Balzac se deu ao luxo de escrever uma bastante realista comédia humana porquanto, naqueles tempos, ainda tinha o privilégio de conviver com seres humanos – por baixos e mesquinhos que fossem.
Quem queira hoje se meter em semelhante empreitada acabará escrevendo, por força das circunstâncias, um bestiário cômico, ou uma comédia bestial.
É isso o que faz Alexandre Soares Silva neste O homem que lia seus próprios pensamentos.
E julguem se não é mesmo uma sociedade zoológica essa em que se torna pop star espiritual um homem que, com muita concentração, com meditação búdica, consegue ouvir o que diz a própria cachola e — glória das glórias — é capaz de comunicar tão rara percepção aos demais homens-feras.
Soares Silva conta essa e muitas outras histórias com o humor escrachado de uma esquete do Monty Python, com algo do surrealismo do teatro de Beckett, mas sem perder jamais a profundidade reflexiva do observador arguto.
Quer dizer, o autor se traveste de mestre de cerimônia circense e apresenta, dentro desse picadeiro extravagante como o dos britânicos do século XIX, com seus pigmeus, crianças brâmanes, capoeiristas e elefantes da Somália, dramas sérios do homem-bicho contemporâneo.
Mas vale nota: Soares Silva é mordaz sem ranhetice. Não é o crítico social piegas, dos que esculacham tal ou qual grupo social com afetação maliciosa, só para, no fim das contas, provar que esse ou aquele sistema é menos corrompido que o outro.
Soares encara a selvageria dos nossos tempos com o distanciamento do grande escritor. Distanciamento que se marca antes por um meio-tom: não é o Prometeu a querer levar luz aos brutos; nem o misantropo azedo comemorando o fim da raça humana.
É, no fim, desde seu apê na Vila Madá, um eremita que debocha – mas debocha porque, pelo riso, se apieda.
— Fábio Gonçalves