O Ladrão da Direita

16, dez, 2019 | Artigos, Literatura | 6 Comentários

Este é um conto inédito de Fábio Gonçalves, autor da novela “Um Milagre em Paraisópolis”, que será publicada no começo de 2020.  

Por Fábio Gonçalves

— O que dói, mesmo, é a saudades dos filhos. Tenho quatro, duas meninas e dois moços. E tenho mulher. Quer dizer, tinha. Coitada. Não merecia, menino, não merecia. Hum… isso aqui tá muito gostoso! Muito obrigado. Imagine só, hoje, até esse momento, não tinha botado nada de sustância na boca. Só essa maldita pinga. Moço, por tudo nesta vida, nunca se meta com cachaça. Isso acaba com o homem. Não tô dizendo que minhas sacanagens foram por culpa da cachaça. Isso, não. Isso, eu sei… Menino, tu já passou um dia sem pôr um pedaço de pão na boca? Pão é sagrado. Deus prometeu pão aos homens. E a gente sempre pede na reza, “o Pão Nosso de Cada dia dai-nos hoje”. Quando o homem já não tem nem um pãozinho, nem um pãozinho seco sequer… E olha que nem falo de pão fresco. Falo até dos pães que o povo põe no lixo, pão já verde de bolor. Quando nem isso o homem consegue, menino, é que ele tá acabado, é que Deus esqueceu dele.

Já tive pão, já fui homem direito. É… quem me vê assim, sem dente, fedendo inhaca, com esse bafo de cachaça…Tu não sabe, menino. Já fui homem bom.

De pequeno eu ia era pra lida na roça mais meu pai. É, moço, eu vim do Norte. Tu não tem cara de que veio do Norte. É, menino, eu pegava no pesado. Colhia laranja. A gente pegava a fruta até lascar as nossas mãos, e enchia o cesto de a gente não poder andar daqui pr’ali. Trampo pesado, menino. E todo o dinheiro ia pro meu pai. Eu não ligava. Nessa época eu também era crente, que nem tu. Minha mãe me arrastava. Aliás, fico muito agradecido pela manta. Anda fazendo um frio lascado nessa São Paulo. Que terrinha, hein? Muito obrigado. Bom, como eu dizia… Tomo seu tempo, menino? Veja lá, hein. Sabe que velho bêbado quando desembesta a falar é uma sangria desatada.

Dizia que já fui gente, né? Pois é, eu ia pros cultos. Minha mãe me botava terno, sapato lustroso, partia meu cabelo. Daí eu ia, e olha que até gostava. E minha mãe se enchia de orgulho. Saía me mostrando pras amigas, fazendo inveja pras que tinha filho maloqueiro. “Esse meu menino é uma bença, uma bença, fulana”. Oxe, e não é que ela tinha razão? Nessa época eu até queria ser pastor. Calcule aí, hehehe. Minha vida era aquilo. Ia pra roça e depois pro culto que o povinho fazia na casa humilde de um conhecido, num comodozinho apertado. Cresci nisto.

Mas aí, quando eu contava uns 13, 14, mudamos pra cidade e os meninos da vila me ofereceram uns trabalhos… tu me entende? Era só ficar com os bagulhos na esquina, meus pais nem iam saber. Topei. E peguei gosto, rapaz. Dinheiro fácil, meu olho até brilhava. Moleque é assim. Dali um pouco meus pais descobriram e me arderam numa surra inesquecível. Olha, até hoje tenho marca daquelas pancadas. Esse vergão aqui, tá vendo? Ganhei nesse dia. Meu pai me batia com um ódio de cair choro. Pense: um homem duro como aquele, cabra de enxada, das mãos grossas. Até aquele dia achava que meu pai nem sabia chorar. Que desgosto eu dei pro velho. Que Deus o tenha. E minha mãe a mesma coisa. A bichinha chorou de soluçar. “Filho meu andando com bandido! Ai meu Deus, me defenda; tá repreendido esse Satanás”, ela falava assim, se descabelando.

O resumo é que eu peguei raiva dos meus velhos e enveredei pelo caminho das ruas. Daí pra diante foi só a bagaceira. Me meti em todo tipo de trambique. Me fiz de traficante, virei consumidor, daí passei a roubar pra ter os meus bagulhos, andei morando em toda sorte de buraco, saindo com tudo que é qualidade de mulher, até mulher doente. Você nem sabe, menino. Estive pra morrer um bocado de vezes. É que bicho ruim, que nem eu, custa a morrer. Veja:

Uma feita, um ladrão muito do cruel, pra quem eu devia uma nota preta – sem estimativa de paga, me pegou dentro de um barraco, um barraco feio, menino, pau à pique, com esgoto correndo de banda, rato saindo pelos ladrões. Estava lá com uma mulher, fazendo as coisas. Pois o homem entrou com dois jagunços e me levou, nuzinho, pra um terreno baldio, pra me desfazer na bala. Eu já estava conformado, sabe? Fui indo pelo caminho de cabeça baixa, repassando minhas lembranças, meus pais, os cultos. Estava já adulto e tinha me tornado um vagabundo dos piores. Roubava senhoras, dava droga pra moleque. Um canalha, menino, um tremendo de um canalha. Tu sabe o que é se sentir um canalha? Dói.

Estava indo assim, confessando minha morte. Já tinha aceitado. Era uma noite horrível, menino. Fazia um frio lascado, e estava chuviscando, e a gente tava num lamaçal. Eu nu, com as partes ao relento, o corpo durinho, o queixo batendo. Daí, quando a gente já tava pra parar, do nada, passou uma viatura numa estrada de terra que corria há pouco dali. Depois outra e mais uma. Provavelmente estavam à cata do homem pra quem eu devia, um homem de fama longa. Por isso, os assassinos ficaram com medo de dar o tiro. Deram só umas boas coronhadas, no que eu apaguei.

Acordei no outro dia, com uma puta dor de cabeça, com o solzão rebentando na cara. Nem acreditei que estava vivo. Foi aí que decidi vir pra São Paulo, pra mode tentar uma nova vida. Vim pra pegar trabalho, pra alugar uma casa, voltar pra Deus. Dito e feito. Me matriculei numa cooperativa de restaurantes e me deram um monte de bicos. Tinha dia que eu trabalhava em três lugares, sem descanso. Estava com sede, menino, sede de me redimir. Fui me ajeitando. Larguei tudo que é droga, até bebida. Daí achei uma igrejinha do meu gosto, de um pastor nortista, homem muito do bom, de fé, que nem você, meu jovem. Aliás, já tá tarde, menino… Se quiser ir… Olha que eu já me estendi bastante. Bem, você quem sabe. Ah, e obrigado pelo chá. Hum, quentinho. De maçã, certo? Uma delícia. Deus lhe pague. O que estava falando? Ah, sim:

Entrei pra essa igreja e peguei firme. Lá conheci uma morenona, já mais velha, uma mulher com “m” maiúsculo. Pense numa mulher de força, guerreira. Eu fui me achegando a ela e como não sou de muito ensaio, logo, logo a pedi pra casar. E ela topou. Pois juntamos nossas tralhas e alugamos uma casinha na favela, casinha até decente. Daí mobiliamos, fizemos pintura, colocamos o piso frio. Ficou um brinco, rapaz. Eu que vivia morando em buracos, no meio das baratas e das ratazanas. Estava era no luxo, no bem-bom.

Daí, num dia, corridos alguns anos, tencionei mandar uma carta aos meus pais, pra contar das reviravoltas. Queria lhes dar esse orgulho, pra eles não passarem uma velhice amarga, achando que o filho havia morrido babando das drogas ou com bala de criminoso no meio dos cornos. Mandei a cartinha e dali uns dias recebi a notícia: meu pai havia morrido e minha mãe estava acamada, nas últimas. Sofri muito, rapaz, a culpa me pesou no lombo. Já sentiu o peso da culpa, a culpa de decepcionar, pra todo sempre, um pai bom? Só não caí morto de tristeza pois ainda tinha que ir ver minha mãe.

Pois fomos, eu e minha nega, que estava buchuda. Nosso primeiro filho, ainda miúdo, a gente deixou com a vizinha. Chegando na minha casa antiga, a mesma casinha pobre de então, vi minha mãe definhada, só a caveira, os cabelos brancos e ralos, a boca murcha, a pele amarela. Como havia decaído… Minha coroa estava morrendo de um câncer. Câncer é o nome que os médicos diziam. Pra mim, aquilo era morte de tristeza, de ter perdido o marido e de ter toda a vida um filho ladrão, a coisa que ela mais detestava nesse mundo. Quando me aproximei do seu leito, vi que os seus olhos estavam perdidos, sem rumo. Falei com minha mãe e ela não soube me reconhecer. Já imaginou, menino, você virar um estranho pra sua própria mãe? É duro, menino, é duro. A velha havia caducado. Pelo menos tive a chance de lhe beijar e lhe pedir desculpas. Tadinha. Morreu logo.

Fiquei com isso apertando no peito, tentando fingir braveza pra não agoniar minha nêga, que estava pra parir. Numa noite, porém, eu voltava dum buffet, cansado da labuta, e vi um tiozinho numa barraca vendendo cachaça a uns pobres-diabos, numa rua sem testemunha conhecida. Minha boca encheu d’água ao me lembrar do sabor da branquinha. Vi os homens bebendo calados, cada qual tentando remediar alguma lamentação escondida. Os cachaceiros velhos são assim, menino. Daí me passou a nêga e as crianças pela cabeça. E também a igreja, os irmãos, o pastor. Pensei: o que o pastor diria se me visse aqui? O povo não ia aceitar um manguaceiro na igreja. Pecado, moço, o pecado oprime a gente. Todo mundo tem um pecado mais teimoso, aquele que fala mais alto na nossa cabeça, e que tem excelentes advogados pra nos convencer. E como o mundo é muito difícil pra nós, a gente até acaba se convencendo que tem direito de cometer aquele pecado, só aquele, só a última vez, pra aliviar. Cada um tem o seu. Naquela hora eu pensei assim. Havia perdido meus pais e a tristeza estava comendo minhas tripas. “Tenho sido um homem bom. Deus não vai me condenar. E minha esposa não vai saber. Sei mentir essas coisas. Sou macaco velho”. Conversando assim, fui me achegando à tenda do velho. O cheiro foi me pegando no colo, foi me enfraquecendo, bambeando minhas pernas. “Só essa vez, só pra extravasar e chorar meus pais junto desses bebuns”, era assim que o pecado justificava. Pedi uma dose de 51. Sorvi de pouco, aproveitando. Até me arrepiei, me excitei. Saciei minha sede. Mas aquilo me trouxe lembranças ruins. Quis mais. Bebi mais uma dose, de um gole. Desceu queimando, uma sensação deliciosa de saciedade e penitência. Fui tonteando, pois estava desacostumado. “Mais uma”, pedi. Fui puxando papo com os convivas, uns homens bons, desses que passam batido pela cidade; uma gente pobretona, humilde. Achei um conterrâneo e cantamos saudades da terra. Dos outros, soube dos seus lamentos. Um desempregado com fiador na jugular; outro pra matar o patrão; outro com pena da mulher que estava sendo chifrada; outro chorando os próprios chifres. Daí proseei minha vida, como estou fazendo agora contigo. Aliás, meu garoto, acho melhor você ir. Esse lugar fica perigoso à medida que vai caindo a madrugada. Esses velhos dos papelões às vezes cheiram cola e ficam fora de si. No normal, são gente boa. Mas com cola… são capazes até de matar. Eu falo demais, menino, me perdoe. Bem, vou abreviar:

Nesse dia dormi na sarjeta, como nos velhos tempos. Acordei no sereno, tremendo de frio, pois levaram minha jaqueta e meu sapato. Furtaram também minha mochila e minha carteira, com o resto do ordenado da véspera. Golpe duro, menino. Como o cabra se anima a voltar pra casa nestas condições? Atravessei a cidade a pé, pra me demorar mais. Fiquei zanzando, vendo com cuidado a gente de São Paulo. Uma frieza, uma presa, menino. Olhei bastante a mendigada. Me vi naquele pessoal. Me demorei na Praça da Sé. Aquilo tá lotado de desgraçados, uma coisa lamentável. Fiquei vendo os irmãos pregando, gritando pro povo que Deus tava voltando. Fiquei com medo nesse dia. “E se Deus volta hoje”? Também fiquei vendo os pobres se divertindo com os forrós, e as crianças sujas brincando de pega-pega no meio daquela tragédia, e as mulheres lavando as partes na fonte, pra se darem por pedra. Guardei aquilo, menino. Segui meu trecho. Cheguei em casa tarde da noite, com a mulher em desespero, com polícia atrás, com os filhos chorando. Contei que tinham me roubado e me batido. A nêga acreditou.

Desse dia pra frente, menino, azedou a maionese. Não pude mais conter o desejo pela branquinha… Olha a garrafinha aqui, tá sempre comigo, sempre arranjo um gole, um golinho que seja… Nem sempre eu consigo pão, mas a branquinha…hehehe. Bem, acontece que minha esposa descobriu a bebeção e a nossa casa virou um inferno. Todo dia era gritaria, xinga-xinga, cada um dormindo pra um canto, muitos dias eu me ausentando da sua convivência. Nessa época já tinha vindo o terceiro filho, tudo escadinha. E mal eu ficava com meus meninos. Fugia deles, com vergonha. Pense, menino, já tinha envergonhado meus pais; agora, envergonhava meus filhos. É de foder, rapaz. Também nesses tempos larguei a igreja. Como ir pra igreja e ser pinguço ao mesmo tempo? Nem quis encarar o pastor. Com que cara eu olharia pra ele? Um homem de Deus, homem que me acolheu.

O fato é que das cachaças pra farinha foi um pulo. Comecei a pegar o pó com os meninos. Cheirava três, quatro, pinos por dia. Um nóia. Nisso dei de chegar em casa com violências, xingando todo mundo, quebrando as coisas. Um dia, quando fazia tempo que eu não procurava minha mulher, eu fui pra casa com pensamentos maus, querendo aprontar. Eu pegaria a nega na marra. Pois é, meu filho. E fiz mesmo, tudo pensado. Fui pra cima dela parecendo um bicho, não respeitando nem meus filhos, que estavam ouvindo tudo, decerto morrendo de medo. Daí a nêga resistiu, porque é uma mulher nobre. Então eu lhe dei um soco chapado, desses que só se dá em homem, e em briga mortal. Ela caiu desmaiada e eu montei nela assim mesmo. Um canalha, menino…

No dia seguinte, quando lembrei do que fiz, senti vontade de me jogar da ponte com uma pedra imensa no pescoço. Não era mais digno de nada, tinha virado monstro.

No fim, não tive coragem de me jogar, mas também não consegui voltar pra casa. Fiquei pra mais de ano na vadiagem, dormindo em albergues, pitando crack, injetando heroína. Fui ao fundo, rapaz. Diversas vezes vi o Bicho Ruim, assim, na minha frente. Teve um tempo da minha vida que nem sei como as coisas se passaram. Tem um buraco na minha memória. Eu só sei que ia de alucinação em alucinação, cada vez sem saber o que era o mundo dos delírios e o mundo real.

Nesses tempos acabei pegando umas canas. Roubei muita gente pra pagar meus negócios. Daí teve uma vez que eu passei na faca um menino novo, que nem você. E furei o coitado só por maldade, porque ele já tinha me dado o celular. Pois aí me deu um choque. Tive uma vida de merda, menino, vida de bosta, mas nunca tinha matado ninguém. Não tinha crime de sangue, disso minhas mãos estavam limpas. Mas naquela hora o sangue do menino respingou na minha cara, encharcou minha roupa, melou minhas mãos. Fiquei louco. E ele estrebuchava, se tremia. Então, por milagre, chegou o socorro e levaram o moço ainda respirando. Soube que ele não morreu.

Senti aquilo como mais um livramento divino. Se eu tivesse matado aquele rapaz, com certeza me lançaria na ponte. Porque é assim, menino, eu sou esse bosta, esse canalha que tu está vendo, sou esse lixo, muito pior que um um rato, mas, em consciência, eu jamais mataria um inocente. Roubar eu roubo. Sou um drogado do caralho. Sou um vagal. Tudo isso eu assumo. Mas, matar, não.

Depois desse caso eu tomei coragem. Fui ao albergue da Praça João Mendes, onde eu estava dormindo, tomei um belo dum banho, escovei os dentes como há muito eu não escovava, arrumei uma gilete, fiz a barba, e me vesti com a melhor roupa. Estava muito chupado e banguela, porque droga estraga qualquer homem. Já vi bastante nego brucutu chegando na Praça e, depois de um mês, estar só pele e osso. Mas era o que ainda tinha de mim nesse mundo.

Com essa, esmola humana me lancei pra casa, atrás da minha nêga. E olha, menino, tu acredita que ela me aceitou? Ela tava era orando a Deus, pra que eu voltasse. Acredita? Que mulher, menino, que mulher! Tomara que você encontre uma mulher assim. Olha, esse biscoito está uma maravilha. Polvilho. Deus lhe pague. Tem certeza que não quer ir embora? Menino, menino… esses velhos… se dá um cinco minutos… Vou encerrar, prometo. Menino teimoso da pôxa. Vamos lá.

A nêga me aceitou, meus filhos também, o pastor também. Estava tudo como antes, menino, tudo nos conformes. Veja: num dia eu estava como mendigo, à beira da morte, quase virando assassino pra consumir droga, e depois eu estava nos braços da família, aos pés de Deus. Eu merecia, menino? Por tudo o que estou dizendo pra tu, eu merecia uma coisa dessas? Por que Deus foi misericordioso comigo? Menino, muita gente que merece mais que eu, nunca teve essas regalias do destino. Não merecia, menino. Escuta:

Pois a nêga me agarrou de volta. No domingo depois que eu voltei, ele me fez uma feijoada no capricho, que é a sua especialidade. E chamou amigos, colegas de trabalho, gente que estava sentindo a minha falta. Ouviu, menino? Tinha gente que amava esse traste aqui. Gente sentindo minha falta, pedindo a Deus que me protegesse. Não merecia, rapaz. Diga o que quiser, mas esse canalha aqui, esse verme não merecia.

O que eu fiz com tudo isso? Bem, cá estou eu na rua, não? É um ciclo, rapaz. Tem gente que é assim. Ser humano pode viver com duas medidas: acima ou abaixo dos seus pecados. Quem vive acima dos pecados, vive feliz. Quem vive abaixo dos pecados, é um escravo; e homem escravo é como uma fera terrível com resquícios de inteligência – o que só a torna ainda mais perigosa.

Bem, se sucedeu que eu e a nêga íamos bem, e tivemos mais um menino, meu caçula, e a casa estava na paz de Deus. Mas, de uma hora pra outra, o país se assolou numa crise das brutas, e eu comecei a padecer de desemprego. Eu e a nêga. Olha, menino, passamos apuros. Enquanto tinha, os amigos nos ajudaram, o pastor também, mas logo o cinto apertou pra todo mundo e nós ficamos de pires nas mãos. Daí, como eu não queria ver meus filhos e a nêga em situação de rua, um veneno que eu já tinha enfrentado, fui me oferecer pra uns bicos com uns conhecidos meus… Uns bicos daqueles, das antigas, entende? Olha, menino, na verdade, tô mentindo, eu fui de safadeza, de malvado. Eu podia me humilhar em outras coisas. Podia ganhar menos. Mas, aqui entre nós, me dava um tesão trabalhar com o crime, me sentir fazendo coisa errada. É o Diabo. E mais: nesses trampos eu ficava perto das cachaças, das drogas, das putas. Caí no mesmo inferno, menino. Na mesmíssima coisa. Não vou contar de novo.

E cá estou eu, esse velho, esse canalha. Minha vida foi essa, menino. Agora eu não quero mais nada. Não tenho força pra tentar mais nada. Os tombos foram duros, menino. Agora eu quero é esperar minha morte, pra ir pagar meus pecados no Outro Mundo. Enquanto não morro, vou seguindo a vida como dá, roubando aqui e ali, usando meus “doces”. Dane-se. É o que me restou. O problema é que tem gente boa que nem tu que vem alimentar bandido safado que nem eu. Era pra tu me deixar morrer, menino. Era pra me deixar morrer… – e se abriu em choro.

— Nunca é tarde para se arrepender, meu irmão – disse o jovem, buscando consolá-lo. — Por piores que tenham sido seus pecados, nunca é tarde. Diz a Bíblia que Cristo levou para o Céu um Ladrão que, no último minuto, se arrependeu. No último minuto. Lembre-se sempre disso.

— Não sou digno de perdão, menino. Meus pecados são tão enormes que nem sei como me mostrar sinceramente arrependido. Deus vai achar que é trapaça.

— Se você não perder a fé, Deus há de te mostrar o caminho. Agora, meu amigo, agora eu me vou. Obrigado pela conversa. Ore por mim.

No dia seguinte, enquanto cruzava a Praça da Sé meditando nas palavras do jovem missionário, Chico, que é como se chamava o bebum, divisou há pouco de si um corre-corre e ouviu um bulício de gente assustada. O motivo: um bandido da região, homem conhecido seu, em ato insano, sequestrara uma mulher que rezava seu terço nos bancos finais da Catedral e levara a vítima aos degraus do Templo, pedindo resgate, ameaçando-a com uma pistola na cabeça. Quadro lastimável. Vendo aquilo, o velho Chico, sem muito conjecturar, com passos ligeiros e determinados foi rompendo a aglomeração, invadiu a cena pelo flanco, subiu a escadaria com cautela e ficou de frente para o sequestrador.

— Digão, largue a mulher! Deixa disso, rapaz. A pobre não tem nada que ver com essa história. Largue ela!

O outro em nada arredou e mesmo cingiu mais firme a esganadura.

— Rodrigo, menino, você é jovem. Dá tempo de voltar atrás. Se você mata essa mulher, sua vida também acaba. Me ouça. Olhe, a polícia já está chegando. É melhor se entregar. Você está na porta da Igreja, menino. Se arrependa.

O outro, com o olhar sinistro de quem quisesse morte, só fez puxar o gatilho e macetar mais fundo o revolver na têmpora da mulher, que se desfazia em lágrimas.

A isto o velho Chico não viu remédio senão avançar, abruptamente, para cima do bandido. No susto, o ladrão largou a moça, que saiu em fuga desabalada, sã e salva. Na sequência, numa cena confusa, os dois se altercaram e o Chico pôs o outro ao chão; mas este, conseguindo aprumar a arma, deu dois tiros certos no meio do peito do velho. O Chico, porém, com força sobre-humana, continuou se batendo com o meliante, até que a polícia, às ordens do capitão, despejou uma saraivada de balas em direção do criminoso. O homem morreu de pronto, sentado.

Em pé, como se ileso, Chico viu o jovem ladrão morrendo. De repente, porém, sentiu a vista obnubilando, um frio agudo lhe percorrendo de cima a baixo, e a boca seca. Zonzo, recostou-se no umbral do Templo, sob os olhares piedosos dos santos evangelistas entalhados na pedra. Fez-se um silêncio geral – mesmo o trânsito e os transeuntes ao largo ficaram suspensos; mesmo as pompas da Praça repousaram. Chico foi então sentindo seus joelhos cederem e um gosto amargo lhe subindo pela boca. Então, olhou para o bandido morto, à sua esquerda, terminou de cair, garrado à coluna, e expirou.

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Fábio Gonçalves

Fábio Gonçalves nasceu em 1990. Professor de História e Redação. Jornalista e articulista. Escreveu para a Agência Estudos Nacionais; atualmente colabora no jornal Brasil Sem Medo. Casado com a Ana Beatriz, pai do Pedro Augusto. Mora em Diadema.