Chespirito, o pequeno Shakespeare

22, mar, 2023 | Artigos | 0 Comentários

 

Por Milton Gustavo e Wilson Franck Júnior

Um garoto bochechudo vestido de marinheiro aparece no pátio de uma vila humilde, de paredes descascadas. Ele pigarreia e exibe um objeto. Um objeto que pode ser uma bola, um churro, uma raquete de ping-pong, um patinete, enfim, qualquer coisa… Essa cena povoou a infância de mais de uma geração. Nós a assistimos, inocentemente, centenas de vezes. Porém, longe de ser um inicio banal para um episódio de um programa infantil, ela aponta para uma percepção aguda sobre o comportamento humano.

Essa cena, como tantas outras que marcaram nossa infância, foi escrita e dirigida por Roberto Gomez Bolaños (1929–2014), dramaturgo e ator mexicano, falecido no último dia 28 de novembro. Além do humor característico, há nas tramas que envolvem as personagens do seriado Chaves, uma boa dose de inveja, de ciúme e de rivalidade. Foi por isso que o diretor de cinema Augustín Delgado apelidou Bolaños de Chespirito, o pequeno Shakespeare. Nada mais acertado. Roberto Bolanõs teve intuições geniais sobre as relações humanas e conseguia revelá-las de forma tão simples que até as pequenas crianças se maravilhavam. Simples e complexo, o seu gênio consistia em fazer o profundo emergir à superfície; o oculto revelar-se à luz do dia. Chaves é profundamente revelador do mimetismo presente em nosso desejo, e por isso nos identificamos, de um modo ou de outro, com os personagens daquelas historinhas aparentemente superficiais.

René Girard infelizmente não escreveu sobre a obra de Bolaños, autor que teria lugar no canône romanesco que começou a ser delineado em Mentira Romântica e Verdade Romanesca (1961). Tentaremos aqui, humildemente, analisá-la à luz da chave interpretativa fornecida pela teoria mimética de Girard.

Nos episódios de Chaves, ou, no original, El Chavo del Ocho, exibido pelo canal 8 do México entre 1971 e 1979, os ciclos de violência originam-se a partir da rivalidade em torno de um objeto. Em geral esse objeto entra em cena nas mãos do personagem Quico, que o exibe no pátio para Chaves, e às vezes para Chiquinha. Quico quer ocupar o papel de modelo do desejo, mas ele próprio é um modelo demasiadamente mimético, que precisa constantemente da aprovação dos outros. No início dos episódios, Quico quase implora para que os amigos desejem o que ele possui, para assim confirmar seu próprio desejo. Os demais personagens, claro, respondem à provocação. Em pouco tempo, o objeto torna-se para os personagens uma pedra de tropeço, levando-os a cometer uma série de trapalhadas. Muitas vezes, Chaves termina batendo em Quico, que chama D. Florinda: “Mamãe! Me bateu!”. Esta, desavisada, bate em Seu Madruga, pensando estar se vingando da pessoa certa. Seu Madruga devolve a violência para Chaves. Em outras vezes, Chiquinha bate em Quico (com seus potentes chutes na canela), e o mesmo esquema se repete. A violência retorna para Chaves, o mais vulnerável. O ciclo se interrompe quando Chaves não se vinga. D. Florinda, por sua vez, vale-se de sua condição para agredir sem medo de represálias. Por vezes pode acontecer de Chaves, ao tentar com violência tomar o objeto de Quico, acertar por engano o Seu Barriga, o rendeiro e dono de toda a vila.
O esquema da violência pode se repetir com algumas variações. Mas o que tem isso de fundamental? A violência em Chaves tende ao caos. A vila vive uma crise perpétua da hierarquia, do Degree shakespeariano como comentado por Girard em Teatro da Inveja. Não há autoridade. Todos são iguais. Pobres, ricos, decadentes, idosos, desempregados, crianças. Os objetos estão em perpétua disputa: são de todos e, por isso mesmo, de ninguém. Não há Estado, e por isso não há fonte externa de violência que interrompa o ciclo interno de retaliações. Não existe monopólio da vingança: ela é de todos e de ninguém. Quem mais se aproxima de uma figura externa aos conflitos é Jaiminho, o carteiro preguiçoso que não sabe andar de bicicleta, que no entanto seria incapaz de encerrar o conflito. Por não haver ritos ou qualquer mecanismo que permita a contenção e expulsão da violência interdividual, se a vila fosse um lugar de verdade, seus moradores provavelmente matar-se-iam uns aos outros. Nesse ponto, o pequeno Shakespeare teria muito a ensinar àqueles que pretendem exonerar os indivíduos de sua responsabilidade pessoal para atribuí-la às estruturas de contenção de violência. Bolãnos é mimético demais e, por isso, nada ingênuo a esse respeito: a vila do “Chaves” é o retrato bem humorado do homem em estado de natureza, um estado de permanente guerra (mimética) de todos contra todos.
Porém, as intuições de Bolaños sobre o desejo vão ainda mais longe. Há uma terceira e mais rara variante para a cena descrita anteriormente. Em alguns episódios, Chaves dissimula seu desejo: ”Eu não queria mesmo…”, repete. O desdém do rival faz com que Quico também se desinteresse pelo objeto e o abandone. Induzido ao erro, deixa de desejá-lo. Quico vai embora e Chaves se apossa do objeto. O dono original, porém, quando descobre o estratagema, volta a desejá-lo, e a violência reacende!

Temos ainda os em que é Chaves quem designa o objeto de desejo. Ele aparece jogando uma bola de trapos, ou usando um bilboquê improvisado. Quico então o imita, conseguindo versões mais sofisticadas do mesmo objeto, que, por sua vez, serão alvo de desejo por parte de Chaves. Chaves mais uma vez se vale da dissimulação. Deixa de lado seu simples brinquedo, e Quico, que só possuía a versão sofisticada para rivalizar com Chaves, imita o gesto. Mais uma vez, Chaves furtivamente se apropriará do brinquedo de Quico…

O modelo torna o objeto tão mais desejável quanto mais tenta protegê-lo dos desejos alheios; o obstáculo que esse modelo impõe ao rival só acende o seu desejo. Quanto mais inacessível é o objeto, mais ele é desejado. A “bola quadrada” dos episódios do Chaves é justamente esse objeto inacessível, o suprassumo do desejo mimético. Como uma espécie de Santo Graal do desejo, todos a querem, mesmo sem conhecê-la! Desejam-na apenas e porque os outros a desejam. Cada um alimenta o desejo no outro. Bolanõs, como os grandes mestres da literatura universal, sabe que as coisas não têm valor em si, mas sim o valor que nós emprestamos a elas. Nesse ponto, ele teria muito a ensinar àqueles que reduzem o valor dos objetos exclusivamente ao custo de sua produção, ou que compreendem as relações humanas, a violência, o crime e a pena, meramente a partir das condições materiais ou econômicas de uma dada sociedade.

A mesma lógica mimética também se aplica às relações pessoais. Façamos duas indagações aos fãs da série: Dona Florinda já desejou seu Madruga? Chiquinha já desejou o Chaves? A resposta é: sim! No episódio em que Gloria e Paty vão morar na vila, Bolaños mais uma vez mostra com maestria a estrutura triangular do desejo. Chaves e seu Madruga, encantados pelas novas vizinhas, e pela possibilidade de serem seduzidos por elas, tornam-se atraentes para Chiquinha e para D. Florinda, o que não ocorreu em nenhum outro episódio. O mesmo acontece de outro lado, quando o galã Hector Bonilla quebra seu carro em frente à vila. As mulheres, até mesmo a Bruxa do 71, quer dizer, Dona Clotilde, passam a ser mais valorizadas. Como que num passe de mágica, a rivalidade mimética transforma o que antes era um desprezo quase total em quase fascínio.
É possível que Bolanõs tenha chegado a essa sutil compreensão da natureza imitativa do desejo por ter vivido na pele o “desejo pelos olhos do outro”. Quando casou-se com Florinda Meza, a atriz que viveu Dona Florinda, ela já havia sido namorada do ator Carlos Villagrán, o genial intérprete de Quico. Isso foi motivo para que os atores contracenassem por mais de um ano sem se falar.

Porém, se Chaves mostra os mecanismos do desejo e da violência, também mostra como escapar deles. Chespirito, pela boca de Seu Madruga, filósofo cristão, ou quiçá estoico, nos dá duas simples receitas, que ele mesmo não consegue seguir, mas que podem nos ajudar a sair dos conflitos: “a vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena” e a que é ainda mais eficaz — e por isso mesmo a mais difícil de seguir: “as pessoas boas devem amar seus inimigos”.

 

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Milton Gustavo

Milton Gustavo Vasconcelos á autor de “o Deus oculto no canto do córner”. Trabalha como advogado criminalista em Teresina-PI. Em 2023, vai publicar o seu primeiro romance.