A Universidade Vencida pelo Espírito
Este texto compõe a 2ª edição do livro “Noemas de Filosofia Portuguesa”, publicado em 2022.
Por Miguel Bruno Duarte
De Algés circulando em direcção a Belém, foi em tempos possível observar, do lado esquerdo, um conjunto de instalações decrépitas que perfizeram outrora a Universidade Moderna. Ligada que fora, por sua vez, a uma Obediência maçónica, de que, aliás, resultara ao tempo um escândalo que a Comunicação Social tornara amplamente conhecido, essa mesma universidade, precedendo o abominável Centro Cultural de Belém, por pouco não viera também a ensombrar, pelo aspecto obtuso e desprimoroso da sua não-presença, o que António Telmo considerou ser a «cifra arquitectónica» da História Secreta de Portugal. Referimo-nos, obviamente, ao Mosteiro dos Jerónimos enquanto expressão única e superior da nossa nacionalidade por via do simbolismo Manuelino.
No entanto, ocorreu dar-se a pitoresca ocasião em que ousei propor a Orlando Vitorino deslocarmo-nos à «universidade maçónica» com o fim de ali propormos a eventual realização de um curso livre de filosofia portuguesa. Fomos entretanto formalmente recebidos por quem, no decurso das eleições autárquicas, lá ia por vezes aparecendo no écran televisivo a integrar o séquito de campanha do candidato Isaltino à Câmara Municipal de Oeiras. Tal, de resto, constituía ainda um exemplo paradigmático de como essa instituição universitária, inspirada ou arquitectada no regaço maçónico, podia porventura exercer um papel de peso, influência ou cumplicidade nos meandros do poder político, nomeadamente à imagem do que já da universidade previamente fizera o Marquês de Pombal, também ele à época um probabilíssimo maçon.
Estava, portanto, prestes a assistir, prazenteiramente, à singular quão extraordinária capacidade dialéctica de um mestre que, na já vetusta e vivida sabedoria dos seus oitenta anos, manifestava ainda uma varonilidade anímica e espiritual capaz de suscitar a mais funda e digna admiração. Articulando os seus argumentos na mais perfeita concordância com os princípios do pensamento clássico, Orlando Vitorino deixou, entretanto, verdadeiramente estupefacto o seu interlocutor ao fazer valer que uma universidade destituída de filosofia não é, rigorosamente, uma instituição digna de si mesma. Mais: a base terapêutica dessa valência demonstrativa pressupunha igualmente a fenomenologia do mal por via da qual se vem progressivamente minando os alicerces espirituais de uma civilização que parece já ter completamente sucumbido perante o positivismo materialista, desde o Direito sem Filosofia até às iniquidades executivas, judiciais e legislativas exercidas pelos habituais agentes da política vil.
Perante cena tão espectacular quanto insólita, a reacção, se tanto, veio finalmente quando o anfitrião, já meio azambuado, procurou um último refúgio nas ideias feitas e absurdas do positivismo universitário dominante: «O princípio da universidade é a matéria». Nisto, Orlando Vitorino, firme e lapidarmente, tão só replicara: «Ora essa!… não é a matéria… é o Espírito!…».
Estava então perfeitamente assente que ao derrotado interlocutor jamais lhe poderia ter passado pela cabeça a mera possibilidade de, em sede própria, achar-se pessoal e intelectualmente confrontado, ou, se quisermos, inteira e magistralmente depenado por quem, tão inopinadamente e de chofre, lhe fizera ver que o estatuto de professor doutor no fundo pouco ou nada significa, pelo que, lá por fim, se limitou a balbuciar que teria de obrigatoriamente submeter o programa do curso, obviamente inédito, ao dito conselho científico da suposta Universidade. Dispusemo-nos, pois, a facultar-lhe um exemplar do programa logo que se nos afigurasse possível. E no momento da solene despedida, dissemos adeus na previsível certeza de qual seria o desfecho final, dado o habitual procedimento censório e assaz proibitivo de uma pseudo-corporação largamente incapaz de tão simplesmente distinguir o conhecimento científico do pensamento filosófico.
Ora, imagine-se, para o efeito, um arvorado conselho científico de gabirus universitários a tentarem acertar com a razão de ser de um programa filosófico por onde perpassam afirmações tão aparentemente desconcertantes, tais como: «O mundo actual é um mundo de desolação, dominado pelo império planetário da técnica e habitado por sociedades totalitárias»; «Como pensamento do homem, a filosofia é sempre filosofia situada e radicada na história, no povo, na língua e, por essa radicação, se apresenta como filosofia nacional»; «A fixação do conhecimento científico nas teses metafísicas que deram origem à ciência moderna – irrealidade do mundo sensível, divisibilidade do tempo e do espaço, decomposição dos corpos, causalidade na relação de anterior e posterior, imagem mecanicista do homem e do mundo – mas gradual indiferença perante a metafísica e seu consequente abandono».
Contudo, há sempre quem porventura sustente nos círculos mais frouxos e periclitantes da filosofia portuguesa, que o pensamento varão de Orlando Vitorino sempre comportara um carácter ostensivamente duro, ou quando muito insusceptível de uma eventual contemporização no que toca ao precário quão irremediável mundo das instituições universitárias. Mas talvez, nesse aspecto, como noutros igualmente similares, Orlando Vitorino ecoasse, não obstante sua irónica e por vezes desconcertante mas generosa personalidade, as elevadas aspirações do inolvidável tribuno que foi, sem dúvida, Leonardo Coimbra, até pelo modo como o filósofo criacionista chegou a justificar a sua acção ministerial quando transferiu a Faculdade de Letras de Coimbra para o Porto:
«Discute-se se consultei ou não a faculdade, o que já está suficientemente esclarecido. Não vale a pena estar a pôr a nu mentiras e traições, pois à República deve acima de tudo interessar o valor intrínseco do que fiz e muito menos o muito ou pouco tacto diplomático com que o fiz…».
Por outro lado, sabia perfeitamente Orlando Vitorino até que ponto as teses da filosofia portuguesa são, por natureza própria, totalmente incompatíveis com qualquer forma mais directa ou indirecta de materialismo dialéctico, e, por isso mesmo, inteiramente estranhas a toda e qualquer manifestação do chamado «marxismo universitário». E tal, de facto, não oferece a mais pequena dúvida, posto que, até na fugaz qualidade de quem, como o autor destas linhas, estabeleceu contacto com o Departamento de Filosofia da Faculdade das Tretas de Lisboa, não há nada como ter directamente podido constatar até onde sempre vai e pode ir efectivamente a bem intranhada hostilidade face ao menor sinal, ou à mais leve manifestação invocativa de pensamento filosófico genuinamente português. Assim, desde os remoques insultuosos respeitantes a Álvaro Ribeiro, particularmente aqueles que, de um modo perfunctório e deveras infeliz, chegaram a provir de um sôfrego aspirante ao título de mestre universitário – num seminário de feira entregue ao franciscano Joaquim Cerqueira Gonçalves –, até ao fundo desprezo manifestado pelo nome dos nossos maiores pensadores – «o Álvaro Marinho», como assim de resto balbuciara um materialista analítico encarregue da cadeira de «Lógica» (puro cálculo, diga-se de passagem) –, eis, pois, como a universidade pura e simplesmente ignora, e ignorando desconhece o que no fundo subjaz ao movimento deveras livre e incondicionado da filosofia portuguesa.
«A vitória será nossa!», dir-me-ia entretanto Orlando Vitorino. E sê-lo-á, sem dúvida nenhuma, sob o dominio amiúde sublime, por vezes até jocoso e transcendente do Espírito.
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Detalhes do autor
Miguel Bruno Duarte
MIGUEL BRUNO DUARTE é na atualidade um dos mais destacados arautos da filosofia portuguesa na esteira do ideário aristotélico de Álvaro Ribeiro.
Tenho a edição de 2014. Gostei/gosto.
Paguei 5 € em 2015.
Porquê tão barato?
MF