Cenas e Retratos do Cotidiano
Por Rodrigo Duarte Garcia
Este texto foi publicado como prefácio do livro de contos “Verdades e Mentiras”, de Tiago Amorim, que será publicado em agosto/24.
Imagem: Óleo sobre tela, Saulo Pfeiffer.
No terceiro volume do seu imaterialmente sublime “Histórias fantásticas brasileiras — 1922-1955, tigres e muralhas”[1], Jorge Luis Borges lembra o prefácio de Conrad em “A linha de sombra”[2] para dizer que, se a própria realidade é insondável e misteriosa, no fim todo autor de ficção está sempre também contando histórias fantásticas — mesmo quando escreve de maneira realista sobre o mundo.
A apreensão dessa qualidade metafísica da existência — que não tem nada de propriamente religiosa — talvez seja mesmo o denominador comum a todo grande artista. E, de certa maneira, também o elo que une os quinze relatos de Verdades e mentiras, segunda coletânea de contos de Tiago Amorim (depois do excelente Eu vi um unicórnio morto e de seus livros de ensaios, Abertura da alma, Por que não somos felizes?, e O coração do mundo).
Como em pinturas holandesas do “Século de Ouro”, Tiago cria – com algumas exceções interessantíssimas, é verdade — cenas e retratos de um cotidiano ordinário, mas sempre iluminados pela cosmovisão extraordinária desse imenso respeito ao mistério: são evocações da memória e oportunidades perdidas à visão de procissões que passam na televisão (Semana Santa em Granada); segredos de amores proibidos explicitados em velórios (E assim se passaram os anos); lembranças de uma mãe velhinha, violada e assassinada brutalmente (Sozinha); despedidas fugazes em aeroportos (Trânsito); a ansiedade de uma noiva no dia do casamento e sua dúvida sobre o eventual comparecimento do pai afastado (Era uma vez uma noiva); o estalo de consciência que atravessa, gelado, um médico-legista ao examinar o corpo nu de determinado cadáver (O corpo); a espera e os preparativos para o encontro com um amor de juventude, muitos anos depois (Penélope)…
Enfim, premissas diretas e simples, mas sem nenhum, absolutamente nenhum simplismo. Ao contrário, há nelas impressões psicológicas e morais tremendas, retratadas por meio de imagens que de fato transcendem o microcosmo de cada cena e de cada situação imaginadas. Como em No interior de Goiás, em que uma prostituta — afundada até o pescoço na pior degradação — segura ao final essa florzinha de plástico e, talvez intuindo alguma possibilidade de redenção: “Lenta e profundamente, sugou todo e qualquer aroma que ali houvesse — e ficou triste”. Ou em Antes, quando mãe e filha conversam sobre a relação difícil entre as duas, “naquele tom de quem é obrigado a amar” — a filha que fugia de casa para se convencer “de que a vida era boa, muito melhor quando ninguém sabe da gente, ou das nossas impurezas, dos nossos medos”. E a imagem bonita de “órfãs imperfeitas” (Manguezal do Norte), para se referir a duas meninas vivendo sob a ausência de um pai apenas presumidamente morto. Ou ainda a última visão que a filha tem da mãe viva, em Sozinha: “parada no meio da rua, olhava para o próprio carrinho de compras e, as costas arcadas, conferia cada item selecionado, as pessoas em volta, passando dos dois lados, mas minha mãe absorta, apartada de tudo, parecendo sozinha”.
Os contos de Tiago Amorim mostram muitas dessas imagens, traduzindo sutilmente a complexidade metafísica que de fato existe em instantes simples da vida, fugidios por natureza mas expandidos no tempo pela obra de ficção. Como em toda boa literatura, as intuições de Verdades e mentiras no fim amplificam a existência: tornam também nossos aqueles pequenos egoísmos, vergonhas e violências, mas ainda os vislumbres de alegrias e impulsos por redenção – às vezes até involuntários — que os seus personagens experimentam.
E esses personagens são criados por Tiago com detalhes justos, exatos. Nos grandes autores, são mesmo esses detalhes que permitem ao leitor efetivamente enxergar aquelas pessoas que se movem ao longo das páginas, tão vivas quanto as que encontramos na rua. Como não ver — de fato ver — o homem com “mania de pigarrear ao final das frases e pôr o dedo indicador na frente da boca, o dedo assim, dobrado feito um ganchinho, como se pedisse desculpas por pigarrear” (em Antes)? Ou a mulher que reza o seu terço, dizendo “o amém mais baixo do que o verso anterior, então amém, amém, do jeito que podia rezar, com muito ar, com pouca vida, a palavra puxando o queixo para dentro” (de E assim se passaram os anos)?
É sob a sensibilidade desses pequenos detalhes que as grandes obras ganham vida, e Tiago Amorim os pinta — e suas cenas — sempre com lirismo comovente, longe de qualquer pessimismo niilista. Há, ao contrário, uma melancolia desassombrada e leve, acompanhada de muitas réstias de luz. E, não sei, talvez em razão disso é que as histórias de Verdades e mentiras — para lembrar a frase batida de Cortázar — não passem o sentimento dos nocautes por meio dos quais os contos nos vencem, em oposição aos romances e suas vitórias por pontos. Tiago representa emoções contidas, essenciais, também a natural impossibilidade de resolver definitivamente todas as situações e conflitos, mas jamais, jamais, de maneira abrupta. Não há mesmo brusquidão nenhuma, mas apenas a suave exatidão que exigia Faulkner dos contos, ao nesse sentido aproximá-los da poesia. Uma exatidão suave, e artisticamente prazerosa.
A crítica não costuma se ocupar muito desse aspecto essencial da literatura — o prazer que as obras causam —, mas no primeiro volume daquelas mesmas “Histórias fantásticas brasileiras”, Borges também menciona, com muito charme, que a leitura não deixa de ser uma forma de felicidade. E que, se isso é mesmo verdade — e é verdade, é verdade —, todo conto deveria conter em potência essa felicidade da maneira mais concentrada e essencial possível. Bem, ao tornar também nossos os instantes e os personagens das quinze histórias que seguem nas próximas páginas — suas alegrias e misérias, abismos e fachos de claridade —, é justamente essa pequena felicidade que nos deixa Verdades e mentiras. E o que mais poderíamos desejar?
[1] Encontrei por acaso os três tomos encadernados, num sebo de Ouro Preto.
[2] “O mundo dos vivos já contém suficientes maravilhas e mistérios sendo como é; maravilhas e mistérios agindo sobre nossas emoções e inteligência de modos tão inexplicáveis que quase justificariam a concepção da vida como um estado de encantamento”.
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Detalhes do autor
Rodrigo Duarte Garcia
Autor do romance “Os invernos da ilha” (Record, 2016) e de “Os flamingos” (no prelo); foi articulista e membro do Conselho Editorial da revista Dicta&Contradicta (2008-2013).