a de que a realidade última transcende o universo finito; que ser humano é estar envolvido nessa transcendência divina; que implicitamente — e é possível sê-lo explicitamente — estamos sempre cônscios dessa realidade transcendente; e que a realização humana implica a voluntária aceitação e desenvolvimento de nossa relação com o eterno e inextingüível fundamento da existência. O Tao chinês e o Brâman dos Upanishads hindus são últimos que existem para além do mundo da dualidade e da compreensão humana direta. O mesmo vale para o Deus-Criador do judaísmo, do cristianismo e do islã. Entre os filósofos, a realidade  transcendente é reconhecida e afirmada nos escritos de Confúcio, Platão, Aristóteles, Plotino, Shânkara, Tomás de Aquino, Maimônides, Descartes, Pascal, Locke, Rousseau, Kant, Hegel, Emerson, Kierkegaard e Jaspers. Uma verdade de natureza transcendente é uma premissa elementar para Newton, Goethe, Jefferson, Thoreau, Tolstói, Einstein, Gandhi e Martin Luther King Jr. Contudo, na maior parte dos círculos acadêmicos e intelectuais de hoje, e dentre muitos dos cultos e educados, as noções de transcendência são rejeitadas como ingênuas ou retrógradas, e o reconhecimento da verdade transcendente é considerado uma recusa implícita da razão crítica e do progresso intelectual.

Três causas dessa generalizada atitude moderna contra a transcendência são facilmente identificadas. Primeiro, ela é uma reação à implacável recorrência histórica de guerras e abusos nascidos da intolerância religiosa, baseados em concorrentes alegações de posse exclusiva de uma verdade sagrada absoluta sobre o significado transcendente último e o destino humano. Segundo, é uma conseqüência do impacto da ciência moderna sobre a imaginação popular, e da aceitação generalizada do pressuposto de que o método empírico das ciências naturais é a única base confiável e racional para determinar se algo é real ou se uma proposição é verdadeira. E terceiro, ela reflete o desenvolvimento da sensibilidade histórica na era moderna, que traz consigo a suspeita de que, estando a compreensão humana sempre imersa numa situação historicamente particular, nós só podemos fingir que falamos de uma verdade que transcende essas limitações.

[…]

A desconfiança e a resistência modernas em relação à transcendência tiveram, inevitavelmente, um impacto no modo como sentimos e pensamos sobre a noção de uma narrativa humana unificada, uma noção que nos vem tão naturalmente. A própria idéia de uma humanidade universal continua tranqüilamente em voga no discurso contemporâneo, mas as tentativas de discutir o conteúdo do drama humano — de sugerir a trajetória narrativa da história humana englobante, ou o seu enredo significativo — costumam causar desconforto, consternação, ou flagrante desaprovação. Mesmo a metáfora do “drama humano” pode, quando expressada diretamente, causar hesitação, porque, na imaginação cotidiana, aquilo de que muitos de nós sentimos ser participantes não é tanto um drama unificado quanto um emaranhado em grande medida acidental de vidas privadas e de culturas irreconciliavelmente diversas.

Esse sentimento é às vezes explicado em termos de um colapso dos mitos compartilhados. Se uma das principais funções do mito é criar solidariedade comunitária pela percepção compartilhada de uma narrativa humana em comum, então parece justo dizer que os grandes mitos culturais do Ocidente tornaram-se, em sua maioria, inúteis. Nossos corações não os aprovam; eles são muito variados, e nós, muito céticos quanto às suas origens e propósitos. A tendência na vida contemporânea é acreditar em diversas afirmações incompatíveis. Narrativas das tradições judaica e cristã acotovelam-se ao lado de imagens da física newtoniana e da filosofia cartesiana, e estas são acompanhadas por visões iluministas de progresso, veneração romântica pela Natureza, ciência darwiniana e psicologia freudiana, de modo a produzir um quadro rico, porém incoerente, da narrativa humana, que só vagamente pode ser chamado de cosmovisão. No início do século passado, em “The Waste Land” (1922), T. S. Eliot descreveu nossa situação: o nosso panorama do universo e da história é o panorama de “uma pilha de imagens quebradas”.

Esse caótico senso do drama humano foi evocado por ilustres artistas ocidentais do século passado. Os retratos fragmentados de Picasso, as estatuetas espremidas e isoladas de Giacometti, os dramas e romances de desolação de Beckett, as óperas dissonantes de Berg, e os destroços de citações reunidos na poesia de Eliot e Pound — só para mencionar uns poucos exemplos famosos, mas dificilmente obsoletos — atestam o nosso desconexo senso do cosmos e da história, ainda que também a criatividade, e mesmo exuberância artística, que consegue descobrir novos mundos na desintegração do antigo.

Os artistas fizeram seu trabalho esplendidamente, mas, na melhor das hipóteses, eles nos forneceram mitologias privadas. E por mais que essas mitologias sejam confortadoras para quem saiba apreciá-las, elas não são substitutas para os mitos públicos que, de forma segura, orientam uma cultura em relação às ultimidades e mistérios do universo e da história. Aquilo que o artista eleva ao patamar de mito privado, o resto de nós tende a sofrer como privações — para cada um, uma narrativa fundamentalmente pessoal, mergulhada em conformidades culturais, mas talhada na solidão e, caso problemática, submetida ao psicoterapeuta.

 
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Detalhes do autor

Glenn Hughes

Glenn Hughes, nascido em 1951, é professor de filosofia na St. Mary´s University, em San Antonio, Texas. Ele é membro do Eric Voegelin Institute e autor de vários livros sobre filosofia publicados nos Estados Unidos.  

Autor do livro Transcendência & História