
História de Natal (conto)
Por Samuel Freitas
Ser ou ter? Muitas vezes nos disseram que o importante é ser, e não ter. E assim ficamos e permanecemos felizes sem termos nada e nada sendo além disso que temos.
É nisso que penso ao retornar para casa depois de horas exaustivas pelo mundo. Extras, bicos, ocupação… tudo a fim de equiparar esse custo de vida que aumenta a cada mês; e aqui somos dois e uma metade, um casal e sua adoentada prole. Achar culpados, facílimo. O mercado muito sensível, o governo desumano, o insaciável Leviatã, o Gigante acordado em Tanatose…
Mas deixemos essas coisas um tanto de lado. É noite de Natal e a Zefinha preparou uma ceia majestosa: ervilhas, milhos e uvas passas com um punhado de arroz; salpicão bem feito e encorpado com as sobras do frango de ontem; uma farofinha na manteiga com alho e cebola; um dourado galeto, de hoje, ao forno; um pudim de pão de sobremesa; e para lubrificar, uns dois ou três vinhos Carreteiros, bem geladinhos. Um banquete, luxo anual pra uma data tão distinta. Minha querida esposa já montou a mesa; pratos e travessas repousadas em suportes rubros de crochê, mesura artesanal dessa maravilhosa e modesta dona de casa. Tangenciando a sala, um esqueleto pulmonar de galhos secos emaranhados de piscas-piscas — a maioria pifados por festejar tantas cerimônias —, três ou quatro bolinhas e um lacinho encarnado no topo. Meiguice de encher a alma, fineza de se derramar aos olhos.
— Convidou alguém? — inqueri ao som da batida na porta.
— Eu não, amor. A ceia foi feita pra nós dois; e pra durar.
— Vou ver quem é.
— Pois veja e despache. Já está quase na hora da gente comer.
Que não sejam os vizinhos cachaceiros, já não basta aquele barulho de música abafada durante aquele churrasco de sobejo que fazem constantemente! Meti soslaio pela janela, lá estavam os vândalos reunidos em entretido entretenimento. O time parecia completo. Então, se não eles, quem? Fui à abertura da porta em moldes de amuado; sisudo e grave perguntei:
— Sim?
— Boa noite.
— Boa.
— Desculpa incomodar, senhor; mas o senhor não teria qualquer coisa? Sinto fome.
É punhal feridor de coração ver alguém olhar para você e dizer que sente fome. E esse pobre infeliz nem ousar ousava acompanhar o pedido com um olhar.
— Sente fome?
— Sim, senhor; se puder me dar algo, qualquer coisa serve.
É Natal, época de derramamentos, mas aquela cena me tocaria em qualquer situação. Não imaginava o que seria passar fome. Todo meu protesto do início com minhas capacidades de dar uma situação melhorada pra minha família perdera naquele instante o sentido. Olhai as circunstâncias desse cidadão e ponde de lado a mesquinhez do julgamento precipitado! Vê-se que é, ou foi, homem de trabalho braçal, que estava no inaugurar da meia-idade, fala atropelada pela inexperiência… só Deus sabe que infortúnios o jogou nessa sarjeta esse homem capaz. Vi-me nele. Vesti sua pela sofrida e aparentemente cansada. Onde estaria sua família? Parentes que ainda se importassem? Era Natal, e o que aquele pedinte tinha? Fome? Sim, fiquei com pena e apanhei a tigela dele.
— Sei que ainda não está na hora…
— Besteira, Mariano. Vamos, me dê pra cá!
A generosidade quando batia nela só via convexidade, e escorria transbordando tudo e todos ao redor. Não achando pouco, pegou outra manteigueira para comportar a metade do peitoral mutilado do assado.
— Ponha um pouco de vinho pro homem — determinou.
E assim retornei ao pedinte abraçado com duas vasilhas enquanto equilibrava contra o derrame pela proa o copo de vinho.
— Aqui, tome! — fui lhe entregando com a gentileza do cuidado.
— Nossa, senhor! Muito obrigado — tinha comoção na voz — Deus Todo Poderoso lhe abençoe!
— A todos nós.
— E Deus lhe dê em dobro — e saiu, com a sinceridade de um sorriso discreto estampado.
Entrei. Falei com ela.
— Obrigado.
— Pelo quê, Mariano?
— Por tudo!
Beijei-a. Enfim, ceávamos. Ali, despercebido por mim, abaixo da desnutrida árvore de natal improvisada descansava um envelope. Que é isso? Zefinha me respondeu dizendo que colocaram debaixo da porta, e deveria ser de alguma loja ou de qualquer político.
— Me deixe ver.
Em fonte natalina vinha escrito no verso: “Para Cibele e família, um Feliz Natal”.
Quanta gentileza! Pode alguma amiguinha do colégio ter aqui remetido com pressa vergonhosa para não ser recepcionada. Minha filha dorme, cada dia mais fraquinha, debilitada. Hoje botou para sangrar pelo nariz e toda aquela agonia de sempre: dores e febre. Descansa um pouco, graças a Deus. Amanhã lhe entregarei essa carta.
Mas antes, abri o envelope. Sorvi um pouco de vinho, e li:
Querida Cibele,
Espero que esta mensagem encontre você com esperança e força. Meu nome ainda não pode ser revelado, mas sou a pessoa que terá a honra de doar a medula óssea para você.
Não nos conhecemos pessoalmente, mas quero que saiba que, desde o momento em que soube que poderia ajudar, senti uma conexão especial e um imenso desejo de fazer parte da sua jornada de cura. Acredito que a vida nos apresenta oportunidades de sermos solidários, e estou profundamente grato por esta chance de contribuir para a sua recuperação.
Desejo que essa doação traga a você saúde, vigor e um novo capítulo repleto de conquistas e alegrias. Estou torcendo por você e enviando minhas melhores vibrações para que tudo corra bem no tratamento e recuperação.
Embora sejamos estranhos, acredito que agora estamos ligados por algo muito especial. Seus pais a amam muito e saiba que nunca estará sozinha; e muitas pessoas, incluindo eu, estão torcendo por sua vitória.
Com carinho e esperança…
— É um doador, Josefa.
— Um o quê? — engasgou.
— Um doador pra nossa filha.
— Meu Deus do céu! E o Hospital não avisa nada?
— Zefinha, é um doador!
— Oh, Mariano de Deus! — chorava ela, acompanhando minhas lágrimas. — Tem várias ligações do Hospital aqui, na correria deixei carregando no silencioso e… me desculpa, minha filha! — aprumou carreira pro quarto onde a criança dormia. Eu a retive.
— Zefinha, Zefinha! — abracei-a, ela desabou. — Deixe a menina dormir. Amanhã será a melhor notícia da vida dela. Deus é bom, a toda hora.
— Me desculpa!
— Não peça desculpas, mulher — acariciei seus cabelos — Zefinha?
— Oi, amor.
— É um doador!
Ficamos por ali mesmo abraçados, aos prantos lacrimosos de uma felicidade plena. Que história de Natal mais belas teríamos para contar. Fé, caridade, misericórdia, mistério e milagres… Perfilei vista pra janela, as cinzas lançadas ao vento pela churrasqueira eram neve sertaneja. Os pisca-piscas nas outras casas pirilampeavam luzes num desconhecido no outro lado da rua, ereto e altivo. Uma mesura surgiu em vagaroso movimento espalmado. Estanquei jubiloso com aquele gesto sublime. Era o milagre acenando; era a marca do aniversariante estampada na palma daquela mão divina.
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Detalhes do autor

Samuel Freitas
Nasceu em Tupanatinga (PE) no ano de 1985; atua como Bombeiro Militar nas Alagoas. Autodidata. Bacharelando em Direito na UPE, Campus Arcoverde, onde atualmente reside com esposa e filho.
É autor do elogiado volume de contos “O Jumento e o Carcará“, publicado em 2024.
Conto lindo e emocionante! Que o Natal traga reflexão, renovação, empatia e felicidade a todos!
Emocionante, do início ao fim.
Muito bom🙌🙌👏👏👏
Mais um conto maravilhoso! O verdadeiro espírito natalino.
Que emocionante e lindo,🥹.
Deus é bom!
Já quero o livro 👏🏻👏🏻👏🏻
Eu tenho Fascínio pela sua escrita, eu contemplei a mesa posta e senti o cheiro da comida, visualizei o pedinte diante da porta e com seu olhar grato e senti a bondade Divina Daquele que pode fazer milagres !!!!
Nossa, muito bom, como sempre uma escrita mui maravilhosa.
Emocionante demais!!! Quanta sensibilidade…
Emocionante!
Um belíssimo conto de Natal, parabéns!