Cortando as Garras da Esfinge
Este texto é uma resenha do livro “René Guénon Revelado“.
Por Renan Rovaris
Nunca li René Guénon. Não por medo de ser enganado ou convencido — na verdade, tendo a ser atraído por leituras que ameacem mudar a maneira como penso —, nem por falta de interesse: como qualquer brasileiro, fui apresentado a ele por Olavo de Carvalho, que não perdeu tempo em alertar sobre os perigos escondidos na obra do tradicionalista francês. E acontece que minha atenção estava direcionada a coisas que me eram mais urgentes aprender.
Vez ou outra, pegava-me a folhear A Crise do Mundo Moderno, especialmente após a leitura de Submissão, de Michel Houellebecq, onde Guénon aparece citado num contexto em que o Islamismo serviria como sucessor do Cristianismo para a salvação do Ocidente, uma religião mais simples e, por isso mesmo, de mais força contra a modernidade. Minha leitura porém, nunca se concretizou. Mas Guénon insistia em dar as caras nos livros que eu selecionava. Foi o caso de War For Eternity, de Benjamin Teitelbaum.
Por algum tempo, perseguiu-me a impressão de que, apesar de sua animosidade mútua, suas acusações e seu debate — promovido por ninguém menos que um grande admirador de Guénon (e, conjecturemos por algumas de suas declarações e confissão religiosa, possível frequentador de turuq) — perseguiu-me a impressão, dizia eu, de que Olavo de Carvalho e Alexandr Dugin eram de certa forma parecidos. Havia algo nas palavras desses dois intelectuais que parecia-me sair de uma fonte comum, um mesmo pressuposto primordial, um entendimento semelhante sobre o cosmos e a realidade. Quando — não me lembro bem por qual razão — topei com o livro de Teitelbaum na Amazon, aguardei ansiosamente por seu lançamento: War For Eternity prometia explicar-me a relação daqueles dois, mesmo que o foco do livro fosse um terceiro homem, Steve Bannon, que curiosamente viu em Olavo e Dugin dois possíveis aliados à sua guerra contra a modernidade. Pois lá estava ele novamente, René Guénon, dessa vez dando as caras como aquele que, dito de maneira grosseira, figurava no passado e na formação intelectual de um neo-eurasianista russo com influência no Kremlin, e de um filósofo brasileiro que iniciou sua jornada espiritual passando muito perto do Islã e da tariqa de Frithjof Schuon, mas terminou a vida como católico fervoroso. Ficava claro para mim que, cedo ou tarde, eu precisaria enfrentar as garras da Esfinge se quisesse entender melhor o que andava lendo.
René Guénon Revelado foi uma dessas leituras despretensiosas. Não dei grande importância quando de sua publicação — talvez por culpa daquela falha grave programada no leitor brasileiro, que, do alto de sua superioridade imaginária, insiste em não se importar com autores nacionais pouco conhecidos. Há algumas semanas, no entanto, procurando curar a ressaca da leitura de romances diversos e palavrosos — e acometido por uma daquelas ondas de curiosidade para saber quem diabos era e o que pensava René Guénon —, resolvi dar uma chance ao rapaz desconhecido, e baixei a amostra Kindle. Victor Bruno fisgou-me a atenção ainda nas primeiras páginas, tanto por sua escrita, quanto por, logo de início, apontar aquilo que se quer varrer para debaixo do tapete dos círculos olavetes: Olavo de Carvalho foi aluno de René Guénon. Claro, o autor usa a palavra “aluno” de maneira solta — Olavo nunca estudou com Guénon pessoalmente, é óbvio —, mas talvez essa única afirmação de Victor Bruno tenha sido suficiente para deixar alguns cabelos eriçados no meio da nova direita brasileira — e também para suscitar algumas críticas rasas contra seu livro e sua escrita.
Não quero dizer com isso que o livro esteja livre de problemas de redação; eles existem, sim, mas tais falhas são meros erros (ou falta) de revisão. Victor Bruno parece escrever rápido, rápido demais, às vezes engolindo algumas sentenças — típico, talvez, de quem possui uma capacidade de raciocínio acima da média —, mas acontece que esse tipo de problema poderia ser sanado passando-se um bom pente fino no texto. Culpa do escritor? Da editora? Não sei. Uma segunda edição mais cuidadosa, porém, encerraria o caso e calaria as críticas de quem não consegue superar um deslize de dedo no teclado, e sai por aí gritando “Que burro! Não sabe nem escrever, e quer falar sobre assuntos de elevadas alturas metafísicas.” Diminuir o valor do livro apenas porque seu autor comeu algumas letras e engasgou-se com uma frase aqui e ali — especialmente um autor novo como Victor — é apologética boba de quem não gostou de ler o que leu. Tolice a minha imaginar que já havíamos superado essa bobagem por parte de quem quer ressuscitar o debate intelectual no Brasil — ou algum de vocês já viu os manuscritos de Guénon para saber se ele dava muito trabalho à editora? Até poucos séculos atrás, não havia nem mesmo forma fixa de grafar todas as palavras. Victor Bruno sabe escrever.
O autor aponta, com citações extraídas da obra de Olavo de Carvalho, como o filósofo via em Guénon uma autoridade em assuntos religiosos, e como, anos mais tarde, abandonou-o para voltar-se definitivamente ao catolicismo. Victor não ignora o afastamento de Olavo do pensamento de Guénon, mas ele também não quer ignorar que houve muita influência de Guénon na obra de Olavo, coisa que os alunos deste último insistem em diminuir ou fingir que não viram. Medo do Kali Yuga? Quem sabe. A reação deles, no entanto, ainda é compreensível: como sérios católicos convertidos pela influência do professor, jamais aceitariam flertar com o perenialismo guenoniano, e é muito desconfortável admitir que Olavo de Carvalho nem sempre foi plenamente cristão como no fim de sua vida — basta perceber como, em sua aula sobre a filosofia islâmica (do curso História Essencial da Filosofia), Olavo insinua (para dizer o mínimo) que o Alcorão é um livro sobre-humano.
Após uma biografia com cerca de oitenta valiosas páginas, Victor Bruno inicia sua exposição das ideias de Guénon. Por vezes, é preciso admitir, as opiniões do autor parecem misturar-se com o pensamento a ser exposto, e não se sabe ao certo o que vem de Guénon e o que vem de Victor. O autor propôs-se a entregar uma explanação com um ponto de vista neutro, sem amar nem odiar Guénon, mas a impressão que tive é a de que Victor expõe o tradicionalismo desde dentro — nada de demérito aqui: o favorecimento do tradicionalismo pelo autor é equilibrado e de valor, especialmente para o contexto atual em que vivemos. Aqueles que buscam uma crítica à ideia de Tradição já estão bem servidos por Sedgwick.
Quando se coloca a interpretar algumas passagens bíblicas, no entanto, Victor parece ir um pouco longe demais — digo isso desde uma perspectiva de alguém que aprendeu a ler a Bíblia através do método histórico-crítico, procurando descobrir o que o autor queria dizer com o que escreveu — um método, é necessário salientar, que pode não ser de grande interesse para quem busca símbolos tradicionais escondidos na Bíblia. Um bom exemplo do que quero dizer está na página 142, onde afirma-se que “É significativo que a palavra sânscrita para ‘casta’, varna, também pode significar ‘cor’. Isso nos remete à túnica de várias cores que Israel dá ao seu filho mais novo, José (…). A túnica, assim como a sociedade hierarquizada e organizada pelas castas, são um símbolo da riqueza do cosmos” — novamente, não fica claro se tal afirmação é de Victor ou de Guénon. Além de tomar alguns textos mitológicos como literais e históricos (como faz com o relato do Éden e da criação dos céus e da terra), o autor faz uma ligação entre duas palavras em idiomas distintos — e em textos separados por anos-luz de distância — para chegar a uma conclusão que parece ser um claro non sequitur: o presente dado a José representa nada mais que o favoritismo de seu pai, o que piora a situação do filho perante os irmãos mais velhos, fazendo-os forjar a morte do rapaz e vendê-lo como escravo. Ainda, vale notar que, no original hebraico, a expressão traduz-se literalmente por “túnica de palmas”, isto é, uma túnica que alcança a palma das mãos e a ponta dos pés, diferente de uma túnica comum, que não possuía mangas e chegava apenas aos joelhos. A expressão “túnica de muitas cores” (ou “colorida”) é derivada da tradução — errônea neste caso em particular — do Antigo Testamento para o grego koiné do período helenista (a Septuaginta), passando posteriormente pela Vulgata Latina (tunicam polymitam). Para mim — talvez por ignorância sobre o método utilizado por Victor para interpretar a passagem —, o raciocínio do autor sobre o texto bíblico não tem base alguma na realidade. A respeito disso, fico com o que disse Dale C. Allison Jr. em The Historical Christ and the Theological Jesus:
“(…) eschatological language does not give us a preview of coming events but is rather, as the study of comparative religion teaches us, religious hope in mythological dress. Narratives about the unborn future are fictions, in the same way that narratives about the creation of the world are fictions. The end is like the beginning. Genesis is no historical record of the primordial past, and the New Testament offers no precognitive history of the eschatological future. The New Jerusalem, the last judgment, and the resurrection are, just like Eden, the serpent, and Adam, theological parables. We must interpret them not literally but as religious poetry, which means with our theologically-informed imaginations. (…) Given this, all we can do is what Jesus and the early Christians did: project present religious experience and faith and theological reflection onto the longed-for future — just as the authors of Genesis projected their religious experience and faith and theological reflection onto the imagined past.”
A grande controvérsia do livro, contudo, parece residir no fato de que Victor Bruno contradiz o famoso artigo “As Garras da Esfinge”, ao atrever-se a insinuar que Guénon não queria islamizar o Ocidente coisíssima nenhuma — nem tampouco destruir a Igreja Católica. Digo controvérsia, porque a maioria dos leitores de René Guénon Revelado serão os próprios alunos de Olavo de Carvalho — quantos, além desses e uns poucos geeks perenialistas do ICLS, comprariam um livro sobre Guénon no Brasil? —, e ousar não concordar com Olavo quando o assunto é René Guénon (e muitos outros) causa um alvoroço desgraçado. Mas Victor Bruno ainda faz coisa pior: afirma que René Guénon pode ajudar o católico brasileiro a voltar a ter fé, e deixar o exoterismo do catolicismo moderno para voltar-se à tradição real da Igreja. Quanto a essa controvérsia, não tenho muito a dizer: não conheço o tema suficientemente para contribuir com algo que valha a pena ser escrito nesta resenha. Leiam o que Olavo e Victor têm a dizer — leiam Guénon! —, e decidam por vocês. Para mim, o autor parece católico, mas talvez algum leitor iluminado venha a nos revelar que Victor faz parte do plano guenoniano para acabar de vez com o que restou do catolicismo brasileiro e islamizar nosso país.
René Guénon Revelado é um livro muito válido, especialmente por tratar-se de uma obra escrita no Brasil, e por um jovem autor com um futuro que parece prometer muito: ele verdadeiramente leu o que se propôs a explicar, coisa rara hoje em dia neste país em que bacharéis iletrados escorrem pelas paredes feito água. Contudo, é preciso aproximar-se do livro de Victor Bruno com as expectativas calibradas: não se pode esperar que um autor iniciante (como muitos de nós) entregue uma obra-prima logo na largada, principalmente no contexto de intelectualidade quase inexistente em que nos encontramos por aqui. Mesmo assim, René Guénon Revelado representa algo especial: eis que, quando ninguém esperava muito, vem à luz um livro sobre um tema de grande aporte intelectual — publicado em português, por uma editora brasileira! Victor Bruno suscitou — Deus o queira — o início do que talvez possa se tornar finalmente um debate intelectual sério dentro de uma direita que ainda não produziu grande coisa além de jornalismo de mídia social e cursos caríssimos. Da minha parte, iniciei enfim a leitura d’A Crise do Mundo Moderno.
Detalhes do autor
Renan Rovaris
Renan Braz Rovaris é formado em Teologia pela Escola Charles Spurgeon, Fortaleza/CE, e em Inglês pelo Newbury College, Reino Unido. Atualmente, atua como escritor e redator de temas ligados à religião, teologia e política. É autor do livro “Apocalipticismo e Novo Testamento: Visões Celestiais, Política e a Vinda do Reino de Deus”.
Me é honroso tal leitura com esse nível de abordagem invulgar!