Do Culto do Ego ao Culto de Lúcifer: a Modernidade Satânica

14, ago, 2024 | Artigos | 3 Comentários

 

Por Cesar Ranquetat Jr. 

Em uma zona rural localizada no munícipio de Gravataí no Rio Grande do Sul, no dia 9 de agosto, foi instalado um monumento insólito. Trata-se de uma estátua de Lúcifer com mais de 5 metros. A obra custou cerca de R$ 35 mil reais, de acordo com o Mestre Lukas de Bará da Rua, integrante da Nova Ordem de Lúcifer na Terra. O espaço foi  inaugurado oficialmente no dia 13 de agosto, com a realização de um estranho cerimonial.

No interior da casa de madeira amarela, próxima a estátua, onde fica o templo desta organização, há uma série de imagens e símbolos ocultistas pintados no assoalho e um altar na qual se distribuem imagens de diferentes demônios, como Lúcifer, Baphomet e Astaroth.

O mestre da Nova Ordem de Lúcifer afirmou que:

“o templo contará com uma estátua do anjo caído e será palco de rituais de ‘demonolatria’ e prática de alta magia negra, em conformidade com os princípios da instituição”.

Nada mais explícito.

Segundo os integrantes do culto, a controversa estátua acinzentada procura simbolizar a dualidade entre mundo material e espiritual, por isso é metade esquelética, com um chifre na lateral da cabeça, e a outra metade com feições mais “humanas”. O objetivo, segundo os autores, é que a figura funcione como uma espécie de “portal” de energias durante a realização de rituais. Ainda de acordo com os membros desta ordem, este será o maior templo dedicado a Lúcifer no Brasil. A ordem conta com 100 membros em todo o país. Cerca de 80 são do Rio Grande do Sul. As reuniões do grupo acontecem duas vezes por mês. Os membros também participam de grupos de estudos. Fazem parte da ordem unicamente pessoas indicadas por quem já é membro.

Tudo isto parece no mínimo bizarro e exótico. O fato é que um acontecimento como este suscita muitas questões. Desde uma discussão sobre o problema da laicidade e da liberdade religiosa no Brasil até uma reflexão acerca da expansão de práticas satanistas.

Desde uma perspectiva jurídica e sociológica, podemos ver em tal evento algo que demostra de maneira inquestionável a deriva da laicidade e as consequências últimas de uma liberdade religiosa que, ao fim e ao acabo, permite a constituição de organizações e de espaços simbólicos que se configuram como um desafio e um ataque à religião que fundou nosso país e que se constitui a religião da grande maioria do povo brasileiro. Pergunto: a liberdade religiosa e a laicidade foram instituídas para possibilitar a afronta, o desrespeito e a profanação das crenças cristãs tradicionais? Se a resposta for sim, a decantada laicidade moderna pode facilmente ser transformada em um instrumento não apenas de institucionalização do ceticismo, mas de normalização do satanismo. Não é por puro acaso que nos últimos anos multiplicam-se as iniciativas que visam erigir em locais públicos e privados estátuas e outros tipos de representações simbólicas de entidades demoníacas, sem citar a profusão de alusões a figuras satânicas na grande mídia, em filmes e em apresentações musicais enquanto, simultaneamente, verifica-se a retirada de cruzes, crucifixos, bíblias e outros símbolos cristãos de espaços públicos.

A construção de um monumento à Lúcifer, visto como um anjo rebelde, um demônio na teologia cristã, não deixa de ser um ato de profanação e um insulto contra a fé majoritária do nosso povo. Ora, o núcleo central do satanismo não residiria justamente no prazer pelo sacrílego e pela blasfêmia?

É evidente que esta estátua não foi erguida para finalidades de ordem espiritual, para elevar os corações e enobrecer as almas, há a uma intenção “oculta” e anticrística por detrás disso. Um símbolo como Lúcifer não é pouca coisa.

Lembro que há em todo símbolo uma função agregante e uma função excludente. A primeira das propriedades tem o escopo de unir os membros de uma comunidade, enquanto a segunda separa e divide aqueles que não se reconhecem em determinando símbolo. Isto deriva da própria etimologia da palavra símbolo, originário do grego sy-ballein, significando reunir, colocar junto. Contudo, o mesmo símbolo pode ter também um caráter diabólico, no sentido original grego de dia-ballein que significa dividir, separar.

A ostentação de um ícone ou monumento em determinado local produz efeitos, endossando valores específicos. O símbolo de Lúcifer não apenas representa alguma coisa, mas também diz algo, influenciando de forma direta ou sutil condutas e comportamentos. É uma realidade que possui um poder, tendo a capacidade de afetar os indivíduos, além de transmitir uma mensagem específica. Os símbolos são, em geral, vetores de ação social. São representações visíveis do invisível, tornando presentes e tangíveis em uma forma icônica princípios, normas, concepções e sentimentos. O ato prenhe de significado de erguer uma estátua do anjo rebelde obedece a um desenho, a uma intencionalidade que seguramente não é das mais excelsas e benévolas.

Não é uma surpresa que a simbólica do demoníaco e o crescimento de organizações satanistas estejam ganhando um estranho destaque nas últimas décadas. O espírito da modernidade está marcado em sua essência por aquilo que o filósofo  Emmanuel Lévinas definiu como egolatria. A exaltação do ego, do indivíduo concebido como um fim em si mesmo, vincula-se com a ruptura do humano com o princípio transcendente. Neste sentido, a modernidade pode ser entendida como uma constante afirmação do indivíduo, de sua subjetividade e de sua vontade. Egolatria esta que conduz ao culto daquilo que é contrário a ordem da criação e ao rechaço do sagrado.

Por isto, os dois símbolos que melhor representam o homem moderno são o de Prometeu e o de Lúcifer. Prometeu representa o arquétipo da emancipação do eu de qualquer princípio de ordem superior, ou melhor, aquele que ao contrário de Hércules não busca transcender o homem no divino, mas submeter o divino às exigências do homem. Por sua vez, Lúcifer simboliza a inversão de toda hierarquia sagrada, a queda no sub-humano, no infernal, no demoníaco; assim como a abertura a influências sutis destrutivas e o espírito de rebeldia contra a ordem divina da criação. Este representa o reino do homem que se separa de Deus e que anseia ser como Deus.

A recusa moderna da transcendência, cujo traço central é a egolatria,  tem como consequência extrema o luciferismo, isto é, o desejo de salvar a si mesmo e de se divinizar sem o auxílio da Graça santificante. Não é um exagero afirmar que o satanismo é a religião do eu, do fechamento no casulo do ego, que destruindo qualquer ponte com o divino, arrasta o indivíduo para o caminho do obscuro e do tenebroso.

Da egolatria moderna ao culto de Lúcifer a distância é pequena. O semelhante atrai o semelhante. O culto do eu leva ao culto do obscuro.

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Detalhes do autor

Cesar Ranquetat Jr.

Cesar Ranquetat Jr. é Graduado em Direito, Mestre em Ciências Sociais pela PUC-RS e Doutor em Antropologia Social pela UFRGS.
Atualmente é professor na área de Ciências Humanas na Universidade Federal do Pampa/Campus Itaqui-RS.
Publicou pela Editora Danúbio os livros “Da Direita Moderna à Direita Tradicional” e o recém lançado “O Livro Negro do Mundo Moderno“.