O Exame de Consciência de Emmanuel Carrère

19, fev, 2025 | Artigos | 0 Comentários

Outras Vidas que Não a Minha. Por Emmanuel Carrère. Alfaguara, 289pp., R$ 17,45 (Kindle). Tradução de André Telles.

 

Por Pedro Dias 

 

Publicado pela primeira vez em 2009, “Outras vidas que não a minha”, de Emmanuel Carrère, premiado escritor, roteirista e cineasta francês, retrata duas tragédias reais que o próprio autor presenciou.

Na primeira parte, vemos o relato do que foi testemunhado pelo autor no tsunami de 2004, no Sri Lanka (onde ele estava com sua esposa e os filhos de ambos, nas férias), em especial o drama de um casal também francês que conhecera há poucos dias, e que perdeu a filha numa das ondas; na segunda parte, o destaque é a sua cunhada, que morreu devido às complicações causadas por um câncer, o que afetou, obviamente, toda sua família.

Os acontecimentos narrados são fascinantes por si mesmos, e Carrère é hábil em representar as imagens de forma plástica, tornando-as intensas. Sobressai a forma com que o autor descreve as atitudes dos envolvidos nas duas histórias, de modo, por assim dizer, transfigurado. O que para muitos poderia parecer inveja, orgulho, mesquinharia, ele consegue enxergar como compaixão e pudor, sem aquela sonsa ingenuidade forçada que no fundo aponta para o próprio umbigo, mas, pelo contrário, com uma perspicácia admirável.

Porém, de imediato, e que nos pode chocar, é a maneira como Carrère conta as suas vilezas, os seus ressentimentos, sem muita cerimônia, quase que en passant, o que pode soar, para o leitor descuidado, como uma espécie de indiferença proposital para com as próprias ações. Se prestarmos um pouco mais de atenção, no entanto, é possível ver, nessas mesmas páginas, algo semelhante à manifestação espontânea de um honesto exame de consciência, que parece já fazer parte da vida do escritor, como quem diz agora em voz alta o que antes talvez não tivesse coragem sequer de pensar.

Em meio à catástrofe, ele fica um tanto quanto perdido, sem muita reação, de fato inerte em frente ao caos que se apresenta. E quem acaba roubando a cena, tomando as rédeas da situação, é sua esposa, Hélène, jornalista que trabalha para uma grande rede de comunicação francesa, que durante todo o desastre consegue misturar seu instinto jornalístico ao senso de caridade e dever, resolvendo problemas, ajudando diversas vítimas, muito astuta, dominando a situação com invejável vigor. Carrère apenas a acompanha, quase como um autômato, sem nenhum protagonismo, e admite o incômodo que isso lhe causou.

“Eu, por minha vez, olho para Hélène e me sinto aparvalhado, impotente, inútil. Chego quase a odiá-la por estar superenvolvida com aquilo e não se preocupar mais comigo: é como se eu não existisse.

“(…) Saímos ilesos, estamos juntos, nossas roupas estão limpas, não procuramos ninguém em particular. Após a visita ao inferno, retornaremos ao nosso hotel onde nos servirão o almoço. Tomaremos um banho de piscina, beijaremos nossos filhos ruminando que foi por muito pouco. Sentir culpa não ajuda nada, é perda de tempo e energia, mas nem por isso deixamos de nos sentir torturados por aquilo e de ter pressa de que tudo termine. Hélène, em contrapartida, ignora seus sentimentos. Concentra todas as suas forças em fazer o que pode fazer, não importa que seja irrisório, é necessário fazê-lo apesar de tudo. Presta atenção, é precisa, faz perguntas, pensa em tudo que pode ser útil. Pegou todo nosso dinheiro vivo e o distribui para Ruth e seus companheiros. Anota o nome de cada um, depois o nome e as coordenadas sumárias dos desaparecidos: amanhã tentará ir a Matara, procurá-los por lá.”

Há um evidente contraste entre pesar e alívio ao longo da trama, que o autor faz questão de deixar bem claro. Pesar pela tragédia que invadiu a vida de pessoas de certa forma próximas; alívio porque elas não eram, digamos, assim tão próximas. O câncer mortal atingiu sua cunhada, não sua esposa. Não foram seus filhos que morreram, e sim a filha de um casal conhecido por ele recentemente. É verdade que houve, de sua parte, boa vontade ao envolver-se em ambos os casos, até certo ponto. Mas não há comparação. Contraste semelhante também aparece, por exemplo, quando ele compara, muitas vezes como quem pensa em voz alta, a integridade, a paciência, a simplicidade de algumas daquelas pessoas envolvidas na história, com seus próprios vícios, suas frequentes falhas, suas toscas banalidades. E, de novo: sem recorrer àquele cacoete dissimulado bem comum em muitos escritores. Sem se julgar um verme com a explícita intenção de parecer um bom moço que reconhece os próprios erros.

Para quem costuma imaginar, como eu, e com alguma frequência, de que modo gostaria que a própria vida fosse narrada, que os próprios atos e intenções fossem interpretados, “Outras vidas que não a minha” pode dar uma luz quanto a isso, talvez pelo seu olhar misericordioso, pela sua ausência de ingenuidade. E algumas perguntas, inevitavelmente, acabam me acompanhando sempre que retorno ao romance. É possível segurar a alegria, porque os nossos foram poupados, vendo a desgraça alheia em nossa frente? E quanto tempo pode levar para a compaixão que temos pela dor do próximo virar tédio, até mesmo empecilho, e nos atrapalhar? Se observada com sinceridade, a tragédia que “nos pega de raspão” pode, de fato, ajudar na superação dos nossos piores incômodos, das nossas maiores aflições? Aflições essas que Carrère não se priva de revelar, e que são, simbolicamente, representadas com a fábula da raposa e o espartano:

“A imagem do rato, entretanto, me é familiar. Salvo que o animal que me rói, a mim, de dentro, é uma raposa. O rato de Étienne provém de 1984, minha raposa, da história do pequeno espartano que estudávamos na aula de latim. O pequeno espartano roubara uma raposa que ele guardava escondida sob a túnica. Diante da assembleia dos Antigos, a raposa começou a lhe morder a barriga. O pequeno espartano, em vez de libertá-la e, ao fazê-lo, confessar sua pilhagem, deixou-se devorar as vísceras sem piscar até que a morte sobreviesse.”

Étienne é um caso à parte na obra, e muito admirado pelo autor. Colega de trabalho de Juliette, a cunhada de Carrère, sofreu também de um câncer quando era mais novo, e precisou amputar uma de suas pernas. Ambos eram juízes, Étienne e Juliette. Ambos tiveram algum tipo de câncer e partilhavam de uma visão de mundo parecida. A personalidade de Étienne é de fato peculiar, quase exótica, no bom sentido. O primeiro contato dele com Carrère acontece na casa do juiz, quando este convida, após a morte de Juliette, pessoas íntimas para dizer-lhes algumas palavras. A verdade é que ninguém conhecia a Juliette juíza como Étienne, que trabalhou anos ao seu lado, o que o possibilitou ver características, atitudes e comportamentos específicos dela no dia a dia, coisas que nem mesmo familiares e amigos próximos poderiam saber.

“(…) há uma coisa de que acho que vocês não têm consciência e que eu gostaria que compreendessem, é que Juliette era uma grande juíza. Vocês sabem, é claro, que ela amava sua profissão e que a exercia bem, devem achar que era uma excelente magistrada, mas era mais que isso. Durante os cinco anos que trabalhamos juntos no tribunal de Vienne, ela e eu, fomos grandes juízes. Essa frase me deixou alerta, essa frase e sua forma de dizê-la. Havia nela um orgulho incrível, alguma coisa de inquieto e alegre ao mesmo tempo. Eu reconhecia aquela inquietude, reconhecia de olhos fechados, numa multidão, na escuridão, aqueles a quem ela habita, são meus irmãos, mas a alegria que se misturava a ela me pegou desprevenido. Percebia-se que aquele que falava era um tipo emotivo, ansioso, perpetuamente no encalço de alguma coisa que lhe escapava, que, ao mesmo tempo, essa coisa, ele a possuía, e que estava encastelado numa confiança inexpugnável.”

Ao final do livro, é contagiante o quanto as experiências vividas pelo autor o fizeram mudar completamente, o impactaram a ponto de fazê-lo encarar a vida com muito mais vontade, com muito mais amor, e que os seus maiores medos, a saber,, a morte de um filho, a de uma jovem mulher, foram superados, não antes, é verdade, que ele os houvesse testemunhado de perto.

É possível objetar que o livro em algumas partes beire a pieguice, com demasiadas descrições sentimentais e reflexões introspectivas. Mas esses momentos dão, de certo modo, o fio condutor que une as emoções do autor com as principais vítimas dos relatos. Não vejo sombra de mau gosto na obra. E parece meio clichê dizer que alguém teve a vida transformada após um grande susto. Não é o caso aqui. Escrito em parte como uma espécie de homenagem às vítimas, sobretudo às filhas de sua cunhada, até então crianças, o livro termina com um tom que mistura compaixão e agradecimento, como uma tentativa de Carrère amenizar de algum modo a dor daqueles que lhes são queridos, servindo-se do que está ao seu alcance.

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Detalhes do autor

Matheus Araújo

Pedro Dias

Gaúcho, natural de Taquara (RS), e nasceu em 1994; escreve crônicas, contos e ensaios nas plataformas Substack e Instagram. Trabalha no ramo administrativo e tem formação na área.