A Cartomante (conto)
Pedro Mendes passava agora os dias recluso em seu apartamento nos Jardins, desde que obtivera, por graça do ministro Ronaldo Azevedo, um habeas corpus. Não ia mais a restaurantes, nem ao clube; não podia manter contato com o sócio, nem ir à empreiteira; com o passaporte retido, não podia deixar o país. Tinha as contas bancárias bloqueadas e usava uma tornozeleira eletrônica. O empreiteiro engordara a ponto de nenhuma camisa abarcar mais a rubra papada.
— É estranho — disse para a mulher na mesa do café — mas os dias têm passado voando. Por mais que eu me esforce em manter uma rotina, a piscina de manhã, o tênis à tarde, as reuniões à noite, por mais que me esforce em preencher o dia, sinto como se o tempo escoasse, sempre na iminência de uma reviravolta, uma nova operação da polícia, um outro escândalo, uma nova prisão…
— Nem me fale. Isso tem me consumido… — suspirou Letícia com os olhos tristonhos perdidos, mirando alguma paisagem invisível.
Era o segundo casamento de Pedro Mota Mendes. A deslumbrante esposa tinha a metade da sua idade, um narizinho arrebitado, uns olhos azuis que pareciam duas lantejoulas, um colo de estátua. Apoiando o queixo numa das mãos, com a outra Letícia fazia bolotas com o miolo do pão… Sem levantar os olhos de lantejoula, comentou, indiferente:
— Você confia mesmo no seu amigo?
— Qual? O presidente? Ora, claro. — Pedro Mendes pousou a xícara e tomou a mão da mulher entre as suas — O presidente é o único que me deu demonstração inequívoca — e repetiu escandindo as sílabas —, demonstração inequívoca de lealdade nesse momento difícil. No Almagro, no Constantini, nesses eu não confio, mas no meu amigo eu confio! O presidente é homem de palavra… Não apenas confio na sua amizade, mas sei que ele está empenhado. E não apenas é meu amigo e está empenhado, como é o único, aliás, que pode nos ajudar. É o homem mais poderoso desse país. Todo mundo lá em Brasília come não mão dele.
Não se sabe se falava isso apenas para tranquilizar a esposa, pois que era visível o sofrimento por que vinha passando a pobre mulher: as noites de insônia pintavam-lhe ao redor dos olhos dois halos negros. Se ele engordara, ela emagrecera. As amigas se afastaram. A conta bancária bloqueada, a imprensa na porta, a impossibilidade de deixar o país… estavam vivendo um inferno.
— Hoje à noite vem aqui o doutor Miranda — prosseguiu o nosso empreiteiro. — Me ligou agora de manhã. Disse que tem excelentes notícias. Assim mesmo, “excelentes notícias”. Não vamos desanimar, amor. Essa tormenta há de passar. Como é aquele ditado?, não há mal que dure para sempre…
— Não esqueça que hoje à tarde receberemos a Maricy. Encomendei um trabalho…
— A cartomante?
— Isso. Ela vem buscar algumas coisas aqui, umas roupas, não sei bem, coisas que ela precisa para o trabalho. Vai ler a nossa sorte.
Maricy, a “cartomante das estrelas”, tinha fama de nunca errar uma previsão: de obscura taróloga de um programa de variedades na televisão, Maricy foi alçada à fama depois de predizer a morte de um ator de telenovelas e um desastre ambiental, acertando em cheio a morte e o desastre. Agora era uma celebridade, tinha um programa só seu. Lançara livros, assinava colunas nos jornais, aconselhava políticos e celebridades, era convidada para jantares. Dizia-se autodidata, discípula de um mestre egípcio, estudiosa há mais de 40 anos das ciências ocultas, 7ª reencarnação de uma bruxa queimada pela Igreja na Idade Média. Falava rápido, assertiva, outras vezes pausadamente, enigmática. Era de uma brancura cadavérica; tinha a pele oleosa, e a face retesada. Os lábios eram grossos, preenchidos, sempre com batom vermelho, imóveis de tanto botox: quando Maricy falava, a boca não se movia, como se a cartomante estivesse sempre a manipular um boneco de ventríloquo. Seus olhos no entanto eram vivazes e inteligentes. A palidez e o enrijecimento da face, em contraste com os olhos acesos, flamejantes, dava ao conjunto um aspecto desconcertante de boneco de cera que estivesse vivo, um títere de si mesmo. Para o casal Mendes, naquela tarde, Maricy disporia de duas horas da sua apertada agenda.
O tique-taque do relógio de parede da sala apenas ressaltava, por contraste, o silêncio triste e langoroso. Até que a cartomante chegou, com uma echarpe no pescoço, e anéis de rubi nos dedos. Quem a recebeu foi Letícia, e sem perda de tempo os nossos três personagens foram ao que interessa:
— Corte o baralho em dois — ordenou a astróloga diante do casal.
O coração de Letícia disparou. Pedro cortou o baralho, e Maricy puxou uma carta que depôs sobre a mesa de vidro. Puxou outra, e depois uma terceira e deu uma risadinha, como se dissesse “eu sabia!’
— Veja bem — começou, pausadamente. — aquele problema das contas no exterior, você já resolveu?
O casal se olhou.
— Ah, sim, aquilo tá solucionado — respondeu o marido, após certa hesitação. — Na verdade eu nunca tive conta em meu nome — a negativa veio por força do hábito. — A imprensa divulgou que tinha, mas eu era o só beneficiário dos trusts, a conta estava no nome de uma offshore…
— Olha, as cartas dizem que você não precisa se preocupar. Esse juiz que está te trazendo problema… Veja, o jogo virou, meu amigo. Esse juiz não vai mais cruzar o teu caminho. Tá vendo aqui Letícia? A Alma do Mundo me garante — e virou mais uma carta — Olha só! A carta do Julgamento…
— Julgamento!? — perguntou Pedro, ressabiado.
— O Julgamento… É renovação. O que foi plantado no passado será colhido. Esta lei da colheita é inevitável, ninguém foge dela. O julgamento… você vê o anjo anunciador da carta? Ele representa uma segunda oportunidade para as situações que não foram finalizadas no passado. Uma oportunidade de recomeçar, eu sinto um caminho de muita prosperidade, fertilidade, vida, um caminho rico, não apenas de bens materiais, mas de conhecimento, de aprendizado, de amor, relacionado ao trabalho, à carreira, aos negócios, sem dúvida, mas também aos afetos, prosperidade tanto a nível profissional como pessoal…
— Recomeçar! — suspirou Letícia, segurando forte a mão do marido.
— Pedro, eu te afirmo — vaticinou Maricy — você nunca mais colocará os pés num presídio. Todos os teus processos estão com os dias contados. Tudo isso vai acabar. — e puxou o Ceifador. — Tudo que você passou até aqui serviu para fazer de você um novo homem… Está vendo, o Ceifador? Renascimento, transformação — Maricy fechou os olhos por um minuto, antes de continuar: — Vocês têm pensado muito em tudo isso nos últimos dias, não têm?
Pedro e Leticia trocaram um olhar terno e cheio de confiança e responderam ambos afirmativamente, num suspiro uníssono.
— Abram-se para o novo. Esse Ceifador, no atual contexto de vida de vocês, é um alerta para que vocês não percam o foco, ouviram? Nos próximos dias surgirão novas oportunidades, Pedro, você só precisa tomar muito cuidado com decisões precipitadas. Tudo o que você fizer, terá de ser muito bem pensado, muito refletido… E para a Letícia — disse Maricy, lambendo mais uma carta de dentro do baralho — para a Letícia, olha só o que temos! O Mundo! A carta do Mundo! O que isso quer dizer? Ora, isso quer dizer bem-estar emocional e material. Você venceu, Letícia! Após todas as lições vividas ao longo do caminho, está chegando a hora da realização, da conquista de todas as possibilidades…
— Quer dizer então que não serei mais preso? — interrompeu o empreiteiro.
— Em uma palavra — respondeu Maricy, voltando-se para Pedro — não! Digo e repito: você não colocará mais os pés num presídio. Olhe para frente, homem. As cartas me mostram que essas pedras do caminho se tornaram um castelo. A fortaleza do casal. Você ainda tem muita coisa a realizar por esse país, Pedro Mendes. Logo, logo você vai tirar essa tornozeleira. Os processos serão todos encerrados. Confie em mim. Confie nas minhas cartas. Você já me viu errar alguma vez? Pois então.
Consultando o relógio, Maricy pediu para ser conduzida ao quarto do casal: precisava das peças de roupas, para o trabalho…
Aquele resto de tarde após despedirem a astróloga os Mendes passariam em alegres cogitações. Já planejavam viagens, roteiros. Letícia folheava os catálogos das coleções de primavera-verão. O coração estava aliviado. Pedro disparou telefonemas, queria junto de si os amigos.
— Venha ali pelas 20h00, disse Pedro no telefone ao doutor Miranda, o seu advogado — aquele, que no começo dessa história referimos como sendo o portador de boas notícias. — O Arturzinho vem, o Bermudes confirmou, o Sampaio disse que vem também, a turma toda. — E após relatar brevemente ao advogado a visita da cartomante, concluiu: — Nunca mais, segundo ela. Nunca mais serei preso. Olha a responsabilidade, homem, está nas tuas mãos a minha liberdade e a credibilidade da Maricy.
— Pois então pode apanhar na adega aquele Romanée conti — respondeu o advogado do outro lado da linha— hoje vamos abri-lo. Não te disse eu mais cedo que tinha boas notícias? Sim, tenho boas notícias, meu amigo. Mais tarde te explico. Não é seguro mencionar certos detalhes por telefone, você sabe, mas o ministro despachou… Olha, parece que a cartomante acertou hein!
— Despachou mesmo?
— Sim, tô com o despacho aqui, ainda não foi publicado no Diário Oficial… mas eu já consegui, vou vazar para o Jornal Nacional. Se calhar, veremos juntos hoje à noite, aí na tua casa…
— Não vá me dizer que…
— Não vou dar detalhes por telefone, meu amigo. Confie em mim. Tô com o despacho aqui. Deve sair no Diário amanhã ou depois. Acabou, meu amigo. Nulidade absoluta. Prescrição. Mas não quero adiantar… os detalhes te conto quando chegar aí.
— Venha, venha. Letícia tá mandando um abraço.
— Outro pra ela.
Os amigos vieram. O ministro efetivamente despachara. Nulidade de todo o processo, desde a instrução. Anulação total, descondenação de todos os réus, como depois viria a se popularizar. O apartamento estava delicadamente decorado com rosas brancas colombianas e Letícia flanava, deslumbrante, num Marc Jacobs de seda, animando as rodas de conversa. Os velhos advogados tiravam para dançar as mulheres dos empresários, ao som de Sinatra; os empreiteiros planejavam negócios, estratégias políticas, escolhendo os candidatos que seriam apoiados nas próximas eleições, as licitações de que participariam, portos, aeroportos, ferrovias…
—Viver! — dizia o Mendes, estalando um beijo na bochecha da esposa. — Viver!
Beberam o Romanée-conti, contaram piada, comeram confit de canard. Pedro Mendes suava, feliz. A festa acabou tarde. Os últimos convidados foram embora com o dia amanhecendo. O sol já lançava os primeiros raios sobre os prédios espelhados da Faria Lima quando Pedro jogou sob a língua um comprimido e foi deitar.
Morreria na cama naquela manhã de um infarto agudo do miocárdio; com os olhos esbugalhados e a respiração agônica, apontava para frente, e entre roncos medonhos balbuciava coisas incompreensíveis, “o agente da polícia federal… o barqueiro… vieram me buscar…”
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Detalhes do autor
Luiz Cezar de Araújo
Nasceu em Palmas (PR) em 1981. Formou-se em Direito.
É autor de dois livros de prosa ficcional: A Vida é Traição (2014) e À Sombra do Pai (2017). Editou o volume O Remédio é a Crítica, coletânea de textos não-ficcionais de Machado de Assis, publicado em 2015 pela Editora Concreta.
Parabéns pelo conto. Precisamos povoar o imaginário da populações com mais produções como essa. Belo trabalho!
Belíssimo conto, caríssimo. Pena a ficção não se estender à realidade. Bravo!
Aguardando o livro.