Breve sonho (conto)
Por Diogo Fontana
Che quanto piace al mondo è breve sogno,
Petrarca
Por mais que previsse, espantou-se ao ver que tudo era mesmo diferente. Os amigos haviam lhe cantado as maravilhas, mas em tempo algum ele terá se preparado para aquilo.
Ao cruzar a ponte telescópica, e sentir a violência do ar-condicionado, começou a tremer, não sabia se de medo ou frio. Penetrando o corredor que conduzia ao desembarque, o andar apressado, ao ritmo dos outros passageiros, descobriu o guarda de uniforme azul marinho, com o cão farejador. Teve receio, mesmo sem haver nada de errado consigo. A palma da mão do policial sinalizou: alto! O homem lhe parecia ao mesmo tempo intimidante e amigável, uma mescla que não conhecera até então. Chamava-se Carlos, informava o crachá; e era moreno, “hispânico”, a pele bronzeada, as sobrancelhas marcantes. O cachorro focinhou as canelas e a bagagem de mão. Tudo limpo, prosseguisse.
Desorientado por não entender as placas de sinalização, ele seguia o fluxo humano, macaqueando os circundantes. Assim foi dar numa plataforma, que pelo visto, encaminhava à outro terminal. Confortou-se ao notar que algumas pessoas que vira no vôo também se achavam por ali. Aguardou menos de um minuto o trem chegar. As portas automáticas escorregaram sincronicamente, com o rumor de um sopro. Acorreram todos para o interior do comboio. Uma locução acelerada transmitiu um aviso em dois idiomas. Da versão em castelhano, Ronaldo captou alguns fragmentos. Sobrava espaço no vagão, que em nada lembrava o aperto do metrô paulistano, aquela lata de sardinha. Tudo estava tranquilo.
Ronaldo sentiu o impulso do monotrilho deixando a plataforma. Agora deslizavam em silêncio, quase flutuando. Dentro do vagão tudo era prateado e fosco; frio. Um adesivo proibia de fumar; outro, bania alimentos e bebidas. Muitos mais avisos espalhavam-se por todos os lados, diretrizes de evacuação, de utilização do extintor de incêndio, informe sobre assentos reservados para cadeirantes, sobre o uso correto do interfone de emergência. A advertência que mais chamou-lhe a atenção, colada em todas as portas, num vermelho inescapável, dizia: CAUTION! DO NOT LEAN AGAINST DOOR! O brasileiro decifrava todos aqueles textos com um misto de fascínio e medo. Quanto zelo, quantas regras, quanta vigilância! Também admirava a publicidade, que encimava as janelas arredondadas. Através delas, por sinal, via-se o exterior do aeroporto, flanqueado por um pântano: aço, concreto; canteiros verdes bem cuidados; outdoors de hotéis e de parques temáticos; pátios de estacionamento, furgões, SUVs. Brilhava um sol intenso num azul sem nuvens. Pela distorção no olhar, que fazia o asfalto tremer, sabia-se que lá fora o calor era forte.
O trajeto demorou cinco minutos. Na saída, Ronaldo inspecionava a tudo atentamente. Percebia-se caipira, compreensão que o constrangia, mas tentava disfarçar. Seu rosto lívido, porém, e seu olhar confuso, estampavam o deslumbramento apatetado. Aquela limpeza, aquela organização, aquele silêncio. Parecia irreal, fictício. A ida ao banheiro confirmaria as impressões: nunca havia visto nada tão asseado. O lavatório rescendia à detergente. A bancada da pia estava organizada, impoluta; e as lixeiras não transbordavam de papel usado, ao contrário daquela sujeirada de Guarulhos.
Quando viu as primeiras placas da aduana, teve o primeiro calafrio. Aproximava-se o momento decisivo, a hora fatal. Daria tudo certo? Tinha que dar. Sua mochila estava presa por apenas uma das alças e pendia no seu braço esquerdo. Na outra mão levava o passaporte e o formulário azul da imigração. O papelote marcava a página exata em que estava gravado o seu visto de turista. As outras páginas ainda estavam imaculadas, branquinhas, sem carimbos ou anotações. Ronaldo entrou na fila, que era longa, e serpenteava entre fitas retráteis; havia dezenas de pessoas na sua frente. Os grandes sinais, afixados nas colunas e paredes, chegavam a assustar: era proibido fumar, proibido usar o celular, proibido fotografar. Um funcionário brasileiro repetia orientações, falava alto, com sotaque carioca. “Documento em mãos”; “aguarde a sua vez”; “atrás da linha amarela”. Uma das paredes do saguão estava preenchida com anúncios: shopping, hotel, serviço de táxi, parque temático. O ar-condicionado continuava impiedoso, Ronaldo sentia frio. A fila era lenta. Por vezes, permaneciam minutos parados, à espera. Então, de repente, acendia-se um número no painel eletrônico, algum passageiro alcançava um guichê, e todos davam mais passos adiante. O pessoal da imigração trabalhava de cara amarrada. Ronaldo achava imprudente fitá-los. Mirava o teto, o chão, a capa azul do passaporte: República Federativa do Brasil, cinco estrelinhas, Mercosul. Sua impaciência crescia.
O funcionário carioca o instruiu a ficar diante do guichê número 6, onde estava uma família arquetípica: pai, mãe, duas crianças. Demoravam. O homem se explicava para o agente da imigração. O que tanto conversavam? O que o cara tanto perguntava? Aquela espera foi aumentando o nervosismo. Sempre ouvira histórias cabeludas sobre a imigração, sobre vistos rasgados, passaportes cancelados; e o pior, sobre gente conduzida para fora da fila, para uma tal salinha misteriosa, e tétrica, onde permaneciam durante horas, com fome e sede, para depois serem metidos, sem muita explicação, num avião de volta ao Brasil. Que Deus o livrasse daquilo!
Número 6 no painel em vermelho, fora convocado. O agente de imigração tinha feições indianas e carregava no sotaque. Pronunciava palavras indecifráveis. Ronaldo precisava de um grande esforço de concentração para captar, mais por dedução de contexto do que por compreensão oral, as instruções que o homem transmitia. Deitar a mão aqui? Firmar os dedos no sensor? Posar para a câmera fotográfica? Sem os óculos? Vieram as perguntas. Num segundo, evidenciou-se a fatuidade das aulinhas do FISK. Seu inglês era imprestável. Sentiu-se mudo, titubeante, como uma vítima de AVC, ou como um bebê que se irrita diante da própria impotência. As frases formadas na sua cabeça vazavam dos lábios disformes, abstratas e mortas. Viu-se obrigado a apelar, escorregou para o portunhol, na esperança de ser compreendido. E não é que funcionou?
— Quanto tempo vou ficar? Uma semana, quer dizer, oito dias, noites.
O burocrata não mostrava os dentes, tudo nele emanava gravidade. Desviava os olhos para a tela do computador, digitava algo, erguia o passaporte, comparava a foto e a pessoa, voltava a bater os dedos no teclado.
— Onde vou ficar? Hotel Howard Johnson. Qual? Tem mais de um? Ai, meu Deus, peraí, deixe eu pegar o endereço. — E se embananou todo fuçando na mochila em busca do voucher da agência de viagens. Encontrou o papel, amassado.
— Quinze dias? Não! Eu já disse, uma semana, oito noites. Turismo, é claro. Sim, sozinho, só eu. Solo yo.
O agente deu-se por satisfeito, carimbou o passaporte. E sorriu, devolvendo o documento:
— Welcome to America, sir.
— Obrigado, thank you.
Depois de retirar as malas da esteira rolante e atravessar, sem problemas, a fiscalização da alfândega, pôde finalmente relaxar. E então gozou o sentimento de triunfo, essa formosa expansão da alma que alcança uma vitória há muito concebida. Tudo dera certo! As mentirinhas na imigração, a reserva falsa de hotel, tudo. Bem que os amigos lhe disseram. Bastava manter a cabeça no lugar e agir com naturalidade.
— Eu falei que era tranquilo, uai! — disse o tio, irmão afastado da mãe, dirigindo a van — E antes era melhor ainda. Depois do nine-eleven a coisa ficou mais chata. Antes era chupeta. Eu mesmo ia buscar o pessoal na pista do aeroporto.
— Que pessoal?
— A turistada, os brasileiros. Eu trabalhei anos aqui com operadora de turismo. Mas agora está morrendo, esses sites, Booking, Airbnb… Estão matando tudo.
— E o que você faz agora?
— Ah, um pouco de tudo. Traslado, trabalho turístico ainda faço. Mas tenho que me virar. Até passear cachorro eu faço.
Riram.
— Mas não se preocupe, aqui tem emprego pra cacete, você vai se arranjar.
A van seguia pela via expressa, quatro pistas, lisinhas, impecáveis, sem trepidação.
— Tá vendo isso aqui? – perguntou o tio, e fez um gesto amplo para a fileira de casas do lado direito da estrada — Tudo pré-fabricado. No mês passado não tinha nada. É tudo novo, esse condomínio. No Brasil demora um século pra erguer uma casa. E ainda fazem tudo errado.
— E não tem muro, né.
— Não. Aqui não tem nada disso, muro alto, cerca elétrica, nada. É super seguro. Sinto falta da minha família. Mais nada.
Ronaldo percebeu que o tio parecia se ufanar das coisas boas da América, como se fossem mérito dele, como se fosse coautor daquela prosperidade ordeira, como se tivesse vindo à bordo do Mayflower, e não de Governador Valadares.
— Como é que pode, né? — comentou.
E então começaram a especular as razões para aquela diferença. Conversavam trocando frases começadas com “o problema do Brasil é…”. E enumeravam os defeitos.
Logo, bateram o martelo: o problema era a corrupção. Mas também a impunidade. E a educação, é claro. Ah, e tinha também a desigualdade. Isso também era um problema. E a violência. Sem dúvida a violência. Se não fosse isso, o Brasil seria tão rico e organizado quanto os Estados Unidos. Talvez até melhor. Com tanto potencial, tantas riquezas, a Amazônia…
Ao fim, porém, desanimaram, e admitiram que o Brasil não tinha jeito, e que demorará uns duzentos anos para ser desenvolvido.
Demorou muito menos para Ronaldo prosperar. Estabelecido em Boston, fez de quase tudo. Esqueçam aquele papo de durezas mil, aquele mimimi do imigrante que come o pão que o diabo amassou. As penas foram brandas, o jugo suave. Passeou cachorros, lavou pratos, serviu mesas, montou sanduíches, mas e daí? Ninguém morre por isto. Ronaldo enfrentou as pequenas provações com o coração explodindo de felicidade. E mesmo nas noites mais difíceis, nos momentos mais sombrios, quando nevava lá fora, e ali dentro lhe assaltavam os demônios, bastava um novo dia, um novo emprego, e o bolso cheio, para o sofrimento passar.
Ronaldo, então, se adaptou gostosamente, mesclou-se na paisagem, fundiu-se à multidão. Palmilhou a cidade toda, contemplou, admirou, aprendeu, ouviu línguas estranhas. Era uma delícia sentir-se um humilde pontinho em meio aos inúmeros fluxos de mercadorias, de informações, de pessoas, que caracterizavam aquela cidade global. Muitas vezes se sentiu como num filme. E como não amar o subúrbio moderninho onde se instalou, com seu jeitão comospolita, arborizado, e abarrotado de ciclistas e mesinhas na calçada? Seu bairro no Brasil era um deserto gastronômico, uma zona cinzenta e sombria, onde vigorava um toque de recolher não declarado. Batia às 18 horas e a vizinhança morria: letreiros e luzes apagadas, portas de metal rolando abaixo, todo mundo correndo para confinar-se em casa. Ali não, ali havia vida, havia cor, e parecia existir uma cafeteria em cada esquina. Somente no quarteirão do seu studio, Ronaldo descobriu três destes estabelecimentos. O The Coffee Artisan, que seduz uma platéia de estudantes sofisticados e apresenta recitais de poesia. A East Bakery, onde é possível eleger entre uma variedade de catorze cafés da África e do Oriente Médio, e onde Ronaldo passou a tomar o desjejum duas vezes por semana, pois gostou muito da avocado feta toast, preparada num pão integral de fabricação própria e acompanhada de expresso marroquino. Mas o melhor lugar, sem dúvida, é a Tuscan Bread Company. Não só porque na primeira vez que esteve lá, o proprietário, Bob, saudou-lhe com um sorriso confiante e acolhedor e ofereceu-lhe uma amostra gratuita. Mas porque foi ali que Ronaldo conheceu Inés, a colombiana, com quem casou e teve um filho.
E com quem agora está na sala de sua casa, refestelado no sofá, diante do enorme ecrã de 55 polegadas. Faz um frio imenso. Por isso, ele se cobre com um edredom e calça meias grossas. Na manhã anterior teve que remover dois metros de neve da porta de casa, mas vale a pena, não faz mal. Ronaldo assiste à Globo Internacional. A reportagem mostra mais um crime no Rio de Janeiro, trinta passageiros de um ônibus tomados como refém. Imagens recuperadas reproduzem o instante preciso em que o sequestrador se rendeu. Ao fundo, um viaduto cinza e pichado, um ajuntamento de populares curiosos. Inés lhe chama a atenção, apela que desvie os olhos da tevê, e veja as gracinhas do bebê. Ela e a criança brincam sobre uma coberta estendida no chão. O pai sorri, contente, e o neném balbucia, mexe num chocalho, aperta o botão de um brinquedo barulhento.
Lá fora, cai a neve silenciosa, pinta a vida inteira de branco. Ronaldo ainda mira o relógio de pulso, quase seis, antes da luz intensa penetrar, repentina, a janela. Foi uma luz sem igual, impiedosa, de outro mundo. E num milissegundo, tão breve que não se pode descrever, a última centelha em Ronaldo ainda conseguiu perceber a potência daquela luminosidade violenta. Então, ele, que já tinha os olhos cegos e as retinas queimadas, de algum modo viu sua vida inteira à sua frente, viu todo o encadeamento de fatos, desde a concepção até aquela última explosão de luz; e, sentindo a posse presente e simultânea de todos os seus momentos, entendeu num instante toda a corrente dos seus atos, tudo o que fizera sobre a terra, as consequências, os efeitos, os nexos causais, os pontos de inflexão, as decisões importantes, as metamorfoses, as mudanças sem retorno, o cômputo final.
E tudo que lhe era caro derreteu. O vento de morte varreu a casa, uma força invisível destelhou o teto, estourou as vidraças, trepidou as paredes, abalou as fundações, e destruiu todas as conquistas, o trabalho de anos. O lar se tornou tão quente, que tudo entrou em imediata combustão, a árvore de natal, os enfeites, o pisca-pisca, o sofá, as almofadas, a televisão. Os celulares explodiram. Houve fogo em todo lado. As madeiras, as fibras, os plásticos, as fiações, os pisos e os revestimentos, todos escolhidos com carinho, arderam em ignição completa; o grande incêndio queimou tudo, filho, esposa, casa, jardim, rua, distrito, cidade. E uma grande nuvem de fumaça radioativa, um cogumelo, ergueu-se a quilômetros do chão, e foi vista a grande distância, por muita gente no mundo, até mesmo por seu tio, já velhinho, lá na Flórida.
Sensacional. Divertido. E com uma mensagem final muito bem transmitida. Não vê quem não quer.
Parabéns pelo conto, Diogo! Sempre me perguntei porque nunca foi filmada, encenada ou escrita aqui no Brasil uma história sobre imigrantes brasileiros legais ou ilegais. A única história que eu me lembro é o filme “Jean Charles” mas que não assisti, por isso não posso opinar sobre a qualidade. De qualquer forma, esse é um aspecto muito presente na vida de todo mundo. Praticamente, todos os jovens que eu conheço entre 18 e 30 anos consideram ou estão ativamente tentando se mudar para outro país. Tenho um irmão que morou por dez anos nos EUA e viveu uma situação parecida com a do desfecho o conto-sonho: ele teve a casa incendiada, além de ter sofrido um acidente em que ficou em coma por vários dias. Já ouvi de outras pessoas relatos piores. Inclusive, escrevi um pequeno conto inspirado em um desses relatos: https://www.subsidiario.com/os-vultos-de-ontem/
Mas o seu conto não só é mais bem escrito, como mais interessante na maneira de manejar o tempo: começa narrando um fato corriqueiro e depois acelera, contando a história inteira da vida do Ronaldo como se fosse um big bang às avessas. Parabéns!