A arte do romancista

27, maio, 2021 | Artigos | 0 Comentários

 
Por Joseph Conrad

Este texto é um trecho do livro Notas sobre a Vida e as Letras

Os romances, livros que as musas devem amar, exigem muito da nossa compaixão. A arte do romancista é simples. Ao mesmo tempo, é a mais elusiva de todas as artes criativas, a mais propensa a ser obscurecida pelos escrúpulos de seus servidores e devotos, destinada, mais que qualquer outra, a perturbar a mente e o coração do artista. Afinal, a criação de um mundo não é tarefa pequena, exceto, talvez, para os divinamente talentosos. Na verdade, todo romancista precisa começar criando para si um mundo, grande ou pequeno, em que possa honestamente acreditar. Esse mundo não pode ser feito senão à imagem do próprio autor: está fadado a permanecer individual e um pouco misterioso, e ainda assim precisa se parecer com algo que seja familiar à experiência, aos pensamentos e às sensações dos leitores. No coração da literatura de ficção, mesmo a menos digna de tal nome, pode-se encontrar alguma espécie de verdade, ainda que seja apenas a verdade de um pueril e teatral ardor no jogo da vida, como nos romances de Dumas, o pai. Mas a bela verdade da delicadeza humana pode ser vista nos romances do Sr. Henry James; e a cômica e terrível verdade da rapacidade humana deixada à solta entre os despojos da existência vive no mundo monstruoso criado por Balzac. A busca da felicidade por meios legais e ilegais, através da resignação ou da revolta, pela arguta manipulação das convenções ou pela solene adesão à mais recente teoria científica, é o único tema legítimo a ser desenvolvido pelo romancista, este cronista das aventuras dos homens em meio aos perigos do reino do mundo. E também o reino deste mundo, o terreno sobre o qual seus personagens caminham, tropeçam ou morrem, deve fazer parte do arranjo de suas fiéis crônicas. Conceber uma idéia que abarque tudo isso de maneira harmoniosa é um grande feito; e mesmo a mera tentativa, se deliberada e séria, e não aquela que resulta da sugestão insensata de um coração ignorante, é uma ambição louvável, pois é preciso alguma coragem para caminhar calmamente aonde os idiotas ficam ansiosos por correr. Como observou certa vez a respeito da ficção um distinto e bem-sucedido romancista francês, “c’est un art trop difficile”[1].

É natural que o romancista se sinta inseguro frente a sua tarefa. Ele a imagina muito maior do que realmente é. E, sendo a criação literária apenas uma dentre as legítimas formas de atividade humana, é somente sob a condição de não renunciar ao reconhecimento das mais distintas formas de ação que possui algum valor. Esta condição é às vezes esquecida pelo homem de letras, que com freqüência, especialmente em sua juventude, possui a tendência de reivindicar a superioridade exclusiva da sua atividade frente a todas as outras tarefas do espírito humano. A massa de verso e prosa pode até cintilar aqui e ali com o brilho de uma fagulha divina, mas na soma dos esforços humanos não tem uma importância especial. A sua existência é tão justificada quanto a de qualquer outra realização artística, e seu destino é o mesmo: ser esquecida, sem, talvez, deixar qualquer vestígio. A vantagem do romancista sobre os trabalhadores de outras áreas do pensamento se encontra na sua privilegiada liberdade – a liberdade de expressão e a liberdade de confessar suas mais profundas convicções – o que deve consolá-lo da dura escravidão imposta pela pena.

[1]“É uma arte muito difícil” [N.do T.]

 
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Joseph Conrad

Joseph Conrad

Joseph Conrad, nascido em 3 de dezembro de 1857, na Ucrânia, porém filho de poloneses, é um dos mais importantes escritores britânicos do final do século XIX e início do século XX. Morreu em 3 de agosto de 1924, em Canterbury, Inglaterra.