Dono de Casa (conto)

13, set, 2023 | Artigos | 47 Comentários

Por Samuel Freitas

 

Quem já empunhou uma enxada sabe que há mais poder curativo no capinar de um pedregoso roçado do que em qualquer confortável divã à meia luz. Encalecer as mãos traz suavidade à alma.

Experimenta varrer uma calçada em silêncio no alvorecer, como os sábios de outrora, e verás. Contudo, cada um tem sua enxada particular, ou doutor de preferência. Eu escolhi lavar a louça, ao invés de me atentar ao ensinamento dos coaches, por exemplo. Limpar pratos é excelente terapia. Além de ser, é claro, uma atividade que ratifica o acordo matrimonial contemporâneo e sua lei previamente estabelecida em Artigo Único: “O cônjuge sob incumbência da preparação de quaisquer refeições estará isento da responsabilidade da limpeza dos utensílios, peças e instrumentos utilizados para esse fim. O encargo da higienização recairá ao consorte não atuante no procedimento. Salvo acordo prévio entre as partes”.

Com base nele, assumi estoicamente a função de não cozer um ovo sequer. E se, porventura, for inevitável fazê-lo, mesmo assim devo arcar com o compromisso preestabelecido por mim mesmo: a lavagem de todo material requerido no processo.

— Mas precisa sujar tanto? — Queixei-me à minha esposa, quando estacionei na cozinha com nosso filho no carrinho de bebê.

— Estou sujando o de sempre, oras! — Clarinha respondeu, dando de ombros, consciente do excesso.

— Claro, não é você quem limpa.

— Lógico, não é você quem cozinha.

— Por que não usa a mesma panela em que fez o macarrão pra preparar o molho? E pra que tanta colher suja pra fazer um bendito molho?

— Não era você quem gostava de lavar a louça? Tá reclamando de quê?

—Tô reclamando da bagunça toda. Só não suja mais porque não tem mais o que sujar. Olha só essa pia, Clarinha. Não cabe nem mais uma faca suja!

— Não me estresse, Fabinho! Vou acabar é queimando o almoço por sua culpa.

Aperfeiçoar o modus operandi do trabalho doméstico não é pedir demais. Pelo menos, assim o creio. E é precisamente em ocasiões como esta que compreendo aqueles que veem a inutilidade de se lavar um talher que será utilizado novamente em breve; e acabam deixando-o por ali, encostado, em stand-by, descansando na beirada da pia.

Mas Clara via nessa minha pequeníssima admoestação uma injusta reprimenda ou uma egoísta tentativa de amenizar a minha tarefa futura. Duplamente errada estava. Ver pia, fogão e cozinha naquele caos me causava um desconforto terrível.

Ela entenderia melhor o meu lado se reparasse bem em algumas de minhas manias. Não sei bem se lhe passou despercebido ou se ela dissimulara a própria percepção diante dos meus singelos transtornos obsessivos. Transtornos, sim, embora nenhum médico me subscreva diagnóstico psiquiátrico, pois a nenhum consultei. Atesto sofrer de simples excentricidades, e assim e me dou por satisfeito. São trivialidades da vida de qualquer um que preze o mínimo de arrumação: alinhar as roupas por cores, as frias à esquerda, neutras ao centro, quentes à direita; manter os objetos equidistantes e dispostos em ordem decrescente da parte central para as bordas do móvel em que estejam repousados; acomodar os animais de brinquedo na estante do quarto de meu filho em arranjo evolutivo das espécies, dos anfíbios aos mamíferos… Enfim, somente sou organizado.

Mas aqui estou agora vendo todo esse escombro de Babel na pia implorando interferência divina. A única forma sensata para aliviar minha coceira cerebral é volver as costas ao lavatório antes que enlouqueça. Fiz a cadeira dar meia volta.

— Clarinha, e o seu plantão?

— Daqui a uma hora. Já deixei as coisas do menino separadas pra você.

— E ele já mamou?

— Ainda não. Dê a mamadeira assim que terminar de lavar os pratos, que já tá quase na hora dele tirar um cochilinho. Eu espero você acabar antes de ir para o hospital.

Nicolas, assim o batizamos, nosso pequenino primogênito. Um belo e melodioso nome. Clarinha quem escolheu. Sempre quis pôr um nome com força sonora retumbante, talvez um Ajax ou Adônis, quiçá um Apolo. Porém a potência dos nomes ficou aquém da robustez dissuasiva da negação veemente da mãe. Diante das opções de deuses, heróis e personagens mitológicos, acabei por acatar a única sugestão feita por ela. Pelo menos do nome restou a sua origem grega. Fiquei consolado.

Nosso pequenino contava quase dois meses, precisamente cinquenta e dois dias, de bênçãos em nossas vidas. Éramos marinheiros inexperientes num cruzeiro cobiçado por ambos, com recursos bem modestos, mas, com felicidade transbordante. Ela, enfermeira, e eu, professor particular. Tínhamos que adaptar nossos horários para que nos fosse possível o revezamento nos cuidados do garotinho durante essa belíssima primeira viagem.

Quando já estava por adiantado o meu serviço doméstico obrigatório, só restando os talheres para concluir, ouvi:

— Tô pronta. Vai demorar muito ainda?

Clarinha, com o bebê no colo, apressava-me sua saída.

— Estou terminando de limpar a pia.

A herança de ensinamento materno é um imperativo categórico automatizado. Ai de mim se não concluir a higienização da pia após a lavagem da louça. Seria outra comichão cerebral não o fazer. Fui devidamente educado que o abandono da pia suja e encardida após lavar os pratos era o mesmo que atestar o completo descompromisso para o trabalho bem-feito, devidamente realizado. Testamento de incompletude de atos. Atitude relapsa certificada.

Cada detalhe na assepsia teria que ser realizado com afinco, tudo apropriadamente lustroso e limpo. Não restar uma gota orvalhada no inox, nem uma mancha no granito. Concluído. Findaram-se, concomitantemente, a tarefa e minha terapia vespertina. Principiaria, agora, o expediente paterno de zelar pelo meu filho.

Assumi o posto, já municiado da mamadeira e engatilhado com a playlist musical para o acalento do pequerrucho. Despedi-me de Clarinha e lhe desejei um bom serviço, sem contratempos e fatalidades, e um retorno em paz ao lar onde a aguardaríamos saudosos, seu amado filho e esposo querido.

— Chegarei amanhã de manhã, se cuidem! Amo vocês.

Eram palavras de despedida tão lindas. Continham uma promessa, um pedido cauteloso e uma declaração amorosa, tudo que precisávamos para suportar a ausência dela. Nicolas me olhava enquanto sorvia sua refeição pré-soninho, com o olhar inquieto dos que se maravilham com curiosas descobertas e a inocência do fascínio diante do inesperado e inimaginável. Qualidades que vamos perdendo com o passar dos anos, e tentando reconquistar com o fim dos dias.

Olhos vivos e atentos, duas pequenas lagoas de castanho amendoado com orlas esverdeadas; belos olhos puxados da mãe; já o olhar era o mesmo do pai. Na TV, a tocar, estava uma seleção de músicas aleatórias ao piano, das eruditas mais conhecidas às modestas e impopulares. Tomei-o nos braços para embalar seu sono, ritmando as idas e vindas num embalo compassado. Cheguei a considerar que a cadência de uma valsa fora composta enquanto alguém ninava um rebento seu, e a leveza no valsar surgira do relaxamento no tronco quando não enfim se constata o sono da cria.

Era esse instante com meu filhinho destinado às abstrações reconfortantes. Deixei-me ser acalentado pelo som do piano, enquanto ninava Nicolas nos meus braços. Momento exclusivamente nosso. Assim fui indo, nas asas da sinfonia. Senti-me transportado à lembrança de um sonho que tivera, não há muito tempo. E me encontrei, de repente, ao pé da ladeira que levava à casa do meu – hoje, falecido – inesquecível avô.

Apertei o passo o máximo que pude, tentei correr com toda minha força até lá. Mas não saía do lugar. A gravidade nos sonhos age numa física estranha e diferente. Persisti no avanço como se travasse luta contra um tufão, enfrentando a correnteza dos ventos. Consegui progredir. Chegando à soleira, com a porta aberta em boas-vindas, aprumei a vista para o interior e lá encontrei meu vovô, meu primeiro mestre e exclusivo mentor.

— Vovô? — Interroguei o espectro.

Tinha consciência de que era tudo um sonho e que poderia se transformar num terrível pesadelo a qualquer momento. Todavia, lá estava ele, o velho Seu Gabriel, cachimbo ladeado no beiço, quase caindo, e sentado na gasta cadeira de balanço com juncos cor de argila, num embalo norte-sul, como um antigo peregrino que atravessa um deserto qualquer montado em seu camelo.

Abracei seus joelhos, senti o calor das lágrimas da saudade inundando minha face. Há uma década vovô tinha nos deixado.

— Queria tanto o senhor aqui, vovô — Comecei meu desabafo, ainda agarrado aos seus joelhos — Tudo que o senhor me ensinou, absolutamente tudo, fez-se útil para mim. Mas me faltou recompensá-lo, em vida, a merecida gratidão pelo homem que me formei graças ao senhor. E, a cada dia, meu querido vô, é uma habitual tentativa feliz de ser digno de sua memória, de sua descendência, de sua honra. Converti-me esposo, um bom marido; o mais companheiro que meu esforço constante permite, mesmo assim, ainda menos que minha esposa realmente merece. Hoje sou pai também, um pouco menos paterno do que gostaria e um tanto mais do que esperaria sinceramente sê-lo; mas, um pai merecedor da distinção desse nome, assim o creio. Sentiria orgulho de mim, eu sei. A maçã não cai longe da árvore, e essa aqui rendeu belos frutos. Vovô, eu sinto tanto a sua falta! Da paz na sua voz grave, do abraço quase uterino, desse sorriso amarelado e brilhante que igual nunca vi, dos seus cabelos grisalhos e finos e de sua maneira doce de transmitir muitas verdades.

Senti sua mão esquerda tocar o meu ombro, e com a outra em concha recolher para si meu rosto. Tomou-se forma física a completa quietude em mim. E falou pausadamente olhando para dentro de minha alma:

— Alegre-se, rapazinho. Com você está tudo aquilo que na vida se precisa.

Não recordo bem se o sonho acabara por ali, mas da frase não esqueci. Poderia vê-la escrita em qualquer lugar ou dita por outra pessoa em qualquer outra situação, porém seria sempre reproduzida à voz de meu querido avô, no recanto mais acolhedor do meu coração.

Pois então, ali, na sala, ao término de uma composição de Ludovico Einaudi, quando, enfim, acordado me descobri, abri os olhos e fitei demoradamente meu lindo e querido filho, adormecido como os justos, na esplendorosa forma dos anjos. Desabrochou nele um miúdo sorriso no cantinho dos lábios. O primeiro sorriso do Nicolas que presenciei. Não cabia em mim de tanta alegria e felicidade. Coloquei o pequeno no berço junto com o sorriso que ainda nele persistia, e com olhos marejados sussurrei suavemente enquanto lhe acariciava o rostinho:

— Papai realmente tem tudo o que precisa na vida aqui com vocês, meu filho.

 
 
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Detalhes do autor

Samuel Freitas

Nasceu em Tupanatinga (PE) no ano de 1985; atua como Bombeiro Militar nas Alagoas. Autodidata. Bacharelando em Direito na UPE, Campus Arcoverde, onde atualmente reside com esposa e filho.