Areia Movediça – Capítulo I
Este é o primeiro capítulo do romance Areia Movediça, cuja 2ª edição foi publicada em outubro de 2021.
Por Douglas Lobo
Você preferia estar em outro lugar.
Qualquer lugar.
Só não aqui, nesta casa de gafieira, no Rio de Janeiro.
Você não gosta de samba, embora diga o contrário a seus amigos. Prefere rock, de preferência americano. Seus amigos também, mas preferem dizer que gostam de samba; pega melhor: “música do povo”.
Você se questiona se samba é música do povo. A massa escuta esse ritmo ainda, no Brasil de hoje?
Não que você conheça muita gente “do povo”. Nem você nem seus amigos são da classe popular. Fossem-no, não estariam aqui, numa casa do bairro da Lapa, onde o preço dum único ingresso supera o valor duma cesta básica.
Seus amigos preferem, claro, não refletir sobre essa contradição. Acham que a Lapa os coloca nos estratos mais baixos da população — como se o bairro ainda fosse o lugar proscrito dos 1930, e não o ponto da moda dos turistas e millenials.
Você já está na quarta caipivodka, numa tentativa de se animar. De pé, copo na mão, você presencia, no palco, um vocalista, que, acompanhado por bateria, baixo e violão, canta um samba antigo:
Tá legal, eu aceito o argumento
Mas não me altere o samba tanto assim
Olha que a rapaziada está sentindo a falta
De um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim
Você tenta conter o riso perante um sambista tão inesperado: rapaz de pele branca, bermudão, camiseta justa e boné para trás — um playboy que parece ter se perdido a caminho de Ipanema. Não que isso o surpreenda: há dez anos no Rio, já aprendeu que a atitude descolada, aqui, consiste em incorporar os gestos, a linguagem e a música do morro; para o cantor no palco — e para seus amigos — essa música é o samba “de raiz”; fingem não saber que o verdadeiro som dos barracos é o funk: sua roda é refinada demais para os bailes das favelas. Dionísio vez ou outra menciona a possibilidade de irem a alguns da Zona Sul, que oferecem à elite cool um ambiente onde ela pode se sentir parte do “povo”. Você espera que a ideia não vingue.
Alguém toca no seu ombro direito.
Você conhece Dionísio o suficiente para reconhecer os sinais de embriaguez: o brilho nas pupilas, o suor na gola da blusa com estampa do filme Pulp fiction — ele transpira quando bebe muito —, as bochechas avermelhadas. Sóbrio ou bêbado, sempre parecia um hippie trazido de 1970; a convivência ensinou, aliás, que o amigo empreende esforços em transmitir essa imagem.
Ele lhe apresenta uma garota recém-conhecida: tem pele negra, cabelos crespos num penteado moicano e piercings no nariz e nas orelhas.
— Dionísio falou que você é de Fortaleza — ela diz.
Você anui com a cabeça. Torce para que ela mude de assunto. Para que falar sobre sua cidade? Você mal se lembra dela: a paisagem urbana, os amigos, os empregos — tudo há muito desvanecido da memória.
— Eu não conheço Fortaleza — a garota continua, em direção contrária às suas expectativas. — Que tem de bom lá?
De súbito você se lembra de Edvaldo. Daquele dia no bar…
Tenta esconder a impaciência ao responder:
— Galinha caipira à cabidela.
A garota arregala os olhos, sem parecer ter compreendido. Dionísio aproveita a oportunidade para abarcá-la pelos ombros com um dos braços:
— Eu te disse que ele era engraçado.
Você lembra, então — por que sempre se esquece disso, mesmo morando aqui há dez anos? —, que no Rio os padrões de comunicação são rígidos (apesar das aparências em contrário). Colocar algo imprevisto numa conversa é tido como excentricidade, sarcasmo ou, na pior hipótese, grosseria. Você tenta consertar:
— É o que tem em Fortaleza. Comida, bebida, rede pra dormir: sombra e água fresca. Só isso, entende?
A garota sorri:
— Ah, saquei — ela se vira para Dionísio, que ainda a abarca pelos ombros: — E Belo Horizonte? Que tem de bom por lá?
Você mantém os olhos em ambos, mas não lhes escuta a conversa. Esta, a lição mais valiosa que aprendeu durante os meses em que fez aulas de atuação: a técnica do muro. Neste momento, o espaço “cênico” só inclui você. Tudo o mais, todos os demais, são a plateia que o ator tem de ignorar para se manter no personagem; neste caso, é preciso ignorar a todos para continuar sendo você mesmo — esse artifício é o que tem lhe permitido sobreviver no Rio, cidade onde o muro imaginário exclui o máximo de habitantes.
Quando você se dá conta, Dionísio e a garota já entraram em outro assunto: política.
— O establishment quer derrubar o governo popular — diz Dionísio, o rosto a poucos centímetros da garota. — A elite não quer que o povo voe de avião. Ou vá pra Disney. A madame quer ter uma mucama em casa. É como diz o Foucault…
Você já presenciou em vários momentos a estratégia: quando conhecia uma garota, Dionísio dava um jeito de puxar algum assunto que a pudesse impressionar; e na primeira oportunidade citava algum escritor — famoso o suficiente para que a menina reconhecesse o nome, mas não tão conhecido a ponto de ela poder avaliar se ele conhecia ou não de fato a obra do autor: era nessa brecha que Dionísio brilhava. Em geral funcionava — e desta vez também, já que logo os dois estão a se beijar. Depois de alguns minutos ele sussurra algo no ouvido dela, ela anui com a cabeça, despedem-se de você e saem da casa.
Você ainda não se habitou à rapidez com que o sexo se desenrola aqui no Rio.
Você procura por Jairo.
Ele continua onde você o viu pela última vez: no centro duma roda cujos integrantes conheceu há alguns minutos.
Numa cidade em que todos lutam para parecer desalinhados (projetar um aspecto despretensioso), tudo em Jairo, ao contrário, exala o mais absoluto apuro: camisa social em cetim, calça de algodão, mocassim italiano de camurça, cabelos modelados por creme. Naquele momento, ele relata algo aos novos amigos, do jeito usual dele: olhos dum interlocutor a outro, movimento mínimo de cabeça. Quando termina, riem. Jairo é bom em contar piadas — o hobby de comediante stand-up é um dos muitos que pratica. Ele, claro, faz questão de se gabar desse e de outros hobbies a quem quer que conheça na balada — em especial às mulheres. Não por acaso, você atenta numa garota ao lado dele: loura, olhos verdes, corpo mignon: deve ser o alvo da noite.
Você também enxerga, a alguns passos de Jairo, Kalina. De blusa de estampa florida, calça de brim de aba curta e curtos cabelos ruivos cujas franjas lhe caem pelas laterais do rosto bronzeado. Ela e o marido conversam com uma garota que devem ter acabado de conhecer.
Você procura por Paulo Sérgio. Nenhum sinal dele. Ele sempre sai cedo.
Você passa em revista a casa. Em cada metro ao redor, pessoas. Em meio à música, você lhes escuta as risadas, os fragmentos de conversa, sente os esbarrões em seu corpo quando passam ao lado. O ambiente fervilha de energia sensorial, sensual, sexual.
Então, por que você se sente tão só?
Detalhes do autor
Douglas Lobo
Douglas Lobo é romancista. Nasceu no interior do Piauí em 1977. Reside e trabalha em Fortaleza (CE)