Caixa de Bombons (conto)
Tempo de leitura: 10 minutos
Por Samuel Freitas
— Minha mãe sempre dizia: a vida é como uma caixa de bombons. Você nunca sabe o que vai encontrar.
Fica difícil chegar às Olimpíadas e ganhar a medalha de ouro se não tenho como manter meu treinamento em casa. Faltam-me bolinhas brancas, uma grande mesa verde, um penico prateado. Tentei substituir por outra coisa, mas não me deixam ou não dá lá muito certo. As bolinhas de outras cores que tirei da betoneira do caminhãozinho não pulam como deveriam. Na mesa da cozinha a mamãe só me deixa usar para merenda, ainda por cima é transparente e quebra fácil. Nem a panela que peguei pra pôr no canto serve pra testar a pontaria. Reclamo! Grito, até me cansar de doer o pescoço. Não me ouve. O papai me entenderia. Tenho uma raquete vermelha e duas bolinhas brancas, só. Adoro essa cor vermelha. Tem o cheiro do parquinho do Centro e a textura do banquinho em que gosto de me balançar. Será que vou conseguir conhecer o presidente se fizer o treinamento só com as paredes daqui de casa?
— Minha mãe sempre dizia: a vida é como uma caixa de bombons. Você nunca sabe o que vai encontrar.
Não posso tirar o sofá grande nem o pequeno. Não tenho forças. Mamãe não deixa. Despautério! Papai pediu para eu não falar nomes feios. Não acho feioso o nome “putaquepariu”, é bonitinho. Igual à “jabuticaba”, só não deve ser tão doce nem ter carocinho. “Despautério” parece mais com “bubônica”, enche a boca quando a gente fala. Papai falou que é mais educado dizer “despautério” que nomes feios. Duvido muito, mas deixo estar. Despautério, mil vezes! Como vou rebater a bolinha pra parede se tem um monte de sofás na sala impedindo meu esporte? É a única coisa que me restou: o pingue-pongue! Não tenho aparelhos nas pernas pra dar potência quando for meter corrida (só tenho nos dentes, mamãe diz que é pra endireitar, não os deixa mais fortes), além do mais, só de andar assim na pontinha dos pés já me cansa as batatas das pernas. Não tem nenhum moço pra tocar violão pra eu dançar, papai canta bem e a mamãe dança sempre, até sem música. Minha bola de futebol é redondinha demais e em nada se parece com aquele ovo do time vermelho do homem corredor, não dá pra eu jogar (insistem para que eu chute o que não é pra chutar. O certo é agarrar e sair em disparada pra longe). Ir pra guerra, mamãe proibiu. Não posso ser pescador de baratinha do mar, sou alérgico. Não encontrei em nenhum canto um amiguinho feito o Bubba, uma pena, pois ele não me abandonaria, já que mamãe ia proibi-lo também de ir pra guerra. E as menininhas daqui não são bonitas como a Jenny, mas aposto que não responderiam minhas cartas também (às vezes é bom não saber escrever). Só me restou a raquete, as bolinhas, a parede e o sonho das Olimpíadas.
— Minha mãe sempre dizia: a vida é como uma caixa de bombons. Você nunca sabe o que vai encontrar.
Papai saiu e deixou o carro. Na parede da garagem dava certo. Não acredito nisso! E agora? Despautérios, mil trilhões! Ah! Vou bater no carro, quero nem saber, a mamãe tira as coisas da frente quando faço isso. Que barulho! O carro está berrando pra mim. Oh, na minha cabeça tem agulhas cutucando por dentro. Pára! Vou tapar os ouvidos, não tem jeito. Está perfurando tudo por dentro. Preciso berrar mais alto pra calar a zoada do carro. Porra! Digo: Despautérios, infinito dos infinitos! Vontade de chorar, me dói muito a cabecinha. Está me machucando como faz o liquidificador da vovó. Não ouço meu pensamento. Grito mais, mais… Me sacudo! Me sacudo! Me sacudo!
— Charles! Charles! Guilherme corre aqui! É o Charles!
Papai não tinha saído. Estava na área de serviço lá no fundo de casa brincando com as ferramentas dele.
— Arrrrgh! – está tudo confuso dentro de mim.
— Amor, desliga o alarme do carro. Ele entrou em crise, deve ter se assustado com o barulho — papai chegou perto de mim.
— Onde está a chave?
— Em cima da escrivaninha.
O estrondo parou lá fora, o bagunça continuava aqui dentro. Me balanço. Não consigo parar. Preciso me organizar. Pra lá grito, pra cá respiro. Pra lá grito, pra cá respiro… me larga! Não quero! Desgruda! Vou bater em você papai, não quero que me toque! Vai doer mais ainda. Preciso balançar, preciso acalmar o barulho em mim pondo com toda força essa confusão pra fora.
— Calma campeão! Mamãe já desligou!
— Arrrrrgh!
— Papai tá aqui. Ei! Não pode bater no papai, você se machuca assim. Já conversamos sobre isso.
— Vou pôr uma musiquinha aqui pra ele sossegar — mamãe chegou com o celular.
— Venha com o papai, Charles. Tá vendo? É o piano.
Por que me prende nos braços? Por que não me deixa aqui quieto? O som do carro misturava todas as peças e tenho que montar tudo de novo. Despautérios! Vou morder você, duvida? Me ponha no chão que tenho pernas, não sou o Tenente Dan!
— Olha pro papai, meu filho. Lembra do seu quadro de rotina? Olha ele aqui.
— Arrrrgh!
— Tá vendo aqui? Esse é você. Tá vendo? Primeira regrinha: Tenha os braços… calma rapazinho… tenha os braços perto de você. Vamos lá!
— Vamos lá meu filhinho, ouça o papai. Muito bem!
— Aqui, olha pro papai! Calma, calma. Eu sei que o alarme do carro irritou você. Papai e mamãe estão aqui pra ajudar a afastar essa raiva, tá bom? Sei que está bravo e desorientado, mas precisamos fazer isso juntos, tá certo?
— Estamos aqui pra apoiar você. Logo, logo, tudo irá se tranquilizar, meu anjo.
— Vamos respirar fundo com os números, vamos?
— Arrrgh!
— Um!
— Respira!
— Dois!
— Isso, bem fundo!
— Três!
— Arrgh!
— Quatro!
— Muito bem!
— Tá se sentindo melhorzinho?
— Responda a mamãe, Charles!
— Argh! Despautério! — continuo nervoso.
— Isso, isso; muito bom! É um despautério mesmo, mas papai e mamãe estão aqui. Vamos cantar juntos, vamos?
O papai me pôs no colo. Segurou minhas mãozinhas na barriga. Colocou a sua mão grandona como um babador em meu peito, esfregando devagarzinho, e falou enquanto agitava a coxa em cavalinho:
— Relaxa coraçãozinho; relaxa coraçãozinho…
Era bom quando fazia isso. Me sentia tão bem. A voz grave remexia as peças em minha cabecinha e agora conseguia ver como montá-las na ordem certa. O barulho espalhou tudo, a melodia da voz dele estava reunindo. Tentei cantar junto com ele. Minha voz só saía vento, acho que gastei todo som com os gritos.
— Relaxa coraçãozinho. Respira… puxa… e solta!
Isso é bom!
— Respira… puxa… e solta. Res-pi-ra, pu-xa e sol-ta.
Me envolveu num abraço aconchegante como se ele fosse de espinhos e eu um balãozinho vermelhinho. Parecia um edredom fofo nos dias gelados. E continuava com sua voz mansa cantando baixinho:
— Já vai passando! Já vai passando e indo embora! Passou, passou, pas-sou.
Foi embora mesmo. Fiquei calmo. Aliás, misteriosamente a voz retornou e eu não era só mais um vento soprador que carrega pra lá e pra cá uma pena sem endereço.
— Minha mãe sempre dizia: a vida é como uma caixa de bombons…
— É o quê, meu anjo? Repete pra mamãe!
— Você nunca sabe o que vai encontrar — com esforço, conclui.
— Entendeu o que ele quis dizer Guilherme? Eu não faço ideia.
— É uma frase do filme que estava assistindo hoje cedo, amor. Pensei que ele não estivesse reparando. Ei, Charles! Olha pro papai aqui.
Não gosto muito de ver naquela bolinha escura o meu reflexo. Mas papai estava com elas tão brilhantes que não tive como não me encarar.
— Olá! Meu nome é Forrest, Forrest Gump.
Papai é tão engraçado e fez do mesmo jeitinho a carinha boba do homem sentado no banco que ficou por tanto tempo esperando o ônibus. Papai me faz rir. Mamãe ajuda me cutucando.
— Você quer um chocolate? — completei, sorrindo.
— Chocolate? Você é nosso chocolate e vamos arrancar um pedação agora mesmo. Eu primeiro! Agora a mamãe! Nham-nham-nham.
Não me contive. Estava tão hilário que quase fiz xixi na roupa nova.
— Agora quero saber se “esse garoto gosta de correr”!?
Que alegria! Era como se todos do filme estivessem ali no papai. Me pegou na cacunda e correu por toda nossa casa. Ia pra cima, pra baixo, pra todos os lados. Nossa! Quão maravilhosa a calmaria e a animação. Ver os dentes lindos da mamãe, também! Sentir a emoção no rosto do papai. Um menino mau uma vez me falou no colégio que me faltava um parafuso, mas a mamãe me disse que eram só algumas pecinhas dum grande quebra-cabeças, que só estavam desencaixadas e estava tudo bem por isso. Algumas máquinas funcionam melhor sem alguns parafusos, ela me dizia. A única diferença para os outros, e que me tornava especial, era o fato de ter que lidar com muito mais peças que o normal. A complexidade é uma benção muito maior para todos nós, ela concluía. Mamãe é sempre melhor que a tia Dolores pra me fazer compreender as coisas. A titia usa palavras bobas, como se eu fosse criancinha. O papai era excelente em me compreender. Queria saber colocar em palavras essas sensações boas que tenho deles dois. Falando bonito como o pastor Cláudio ou escrevendo lindas palavras como as dos livros que mamãe lia na hora de dormir. Meus pensamentos são claros, mas ao pôr no papel minhas letras se atrapalham, uma passando na frente da outra. Tentava articular, mas a língua estala e não sai nada que quero. Meu coraçãozinho fica pesado com tudo isso. Se tivesse alguma máquina pra traduzir o que sinto eu saberia repetir pros meus pais muito bem meus sentimentos. Quem sabe um dia, talvez, eu consiga me traduzir eu mesmo a eles. Dizer o quanto aprecio o cuidado, cuidado e paciência que têm comigo. O amor que sinto por eles. Enquanto isso vou tentando dizer algo semelhante com um grande sorriso, um pouco desajeitado, mas sincero.
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Detalhes do autor
Samuel Freitas
Nasceu em Tupanatinga (PE) no ano de 1985; atua como Bombeiro Militar nas Alagoas. Autodidata. Bacharelando em Direito na UPE, Campus Arcoverde, onde atualmente reside com esposa e filho.
É autor do elogiado volume de contos “O Jumento e o Carcará“, publicado em 2024.
Belo conto. Narrar em primeira pessoa não é fácil. Samuel Freitas se mostra bastante confiante em dominar a arte escrita. Os diálogos são precisos. A descrição do que se passa na mente da criança quando se acalma é de uma beleza ímpar. Nos dá a sensação de que estamos acessando um território pouco conhecido, e isso é muito satisfatório na literatura.
Acabei de ler o conto. Que final bonito! A descrição da inquietação causada pelo barulho no personagem me fez sentir a vulnerabilidade dele, como a de uma criança de colo que precisa ser acalmada, mas não consegue expressar o que sente, exceto por choro e berros. ‘Tentava articular, mas a língua estala e não sai nada que quero’, achei essa parte muito tocante. Além de pensar nas dificuldades das pessoas com deficiência, me fez refletir sobre como esse drama faz parte da vida de todos nós, em algum grau.
Excelente!
Consigo me colocar ao lado daquela família de tão real que é o texto. Você é genial e vai ir muito além do que imagina.
Que belo texto, conseguiu transmitir os sentimentos dos personagens com muita clareza!!!
Uma história surpreendente e tocante, parabéns meu querido!
Muito improvável haver outra representação tão verossímil e sensível quanto este texto. Perfeito!
Samuel demonstra sua sensibilidade em seus contos, sempre me emociono porque vejo um pouquinho dele em todos. Sei lá! Inexplicável ♥️
Um texto sinestésico. Gostei das camadas e das diferentes texturas de uma mente que não cala.
Quanta sensibilidade, quanta emoção esse texto traz. Simplesmente genial!
Fascinante… realmente, tens o dom da escrita. Parabéns
Simplesmente incrível, estupendo. Riqueza em detalhes e sentimentos que só uma mente brilhante consegue imaginar e descrever!
Corre Forrest, venha ler Samuel Freitas. Belíssimo!