A Literatura Perigosa
Por Alexandre Soares Silva
Queria que as pessoas parassem com essa história de que “a literatura é uma ocupação perigosa”.
Este discurso aqui de Roberto Bolaño.
Blábláblá, “qualidade de escrita não é saber escrever maravilhosamente bem, porque qualquer um pode fazer isso”, (não é um mero esteta o Roberto Bolaño), mas “é o que sempre foi: saber enfiar a própria cabeça no escuro, saber saltar no abismo, saber que a literatura é basicamente uma ocupação perigosa”.
Uma amiga me recomendou ler Roberto Bolaño faz tempo, mas isso é muito brega.
Deus sabe que sou a favor de qualquer modo de encarar sua própria vida que permita que você se sinta um pouco heróico – mas é preciso manter algum sentido do ridículo, seu chileno.
Wodehouse nunca “enfiou a cabeça no escuro”. Ou ele estava “enfiando a cabeça no escuro” quando escreveu que o Bertie teve que deixar o Jeeves cortar a gravata preferida dele? Ou que o Gussie Fink-Nottle bebeu suco de laranja com gim e nadou numa fonte pra caçar lagartixas for something?
Marcial estava saltando no abismo quando escreveu epigramas sobre eunucos seguindo maridos infiéis no mercado? Jane Austen quando descreveu que a Emma foi rude com a Miss Bates num piquenique e que o Mr Knightley ficou meio zangado?
E mais importante, Edward Lear estava saltando no abismo quando disse que Violet, Slingsby, Guy e Lionel fizeram chá de pedrinhas enquanto o Quangle-Wangle tocava sanfona?
Queria que as pessoas parassem com essa idéia de que grande literatura tem que ser intensa como o Sean Penn urrando.
E mesmo que fosse, mesmo que tivesse que ser – o que não é, e não tem que ser – não seria uma ocupação perigosa, exceto claro para os extras em volta do Sean Penn recebendo os borrifos de cuspe diretamente nas suas caras esperançosas e famintas de sucesso.
Ou nos casos em que é literalmente perigosa, como escritores que são presos ou exilados pelo que escreveram, ou decapitados, ou empalados, ou simplesmente chutados nas canelas por senhoras com raiva usando botas com solas de ferro, ou alvejados por bolinhas de papel babadas e arremessadas por elásticos presos entre o indicador e o polegar de carrascos mascarados que não gostam de literatura.
Mas não é a esse perigo (esse perigo-perigo) a que Roberto Bolaño se refere, nem ao perigo de estar escrevendo e a cadeira quebrar e você morrer, à la Salazar, mas a uma espécie de perigo metafórico de quem se forçou a encarar As Realidades Duras da Vida, Cara!
Ou até o Lado Escuro de Mim Mesmo! Porque Eu Sou Que Nem o Batman! Que Nem o Jack Bauer! Eu Tenho Lados Que Você Nem Queira Saber, Rapaz!
Tudo isso só reforça o meu preconceito contra a literatura latino-americana, coisa que deveria ter sido óbvia para mim assim que vi a latinidade do acento em cima do N de Bolaño. Amadurecer é ver todos os seus preconceitos serem postos em dúvida e depois discretamente confirmados.
Eu entendo que exista um tipo de literatura mais, digamos, sofridinha, complexa como um personagem de filme que fica de pé olhando a janela no escuro, e quando você fala com ele, ele responde sem se virar pra trás, dizendo alguma frase amarga e vivida sobre a vida, e em alguns momentos eu até gosto de literatura assim – apenas em pequenas doses, porque sou frívolo – mas o que me irrita é a completa inconsciência do valor de qualquer outro tipo de literatura, que frases bregas como essa do “enfiar a cabeça no escuro” deixam antever.
Eu não escrevo sobre o Ursinho Puff, meu caro! Eu não escrevo sobre Quangle-Wangles! Minha querida esposa quando me vê saindo do escritório depois de um dia de trabalho mal sabe a Escuridão em que enfiei minha cabeça!
Saltar no abismo! Desculpe, mas não posso deixar de visualizar um saltinho à la Margot Fonteyn.
Pfui.
Talvez os livros de Roberto Bolaño sejam melhores do que isso, mas agora fiquei indisposto com ele e tão cedo não tento ler. Porque sou injusto, impulsivo, intuitivo e infantil.
Por outro lado, comprei ontem um romance de César Aira e parece bom, sei lá.
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Detalhes do autor
Alexandre Soares Silva
Alexandre Soares Silva nasceu em 1968. Publicou três romances, A Coisa Não-Deus, Morte e Vida Celestina e A Alma da Festa, além de uma coletânea de ensaios, A Humanidade é uma Gorda Dançando em um Banquinho.
Publicou, em 2021, o volume de contos O Homem que Lia os Seus Próprios Pensamentos.
Trabalha como roteirista e vive em São Paulo.