
Uma Literatura que Toma Partido
De Onde Eles Vêm. Por Jeferson Tenório. Companhia das Letras, 208pp., R$ 74,90 (brochura)
Por Matheus Araújo
A ideia de abandonar a compreensão do mundo para transformá-lo é bastante antiga entre os filósofos. Já a proposta de que os ficcionistas não precisam expressar a condição humana, mas devem libertar a mente dos leitores e direcioná-los a um futuro utópico só ganhou força mesmo a partir do século XX. Ela é marcante na literatura contemporânea, principalmente em obras como De onde eles vêm, de Jeferson Tenório, publicada em novembro pela Companhia das Letras.
Tenório ganhou destaque no meio literário ao publicar O Avesso da Pele, obra vencedora do Prêmio Jabuti de 2020. O livro obteve sucesso de vendas, foi alvo de elogios e críticas, e envolveu-se em uma controvérsia nacional quando alguns governos estaduais retiraram exemplares das bibliotecas escolares por considerarem a obra imprópria para crianças e adolescentes. O autor alegou censura.
De onde eles vêm, seu novo livro, é um romance de formação que conta a história de Joaquim, jovem negro recém-ingresso na primeira turma de cotistas da UFRGS, em meados dos anos 2000. Na universidade, o protagonista precisa lidar com o racismo, velado ou não, que está à sua volta. Como não surpreende, o livro tem sido bastante elogiado pela crítica universitária e pelo público leitor fã da literatura de cunho identitário. Antes de entrar no romance propriamente dito, vale a pena tentar entender: qual o motivo do alvoroço em relação às obras de Jeferson Tenório? O que há nelas de tão especial? Seria sua prosa tão impressionante que não podemos deixar de falar a respeito dela? Para responder a essas perguntas, o melhor seria tentar entender, antes, o que é a tal da “literatura engajada”.
Tenório usa um trecho de Sartre como epígrafe de seu novo romance, o que tampouco surpreende. O pensador francês tem grande influência no processo de popularização e premiação da literatura engajada. Sartre defende que os romances devem se propor a libertar o leitor de uma alienação. Seria função do autor criar um mundo ficcional onde essa alienação seja a base, na intenção de, assim, direcionar o leitor à mudança. Como consequência óbvia, o tema de uma obra deve ser determinado pelo tipo do leitor. Não podemos saber se Jeferson Tenório conhece as diretrizes sartreanas da literatura engajada; porém segue a cartilha do mestre vesgo francês perfeitamente.
Tanto o O Avesso da Pele quanto o mais recente De Onde Eles Vêm tratam de temáticas semelhantes: racismo, negritude, representatividade, machismo, homofobia e ancestralidade. Apesar de abordagens, estruturas e enredos diferentes, ambos parecem seguir a mesma proposta: falar para um público que já concorda com as ideias de Tenório. E assim o autor usa, abusa e se lambuza de jargões e expressões às quais estão acostumados os seus leitores, entenda-se, os partidários das políticas identitárias.
De Onde Eles Vêm tem uma premissa e interessante. Joaquim faz Letras, quer ser poeta, e tenta se encaixar em um mundo onde não se sente acolhido. Enquanto isso, sua namorada, Jéssica, parece não receber bem a mudança de seus hábitos após a entrada na universidade; a sua avó, uma idosa doente, precisa de uma constante ajuda física e financeira; e Sinval, seu colega dono de um sebo, tenta lhe dar conselhos sobre a vida.
A narrativa é dinâmica. Os capítulos, curtos, funcionam como um recorte pessoal do narrador e do seu cotidiano universitário. As escolhas estruturais do texto (diálogos internos e curtas, poucas descrições de cenário) fazem com que a leitura seja rápida. No entanto, a premissa e o ritmo são as poucas características que consigo elogiar em De Onde Eles Vêm.
Os problemas já começam no estilo. Tentando aproximar a voz do narrador de um tom coloquial, Tenório exagera, caindo em uma prosa que soa mal aos ouvidos. Como, por exemplo, no trecho a seguir, em que o autor repete diversas vezes os nomes dos personagens sem necessidade:
“Lauro não sabia se aquela proposta já era um tipo de convite, mas a bebida já estava fazendo efeito e ele não pensou muito. Seguiu Matheus. Acharam sofá e se sentaram próximos. Você paga uma cerveja para mim?, perguntou Matheus. Lauro não tinha muito dinheiro, mas disse que pagava. Matheus se levantou e foi buscar a cerveja. Depois serviu os dois copos. Enquanto bebia, Lauro observou o lugar, agora nada mais o assustava. Sentiu-se mais à vontade. Conversaram sobre coisas amenas. Matheus estava desempregado e morava na Restinga, região mais afastada de Porto Alegre. Tomaram outra cerveja, que Lauro também pagou. Eu ainda não disse pra minha família que sou gay. Matheus não ficou surpreso com a declaração de Lauro…” (p. 57)
A repetição constante dos nomes nos mostra que o autor tem pouca habilidade no polimento do texto, o que deixa a prosa desagradável e didática, como se o leitor não pudesse entender quem fala e quem responde.
Em outros momentos, Tenório demonstra carência vocabular. O emprego dos verbos é pouco preciso e repetitivo, como nesse trecho: “Perguntei se estava tudo bem. Ela disse que sim, que só estava cansada. Mas sabíamos que não estava tudo bem”. (p. 138)
Mais complicados ainda são os casos de queísmo do texto, porque não possuem justificativa ficcional plausível, engasgam a prosa e dão sinais de amadorismo:
“Ela respondeu que sim, e depois disse que estava triste com tudo, que não queria que as coisas tivessem chegado naquele ponto. E que a gente se gostava, mas que as coisas começaram a ficar diferentes. Eu a interrompi e disse que sentia falta dela, que para mim era difícil saber que não teríamos mais nada, que já não poderíamos partilhar nossas coisas, que não poderíamos mais conversar. Ela sorriu e disse que também…” (p. 84)
Ainda sobre o estilo: o texto também apresenta problemas lógicos, como na passagem a seguir: “Fazia calor e um vento abafado, o que dificultava uma respiração plena” (p.78). “Fazia calor” é coerente, mas “Fazia … um vento” não. Há outros descuidos semelhantes. Chega a maçar o número de verbos dicendi utilizados ao longo dos diálogos (“fulana disse, beltrano disse, ciclana disse etc.”), o que dá a impressão de que o autor tinha medo dele mesmo se perder na cena e não saber mais quem é quem.
Esses e outros problemas revelam o descaso de Tenório com os detalhes. E isso é de certo modo irônico, pois ao mesmo tempo em que negligencia as minúcias estilísticas, o narrador demonstra extraordinária susceptibilidade ante aquilo que ele entende como as mais discretas e veladas manifestações de racismo, como quando um velho militar diz que funk é “barulho”.
Mas Tenório é incapaz de retratar o racismo velado em sua forma velada. Seu retrato é tão sutil quanto o caminhão da Coca-Cola em uma noite de Natal. Ele berra, chama a atenção, escolhe expressões que tentam “escancarar” o racismo e abusa das frases feitas. Em vez de engendrar os conflitos do narrador com destreza, insinuando, mostrando sem dizer, Tenório resolve gritar contra os problemas sociais presentes na história. E por isso o texto não parece ter voz própria: constantemente Tenório busca os chavões relacionados ao conflito racial, sem buscar algo novo, uma contribuição pessoal, um estilo distinto do que já vemos por aí. O resultado são cenas até de certo modo constrangedoras, não pelo seu conteúdo, mas pela forma pouco original que torna o texto cafona. Aqui vão alguns exemplos:
“Por séculos os negros se foderam pra que você chegasse até aqui. E agora é isso que você vai fazer da sua vida? Um curso de letras? Um curso que não vai ajudar os negros a sair dessa merda toda? Não se tornará um advogado? Um médico? Um engenheiro?” (p.61)
“Mas ele é branco, eu disse com espanto. E o que isso tem a ver?, ela retrucou. Como, o que tem a ver, Jéssica?, e toda a nossa conversa sobre eu não te trocar por uma mulher branca. Sobre a importância de termos um amor negro-centrado.” (p.77)
“As imagens de Jéssica com o professor voltavam com mais força. E logo em seguida outro pensamento se apresentou: e se eles tivessem transado no gabinete dele? Um homem branco com uma mulher negra. A diferença de cor. A opressão colonial materializada.” (p.78)
“A Toca vendia café, era o mais barato da universidade. É verdade que era ruim, mas ninguém parecia muito interessado. O importante era ter a cafeína no sangue e ser contra a opressão dos donos dos bares universitários.” (p.85)
“Em seguida começou a fazer movimentos circulares com a bunda. Era o código de que queria transar. Quando eu a chupava, e tentava pôr em prática tudo o que Jéssica havia me ensinado, não surtia efeito. Tinha a impressão de que Elisa achava até entediante. O erro dos homens, Jéssica me disse um dia, é tratar todas as bucetas como se fossem a mesma.” (p.94)
“Não esqueço as aulas de Penal I, por exemplo, com aquelas discussões sobre leis, sobre o código penal que só fode os mais pobres. Que só pune quem é preto.” (p. 134)
“Eu continuava me fodendo como todos os outros negros sempre se foderam. Aquele era o nosso destino, pensei.” (p.169)
“Além disso, nosso útero é posto a serviço do capitalismo, porque, veja, a quem mais interessa que a gente possa parir filhos saudáveis?, filhos que ‘vençam na vida’ e que sejam produtivos?” (p.107)
Assim como o estilo, é igualmente problemática a narrativa. Se, por um lado, elogiei os capítulos curtos e o ritmo rápido do texto, por outro esta estrutura é falha: sua divisão não é dramática, mas sim temática, e o livro pula de um bloco de temas para outro, em saltos abruptos, sem lógica interna. Se um capítulo é sobre Lauro, um rapaz que decide ir a uma sauna gay pois está em dúvida em relação à sua sexualidade, no próximo, Moacir Malta, professor universitário, teme pelo tumor maligno que carrega na garganta, e já no seguinte vemos a relação da avó do protagonista Joaquim com a umbanda e os orixás.
Em diversos momentos perde-se o senso de continuidade da história e os capítulos não acrescentam na narrativa, sugerindo que estão ali apenas para preencher um checklist do que deve haver numa obra que pretende ser “antirracista”, como no caso do capítulo em que a poeta Luana Dandara recita “Gritaram-me Negra”, de Victória Santa Cruz, em uma performance na universidade, um dos momentos mais abruptos da narrativa, quase como um jumpscare.
Aliás, o que não falta em De Onde Eles Vêm são acontecimentos banais. Como na cena, logo no início do romance, em que Sinval ajuda Joaquim a desentupir um vaso cheio de bosta; ou quando um vaso entupido volta aparecer no livro, mas desta vez Joaquim e Elisa ficam presos no quarto com a porta do banheiro fechada para que o cheiro não invada o quarto enquanto o protagonista lê Rosa do Povo (eu sei que você está assustado com a aleatoriedade, eu também fiquei); ou quando Joaquim faz sexo oral em Jéssica e ela recita Música de Câmara, de James Joyce, e depois diz que a namorada é “profunda demais” para ele — seja lá o que ele tenha querido dizer com isso.
Outra complicação é o fato de o narrador não desenvolver plenamente as suas reflexões. Elas têm um ar falso de profundidade. Se morre um animal de estimação, o pensamento é algo como: qual é o limite entre a dor da perda e o exagero? Bicho é bicho, gente é gente. Se o personagem não consegue esquecer a namorada, confessa que tudo parecia “vivo e pulsante dentro de mim”. Se ele se questiona de onde nasce a poesia, começa a empilhar uma série de perguntas e diz que o poema “não nasce nem morre”. Se ele está cuidando da avó idosa, revela ter medo de ficar velho, e reflete que um dia ficará só e será esquecido. Os trechos em que o narrador decide filosofar são, de longe, os piores do texto, porque não há nada de novo a acrescentar a partir da visão deste personagem, a não ser clichês e pensamentos de um jovem imaturo.
Esses defeitos da obra são, em parte, consequência das escolhas que Tenório faz como leitor. Segundo Tzvetan Todorov, antigo formalista russo que reconheceu os vícios da literatura contemporânea e depois tentou combatê-los, existem “ismos” que apodrecem as letras do século XX. Um deles é o niilismo, que tem a plena certeza de que o mundo é mau, nada presta, o ser humano falhou. Outro é o solipsismo, a ideia de que o mundo exterior não existe ou não importa, e que o centro das atenções está na crença individual, no próprio sentimento, no próprio bem-estar. Jeferson Tenório, em De Onde Eles Vêm, padece desses “ismos”.
Niilismo, pois descreve um mundo completamente dominado pelo ódio, em que todos os negros têm uma “vida fodida”, “assim como acontece com milhões e milhões de pessoas negras”. Nesse mundo, em um final absolutamente covarde, Tenório traz um elemento externo, nunca antes citado na narrativa, a pandemia, apenas pela vontade de mostrar como o seu personagem é um sofredor, à maneira de um boneco de vudu.
Aliás, a inserção dos acontecimentos de 2020 nas últimas linhas do texto para dar continuidade à “vida fodida” do personagem é, por si, uma demonstração do seu solipsismo. Tenório, na intenção de se apresentar como um ótimo leitor da sociedade, na verdade só consegue exibir sua falta de leitura do social e do individual, incapaz de perceber outros sofrimentos humanos que não o seu próprio.
Por isso o romance, de certo modo, é extremamente elogioso às banalidades de uma vida universitária comum. Cenas de sexo são hipervalorizadas e possuem pouca função narrativa, os saraus são descritos quase como se fossem um encontro de Dante com os poetas clássicos, as bebedeiras recebem enorme destaque enquanto as aulas e o estudo desaparecem em segundo plano. Essas frivolidades não são exatamente um problema em si, porém, a maneira como o narrador as relata torna tudo tão trivial que, em certo ponto do livro, me perguntei: por que continuar lendo?
Que o narrador seja um jovem, compreende-se. Mas juventude não serve como desculpa para uma obra que estanca no mais raso ponto de reflexão e interiorização da literatura. Um Retrato do Artista Quando Jovem, de Joyce, Ilusões Perdidas, de Balzac, O Encontro Marcado, de Fernando Sabino, e, até para puxar um contemporâneo, À Sombra do Pai, de Luiz Cézar de Araújo, são romances em que o personagem principal é um jovem imaturo. Contudo, diferentemente de Tenório, esses autores conseguem tratar os temas da vida em formação com profundidade, através de um olhar clínico e único da realidade, conectando de maneira interessante os conflitos cotidianos, as aspirações interiores, as desilusões, a perda da inocência, o sofrimento que parece insuperável. Na contramão, De Onde Eles Vêm não é somente narrado por um jovem: foi escrita por alguém que ainda não desapegou de suas crenças juvenis e, na tentativa de cumprir o preceito sartreano de literatura, acaba abarcando o mundo que quer criticar, mas não pode superá-lo, pois realmente não o superou e continua preso nas próprias alienações.
Visto que voltei a Sartre, vale ressaltar: na intenção de escolher seu público, Tenório rebaixa os seus leitores. Sendo incapaz de perceber que sua obra poderia transcender a esfera de sua pequena bolha identitária, o autor fala para os seus na sua própria linguagem e, quando tenta subir para além disso, falha. Por esta razão é que, provavelmente, explica demais, didatizando o texto. Destaco os trechos em que ele destrincha a origem do apelido de um amigo seu, chamado “Bola”:
“Ana Clara não gostava da parte da faxina, então, para não discutir com a sua filha, decidiu ir ao supermercado com o namorado Luiz Cláudio, conhecido como Bola. Era um apelido bastante óbvio, porque em sua barriga havia uma circunferência tão grande que lembrava mesmo a de uma bola.” (p. 47)
Ou, também, acreditando que seus leitores poderiam não conhecer A Odisséia, de Homero, precisa rebaixá-la à linguagem do público que ele imagina ser o seu leitor:
“Juca perguntou que livro era aquele que eu tinha de terminar. A Odisseia, eu disse. Nunca ouvi falar, ele comentou depois de uma tacada. É um livro sobre um cara que vai lutar numa guerra. Ele deixa a mulher e o filho. Fica dez anos lutando. Depois demora dezessete anos pra voltar pra casa. Juca ficou me olhando meio espantado. Porra, por que ele demora tanto pra voltar? Eu disse que o Ulisses passou por alguns problemas no caminho de volta. Ele ficou preso?, perguntou Caminhão. De certo modo sim, ele foi enfeitiçado por uma bruxa. Juca deu outra tacada: meu, que história de merda, hein?”(p. 117 e 118)
Por que não escrever de outro modo? Por que não optar por elevar a linguagem e esperar que o seu leitor também se eleve? Por que não considerar que o seu leitor, mesmo que ignorante, também seja capaz de pesquisar, investigar, deduzir, tentar entender as referências? O que está por trás de um autor que prefere didatizar a sua prosa e se comunicar com o seu leitor como se este não fosse capaz de entender o que diz? Até porque, convenhamos, não há nada de tão profundo assim na prosa de Tenório que não possa ser compreendido pelo leitor médio.
O maior de todos os problemas (perdão se repito tanto esse termo, é que os problemas também se repetem bastante ao longo do livro) é que o autor sabe dos defeitos do texto. Sabe por que tenta se justificar, dando desculpas e encontrando saídas durante os diálogos a respeito das funções da literatura. Talvez pela crítica (muitas vezes negativa) às suas obras anteriores, Tenório procurou se blindar em De Onde Eles Vêm, revelando uma clara insegurança na sua prosa — tão imaturo quanto um adolescente tentando se desculpar com os pais pela bebedeira do dia anterior.
Ainda na primeira parte do romance, numa conversa entre o protagonista e Sinval, Joaquim recebe uma crítica a respeito de seu conto: Se eu fosse você, não gastava tempo com essa história, nem com esse concurso, diz Sinval. E depois Tenório continua, numa clara tentativa de emular o tom dos críticos à sua prosa: “Por que você não está interessado em contar uma história, está interessado em fazer uma denúncia?”. Neste momento, o livro para mim perdeu o sentido: tive de concordar com o antagonista da cena. Tanto Joaquim (com seu conto Casa Vazia) quanto Tenório tentam simplesmente escrever uma denúncia, não tentam contar uma boa história. O protagonista ainda se defende ao responder: “Então você acha que a literatura tem de ser omissa?”. Neste ponto, Tenório tenta encaixotar o possível leitor que não está gostando do tom exagerado e escrupuloso do romance em uma estratégia retórica: ou a literatura é de denúncia ou é uma literatura omissa.
E então rasgou-se o véu do templo: Tenório só quer produzir a boa e velha (nem tão velha e nem tão boa) literatura engajada. É a literatura que toma partido, dicotomiza a realidade e enxerga apenas dois lados — o certo e o errado. Tenório admite não conhecer a literatura e não querer fazer literatura: o que produz é outra coisa, e chamar este livro de romance talvez até seja uma imprecisão de termos.
Quando a poeta Luana Dandara recita o poema de Victória Santa Cruz, uma colega que assistia a performance critica o trabalho da artista: “Tenho medo de que reduzam a um jeito a expressão poética somente pelo grito, pela manifestação, pela reivindicação, pelo protesto, como se não pudéssemos fazer literatura de outro jeito”. Novamente: Tenório conhece as falhas do texto e põe, na boca de personagens não tão importantes, as possíveis críticas ao seu livro. Claro, Joaquim rebate: “talvez a gente tenha que continuar gritando para sermos ouvidos”.
Note: a réplica nunca corresponde às premissas, o personagem sempre sai pela tangente, dá outra justificativa, direciona a crítica não pelo seu conteúdo, mas pelas suas prováveis consequências. Tenório atinge um grande feito: é um fundador de uma nova lógica. Quem apontar os problemas do texto não faz uma análise, mas provoca um apagamento histórico, silencia vozes, desqualifica a dor.
Para finalizar, devo fazer um elogio: o narrador é perfeitamente coerente com a realidade: apresenta inúmeras inconsistências estilísticas, comete diversos erros gramaticais ao longo do livro, troca os porquês, pontua errado, erra concordâncias, confunde “numa” por “uma”, cria reflexões rasas, escreve capítulos e cenas desnecessárias, faz uso de clichês… e ao final de tudo é reconhecido como escritor e vence um concurso literário internacional. Parece-me, portanto, que o protagonista de De Onde Eles Vêm e o seu criador têm histórias e características bem semelhantes.
Detalhes do autor

Matheus Araújo
O pernambucano Matheus Araújo é escritor e professor de literatura.
Publicou seus primeiros contos na coletânea “O Bordado das Sombras: Contos da Escola Carreriana” (Mondrongo, 2017), enquanto estudava na Oficina de Criação Literária de Raimundo Carrero.
Conta com mais de dois mil alunos em seus cursos e mentorias sobre literatura e escrita na internet.
É autor do volume de contos “Nunca Mais Será Domingo“, publicado em 2024 pela Editora Danúbio.
Gostei de O avesso da pele, mas esse último livro do Tenório não me interessou, já pelo título. Enxergo nessa crítica muitos problemas comuns a escrita do autor.
Tenório é um dos raros casos em que o autor deve ser mais ralo do que a própria obra.
Boa crítica.
É um reflexo da mediocridade da nossa atual sociedade.
ISSO é uma crítica literária. Com algumas alfinetadas ao autor – apenas ao final, que após toda a angústia, mereceu também – mas de modo geral apenas firme e coerente com a noção de crítica. Esses panfletos em forma de livro acabaram com a literatura nacional. Eu até concordo com a ideia sartreana sobre o valor da literatura, mas não precisa deixar tudo tão óbvio, como se todos os leitores do planeta fossem crianças de dois anos. É possível criticar de maneira efetiva sem infantilizar a si mesmo – e seu público. Obrigado pelo texto!
Rapaz, que estômago homérico!
Que livro de merda, hein!
Meus parabéns por ter tido a paciência de ler até o final.